MADAGASCAR OLODUM: UMA ANÁLISE DO ENTREMEIO CONCEITUAL

A Análise de Discurso, sobretudo a de linha francesa, nos permite compreender as condições de produção em que coloca a exterioridade como marca fundamental. A enunciação que se relaciona com a formação ideológica depara-se com a dinâmica das classes sociais e, geralmente são opostas pelos interesses. Assim, os discursos antagônicos materializam as visões de mundo, em que:

se manifestam através de um estoque de palavras e de regras combinatórias que constituem a maneira de uma determinada classe social pensar o mundo num determinado momento histórico: são as várias formações ideológicas correspondentes às formações discursivas. (BACCEGA, 2003, p. 52)

Assim, por meio do discurso pode-se refletir e compreender os processos e fatores de sua construção e, através da interpretação, expor as reflexões de uma determinada comunidade. É o que ocorre em Madagascar Olodum, canção gravada pelos grupos Reflexu’s e Olodum, escrita por Rey Zulu, por exemplo, pois nessa composição os recortes históricos trazem descrições de vários reinados e atestam a existência de sociedades estruturadas politicamente e não desordenadas como, geralmente sugere a mídia e história ocidental. Pode-se observar o processo histórico de algumas civilizações que aparecem, inicialmente, no fragmento da primeira estrofe da composição:

Criaram-se vários reinados

O Ponto de Imerinas ficou consagrado

Rambozalama o vetor saudável

Ivato cidade sagrada

A rainha Ranavalona

Destaca-se na vida e na mocidade

Majestosa negra Soberana da sociedade

Se for fundamental pensar na historicidade, conforme coloca Orlandi (2007), não se pensa a história refletida no texto, mas se trata da historicidade do texto em sua materialidade. Provavelmente, foi por essa razão subjacente que o autor da letra da música Madagascar Olodum recorreu à história da África, no intuito de confrontar as visões distorcidas sobre o continente, que é marcado pela ausência de sua contribuição no desenvolvimento das comunidades sociais. O conteúdo histórico, portanto, é tomado como discurso, “em cuja materialidade está inscrita a relação com a exterioridade” (2007, p. 68).

Compreende-se também que autor da letra da música, objeto do nosso estudo, quando cita que vários reinados surgiram denota que havia unidade entre alguns povos africanos com seus modelos políticos, econômicos e sociais. “O Ponto de Imerinas” era um local estratégico em que havia comércio e tráfego de muitos imigrantes e, por esse motivo, era um local consagrado. Além disso, as tradições orais de Imerinas evocavam, a este respeito, as guerras que os reis, no comando dos recém-chegados, teriam liderado contra as populações autóctones, designadas pelo nome de "Vazimba", vencidas e rechaçadas para o interior. Nesse momento, o autor, em seu enunciado, de certa forma, mostra que possui certo conhecimento, em que “o discurso da história, para construir-se, utiliza-se de todos os textos, de textos de todos os códigos, de todos os campos semiológicos, em cujo trânsito o homem, afinal, vive” (BACCEGA, 2003), uma vez que essas informações revelam uma pesquisa sobre culturas existentes no continente.

A necessidade de incluir informações históricas na composição da letra da música Madagascar Olodum emerge como vontade de inclusão do negro e suas raízes culturais, enquanto sujeito ativo na história, contrapondo-se à ideia de sujeito submisso. Para isso, a identificação com o legado do continente africano surge como respaldo, sobretudo, por servir de base para entendimento de sua construção e desenvolvimento no desenrolar dos acontecimentos sociais e históricos. É na origem que o sujeito (autor) procura estabelecer uma ligação com outros sujeitos (enunciatários), direcionando o discurso presente em Madagascar Olodum para os negros brasileiros. Essa ação serve de motivação para a elaboração da letra em si, pois:

[...] na medida em que o indivíduo consegue planejar suas atividades levando em consideração as esferas sociais mais afastadas da imediaticidade de seu cotidiano, as motivações – tanto no que se refere às necessidades, como às carências – superam as dimensões pessoais e assumem a do gênero humano. (VOESE, 2004. p. 81)

Até então, nos anos 80, se ao falar de questões étnicas era o mesmo que se deparar com uma censura silenciosa, em que, o discurso geral tentava apagar os vestígios da luta dos negros em relação à dominação imposta pelo branco. É a medida perversa da contracultura, conforme assinala Munanga e Gomes (2006).

Nesse sentido, o dito na música subjaz nos personagens e locais históricos da África, desconhecidos ou ocultos por um mecanismo de imposição cultural, apresentando-os ao mundo como forma de desestabilizar o estereótipo de que negro não tem história. O sujeito que fala, é compositor e, de certa forma, tem uma visão não só mais abrangente do mundo, como pode subverter o mundo de acordo com a sua necessidade, os sentidos e produzir os efeitos que deseja das mais variadas formas. “Em toda língua há regras de projeção que permitam ao sujeito passar da situação para a posição” (ORLANDI, 2007, p. 40), e por isso o autor se dispõe a confrontar a cultura de imposição.

Deste modo, colocam-se as seguintes questões: Qual é o sentido do discurso presente em Madagascar Olodum? Qual a forma e o tipo de resistência que o autor adere? E, para quem e para quê o Discurso de resistência presente na letra de Madagascar Olodum é dirigido?

Verificamos que a primeira figura de destaque na letra da canção é Rambozalama associada a um “vetor saudável”, e essa construção no texto pelo autor produz outro sentido associado à palavra vetor. Um vetor é a direção e sentido, porém o termo possui outro desígnio quando associado à palavra “saudável”, e dessa relação, pode-se inferir que, Rambozalama, seria um local não de refúgio, mas que entre “O Ponto de Imerinas” e “Ivato cidade sagrada” converge em espaço de progresso e prosperidade. Parece que é para lá que os indivíduos residentes de Madagascar seguem, pois é o local que se apresenta como agradável.

Observamos que, do ponto de vista histórico, conforme assinala Hostetler (1988), Imerinas, que está presente na letra, foi marcado pela retomada dos africanos e unificação de vários reinos residentes na ilha de Madagascar, desse ponto deriva uma circunstância incomum na história: a derrota do homem branco.

Dessa maneira, o autor da composição, por meio de informações históricas intitula a música de Madagascar Olodum, propositalmente, pois o nome da ilha africana tem um simbolismo muito salutar em relação à mensagem que o mesmo incutiu na construção da letra. Nesse ponto, novamente o dito, remete ao distanciamento da influência europeia, sobretudo por ter se tornado local de refúgio de piratas e negros que não aceitavam as imposições do homem branco no continente.

Ivato é sagrado, portanto espaço religioso, muito provavelmente das crenças africanas. Sob esses aspectos, Rambozalama é também o local de onde partem as decisões, por isso o termo “vetor saudável”, pois direciona e dá sentido às normas. Está presente na composição essa informação, que serve para dar força e mobilidade à canção entre os ouvintes que se pretende atingir, sobretudo porque, isto faz com que o autor “ajuste seu dizer a seus objetivos políticos, trabalhando um jogo de imagens” (ORLANDI, 2007, p. 41).

Rey Zulu trabalha tantas imagens em Madgascar Olodum, como forma de mostrar aos ouvintes o domínio cultural que detém de sua própria personificação, enquanto elemento negro. O não-dito circunscreve-se ao fato de que, o oprimido, na sua relação com a história, procura se valer de suas raízes culturais para resistir ao opressor. Essa resistência se dá pela busca da origem, pela aceitação de valores comuns à sua identidade com determinado elemento social, no caso o negro africano. Em Madagascar Olodum, o discurso se sustenta na historicidade, essencialmente pela memória que há muito se encontrava esquecida, de maneira que atesta que, de fato, os sentidos se transformam (ORLANDI, 2007) e dão alteridade ao discurso.

Ao recorrer às imagens de resistência verificamos que, o não dito, se manifesta em termos como: “Madagascar, ilha do amor”, que representa a sua própria cidade e, nessa perspectiva, a condição de discriminação muda, o que é perceptível nas relações sociais vivenciadas pelo autor e o negro na Bahia.

Desta maneira, a cidade de Salvador, com uma população negra superior à de brancos, representa a dita “ilha do amor”, no sentido de que ela acolhe e é lugar de refúgio contra a discriminação social e étnica.

Por outro lado, verificamos que a aclamada “ilha do amor” possui outras realidades, pois se Zulu, autor da composição, precisa dar esse grito de protesto, um alerta para resistir, é porque os negros ainda se encontravam excluídos da sociedade. Por isso, pode-se dizer que há uma luta de classes em defesa do sujeito, neste caso, é utilizar-se da palavra, elemento que registra as fases transitórias das mudanças sociais, conforme assinala Voese, 2004.

De certa forma, verificamos que os recortes históricos evidenciados até então, não registraram o negro como indivíduo submisso o qual aceita pacificamente sua condição. Afinal, as localidades relatadas foram espaços de luta, ou seja, as personagens que são citadas representam também resistência, que nos faz entender que o discurso que perpassa em Madagascar Olodum é de resistência.

O não-dito no discurso centra-se na figura de Ranavalona, que é descrita como majestosa negra indicando a beleza da mulher africana e descaracteriza a caricatura de uma personagem feminina frágil e subserviente. De certa maneira, esse registro histórico presente na composição, desmistifica a noção de um continente sem cultura, sem retrospecto e mergulhado na bestialidade. Até então, essa (re)construção de “memória histórica” contrasta as personificações veiculadas (antes do movimento negro) nos meios de comunicação e, até mesmo na escolas, pois nesses espaços:

Reinos e impérios foram substituídos por imagens hordas e tribos primitivas em estado de guerra permanente, umas contra as outras, para justificar e legitimar a missão pacificadora da colonização dessas sociedades, ora em diante qualificadas como ignorantes e anárquicas. (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 28)

Há de se considerar que em nenhum momento, o autor da letra da música faz menção ao espírito guerreiro e sanguinário da “Majestosa negra”, responsável pela morte de cristãos. Segundo Hostetler (1988), a rainha foi implacável em reafirmar suas crenças africanas para manter velhas práticas que iam de encontro ao cristianismo. O autor a descreve como uma mulher jovem e afirma que a personagem “Destaca-se na vida e na mocidade” e, ao mesmo tempo, silencia sobre a existência de três rainhas de mesmo nome, o que gerou certa confusão para o enunciatário. O trecho seguinte ajuda a elucidar esse problema:

Rei Radama foi considerado

Um verdadeiro Meiji

Que levava seu reino a bailar

Desta maneira, verifica-se que Radama se destacou por trazer progresso ao seu reino, isso sugere reformas tanto no plano político, como social e econômico, pois ‘”levava seu reino a bailar”, possivelmente entre as convenções africanas e europeias.

Hostetler (1988) aponta que Radama trouxe prosperidade e abriu os portos de Madagascar e permitiu a entrada de mais estrangeiros na ilha. Observamos que esse modo de governar não exclui o outro e, por meio de um relacionamento de interesses, permite absorver do outro o que há de melhor e, ao mesmo tempo, transforma a realidade a qual está inserido.

Por outro lado, incomodada com a intromissão de europeus em seu espaço, Ranavalona decidiu por resistir (através dos mesmos meios violentos que o homem branco utilizou para dominar a África) para combater a dominação cultural e econômica praticada pela estrutura de exclusão do homem ocidental. Há uma semelhança com os relatos das guerras púnicas travadas na África entre romanos e cartagineses. Segundo Boulos Júnior (2009) as mulheres foram as defensoras de Cartago em sua queda, assim como Ranavalona tornou-se a defensora do reino de Madagascar.

A citação da mulher na composição traz a reflexão sobre algo importante, os aspectos de luta de classes, uma vez que a mulher simboliza a resistência em sua essência. Na sociedade, de valores eurocêntricos, a mulher e o negro se encontram no mesmo lugar, excluídos dos processos e marginalizados sob arquétipos que visam mascarar a sua condição. O autor, de forma inconsciente, traz à tona vozes do movimento negro e do movimento feminino e, nas circunstâncias ideológicas, são focos de resistência à cultura de exclusão que visa acentuar as diferenças sociais e históricas.

O texto desenvolvido em Madagascar Olodum encontra-se, portanto, centrado em dois tipos de resistência, o histórico e o cultural, conforme se verifica:

Ao longo do processo histórico brasileiro, homens e mulheres negras sempre lutaram e resistiram bravamente a toda forma de opressão e discriminação. [...] a resistência cultural tem sido uma das mais forte que os africanos e seus descendentes ofereceram em todas as suas diásporas contra a opressão escravista e colonialista. (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 106)

Rey Zulu utiliza muitos termos de origem africana demonstrando que não deseja aquietar-se sob o jugo da língua. Sua posição ideológica, de se assumir como indivíduo negro, ativo e consciente o seu papel na sociedade, o levam à enfrentar a imposição linguística que desarticula suas origens. O uso desses termos visam revelar “disposições dos lugares na hierarquização social”, em que, “a variedade linguística considerada padrão ou culta vale mais do que as outras” (VOESE, 2004, p. 67).

Dessa forma, o autor rompe barreiras impostas desde a época da escravidão, na qual o homem branco querendo menosprezar a cultura do outro (o negro), proibia a manifestação de costumes e o uso da língua oral dos subjugados. Em contrapartida, essa resistência cultural, presente em Madagascar Olodum, movida pela memória histórica, tem “o poder de analisar e ultrapassar clichês e mentiras injustificadas das autoridades” (SAID, 2006, p. 157).

Observamos que os recortes históricos de antepassados e o uso de termos linguísticos próprios oriundos do continente africano servem, como diria Said (2006), para preservar a identidade e impedir o apagamento histórico.

Assim, ao criar no enunciado a junção de “Pelourinho, Pelourinho / Palco da vida e negras verdades / protestos e manifestações”, Rey Zulu deixa explícito que não está conformado com a situação vivida no cenário o qual se mostra em sua realidade. O que comprova essa insatisfação mostra-se na Bahia dos anos 80, que é alicerçada sobre um campo de desigualdade e preconceito, tanto que as camadas populares (de maioria negra) estavam à margem, ou seja, ratificada pelo fato de estarem situadas na base da pirâmide social. Desse modo, os protestos e manifestações a que o autor se refere são os movimentos quilombolas, são os Malês , a Frente Negra Brasileira , os trabalhadores e mulheres silenciados pela censura, pela imposição ideológica, mas que agora se juntavam para ganhar força e resistir às ações ideológicas da sociedade capitalista. O esquecimento e a tentativa de apagamento histórico tentaram encobrir que “a reação e a resistência que fazem parte da história do negro brasileiro constituem momentos importantes da história do Brasil” (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 83).

“Palco da vida e negras verdades” nesse enunciado observam-se dimensões complexas, na medida em que, essas verdades traçam o sentido de que o país foi construído com suor e trabalho escravo dos negros. Encontramos o elemento de refração que, por conseguinte, se apresenta na palavra negra, pois aqui o sentido é outro não de forma pejorativa como o branco a concebeu no decorrer da história, mas como modo de revelar as “verdades” ocultas sob o signo da passividade, da música. Por outro lado, essas “negras verdades” também podem produzir o sentido de que houve crimes e práticas perversas para com o homem negro. As revelando, o autor demonstra o despertar de uma autoconsciência de resistência as adversidades que limitam o negro enquanto sujeito social e histórico. Nesse cerne, “há um reflexo social na materialidade discursiva e um retorno no processo de mediação” (VOESE, 2004, p. 73).

Por essa análise, pode-se inferir que, Madagascar Olodum, em seu bojo se constitui de uma formação discursiva de resistência direcionada ao indivíduo negro, que através da memória histórica faz seu fundamental papel: despertar na consciência do negro a força de sobrepor-se à imposição ideológica, pela resistência cultural e histórica. Com a formação ideológica manifesta na formação discursiva da composição, procura dá identidade ao sujeito tomando como parâmetro as origens negras, as quais não se mostraram submissas à dominação eurocêntrica.

REFERÊNCIAS

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: literatura e história. São Paulo: Ática, 1995.

BOULOS JÚNIOR, Alfredo. Roma Antiga. Cap. 13. In__ História – Sociedade & Cidadania, 6º ano. São Paulo: FTD, 2009. p. 224-239.

HOSTETLER, Marian. They loved their enemies [Amaram os seus inimigos], Scottdale, Pa, USA: Herald Press, 1988. pag. 30-32. Disponível em:<http://portoghese.lanuovavia.org/portoghese_testimonianza_persecuzione_09.htm> Acesso em: 28 de Julho de 2010.

MUNANGA, Kabengele, GOMES Nilma Lino. Para entender o negro no Brasil de hoje: História, realidades, problemas e caminhos. 2 ed. rev. e atualizada. São Paulo: Global: Ação Educativa, 2006.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas, SP: Pontes, 2007.

SAID, Edward W. Cultura e resistência. Tradução de Bárbara Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

VOESE, Ingo. Análise do discurso e o ensino da Língua Portuguesa. vol. 13 São Paulo: Cortez Editora, 2004.