A evolução e o reinado mercadológico da música sertaneja - anotações...
A evolução e o reinado mercadológico da música sertaneja...
Como em todas as manhãs de domingo, recordando minhas origens e a família, assisti na tv o programa Globo Rural, onde foi exibida uma reportagem sobre a viola e a música sertaneja, a cargo do premiado jornalista José Hamilton Ribeiro.
História longa, muita coisa a contar e a estudar. Um universo histórico e cultural inteiro, ainda por visitar e inquirir.
Originalmente, o conceito de música sertaneja, nascido entre radialistas e profissionais de gravadoras, música sertaneja era, inicialmente o rótulo com o qual era classificada a música gerada no interior do interior que ia do Oiapoque a Chuí - nos estúdios conviviam Teixerinha, Tonico e Tinoco e Luiz Gonzaga (e a prova disto é que a "Moda da Mula Preta", de Torres e Florêncio foi parar no repertório do rei do baião e muitos dos sucessos de Teixeirinha e outros compositores do sul entraram no repertório de Tonico e Tinoco, que em alguns discos chegaram a vestir a indumentária própria dos gaúchos.
Foram muitos os bandeirantes, desde que, no início do século, o célebre Coronel Pires começou a pesquisar e gravar os ritmos musicais do interior de São Paulo.
Neste sentido, avulta rapidamente a importância de Tião Carreiro que, seguindo os exemplos precedentes, colocou a viola no centro da sua criação musical, elevando-a, ao mesmo tempo ao instrumento principal, chegando a criar um ritmo privilegiado para tanto, o "pagode", que fazia tanto o acompanhamento como solos e arranjos e, ainda gravando disco de solos com o instrumento Além disso, celebrizou-se como intérprete pela voz potente e grave que foi a marca registrada das duplas que formou e gravações que registrou e junto com Pardinho, foi, provavelmente, o primeiro artista a tratar de um assunto então escamoteado ou evitado, os preconceitos de classe e raça, através de seus personagens heroicos, do qual Catimbau (de "Rosinha e Catimbau") o mais acabado dos exemplos.
E os sinais de modernagens já apareciam nos anos sessenta, começaram a entrar instrumentos elétricos na música sertaneja - inclusive nos discos de Tião Carreiro e Pardinho (e lembro de "João Boiadeiro", grava por Moreno e Moreninho, onde o órgão elétrico é o instrumento de de arranjos e solos) abrupta mudança temática da música dos anos setenta refletia a crescente urbanização do país e a deslocação das populações da zona rural para o meio o urbano - caso de minha família inteira) -, e o impacto que resultou na previsivelmente irrefletida - mas, muito importante - a absorção das manifestações culturais globais, caso do cinema e o chamado West Spaghetti de Sérgio Leoni e o movimento hippie e o Rock, que fez surgir uma geração de sertanejos por eles influenciados, caso de Leo Canhoto e Robertinho (e a dupla João Mineiro e Marciano, na primeira fase).
E quem ouve música sertaneja com atenção não desconhece que a elaboração de arranjos de músicas sertanejas, especialmente nos anos sessenta e começo dos anos setenta do século passado, foram um imenso laboratório de experiências musicais e sonoras - e basta lembrar de dois exemplos, para que isto fique claro: as gravações de Silveira e Silveirinha (que depois, formou dupla com o Goiano Barrinha, um monstro da técnica de acompanhamento com solos de bordão), onde entravam numa mesma sessão de gravação o baixo tuba e a voz encantadora de uma experiente soprano (como em "Cigano") ou a sonoplastia das radionovelas inteiramente aplicadas nas sessões de gravação das trilhas do west spaghetti e Leo Canhoto e Robertinho (como em "Jack Matador").
Mas, os indícios de futura explosão e domínio de mercado já estavam assinalados em certos eventos do passado: as exitosas temporadas de Alvarenga e Ranchinho no Cassino da Urca, a venda de mais de um milhão de cópias do disco com a gravação de "Índia", cuja versão nacional havia sido feita por Ari Barroso e, depois, fato incrível, a venda de mais de um milhão e seiscentas mil cópias do disco com a gravação de "Saudades da Minha Terra", música composta por Goya e Belmonte e gravada por Belmonte e Amaraí num disco de estreia...
Falando da viola: talvez pelo fato de que fosse um instrumento mais fácil de ser tocado por indivíduos sem conhecimento alentado de música, fosse mais barato ou ser transportado, quando fosse o caso de leva-la a longas distâncias e, especialmente, por causa de sua utilização e divulgação pelas duplas sertanejas, tais como Zé Carreiro e Carreirinho, Zico e Zeca e, Tonico e Tinoco e muitos e outros, a viola, instrumento desenvolvido a partir de matriz árabe, foi mantida e entronada como o instrumento símbolo da música dos povos do interior, ao contrário do sul e nordeste, onde, o acordeon, invenção chinesa que se popularizou rapidamente em alguns países da Europa e foi transportada para as , chamada respectivamente de gaita e sanfona, substituiu a suplantou como instrumento de base e simbologia.
A entrada no mundo da música sertaneja de cantores e compositores que tinham acesso aos públicos da população, caso de Sérgio Reis, ou de estofo mais eclético e sintonizado com a MPB e a folk music americana, caso dos respeitáveis Renato Teixeira e Almir Sáter, foram importantes para chamar à atenção de divulgadores e da crítica (onde a primeira aventura em tal área foi de José Ramos Tinhorão), mas não tiveram grande repercussão, em termos de ampliação de público e vendas de discos e espetáculos, inclusive porque estavam inicialmente afastado do movimento do mercado.
Neste sentido, o que parece ter sido mais determinante para o salto de presença no mercado da gravação e da venda de shows foram a explosão popular da dupla Milionário e José Rico, conservadores quanto ao repertório (baseados em músicas do que se chama agora de sofrência, pontuadas aqui e ali, por músicas contagiantes ou de temática diversa), Chitãozinho e Chororó - cujas gravações estavam sintonizadas com mercado e a vida do ouvinte urbano da que outrora foi a música do sertão, egresso do campo e depois, Leandro e Leonardo e Zezé de Camargo e Luciano, que já faziam algo diretamente vinculado a um país urbanizado e que mergulhava num novo e promissor período político econômico. Todos, de alguma forma, estavam sintonizados com a mentalidade do público sertanejo, em parte, a população egressa do campo ou seus descendentes.
Mas a já longeva dupla Milionário e Zé Rico são, em tudo, um caso à parte: seu feeling para os ritmos do repertório - onde introduziram até coisas vindas do Paraguai e seu carisma musical, levaram até um famoso cineasta brazuca, Nelson Pereira dos Santos, a interromper uma filmagem ("A Retirada de Laguna", que nunca chegou a concluir), para iniciar a gravação de "Estrada da Vida", depois de vê-los cantando para uma multidão de 80.000 pessoas no interior do Mato Grosso. O filme teve bilheteria discreta, mas teve audiência até na China, para onde a dupla viajou numa turnê de espantoso sucesso, no rastro da exibição do filme).
E o exibicionismo ostensivo (divertido e brega) de joias de ouro de José Rico, em certa medida, tem correspondência com a transformação do mundo e da economia rural, que em três décadas, evoluiu da quase subsistência para o agronegócio - Goiás, por exemplo, nesse tempo, deixou o lugar de um estado pobre para ocupar de destaque no composição do PIB nacional.
A música "Fio de Cabelo", de Chitãozinho e Chororó, é fácil perceber a razão de seu sucesso: um grande e grudento rife gravado com naipe de cordas, uma melodia muito elaborada e uma letra apenas mediana falando de amor perdido, é a grande marca um momento de virada. Ao que parece, foi ela que, de algum modo, levou o ouvinte de sertanejo da época a perceber a mudança de tempo e costumes, onde se esvaziam os valores da família de origem rural, face os costumes e modas do mundo urbano.
Seguindo a trilha de seus antepassados musicais, as novas gerações da música sertaneja, sem medo dos riscos, continuam apostando em novidade e cruzamento de ritmos. Foi assim, por exemplo, com o surgimento do ..., onde se percebe facilmente a presença de características do vanerão e do samba duro. Mas, de algum para cá, foram mais longe e introduziram de vez batidas e timbres do pop rock e até levadas pontuadas do funk carioca, o que resposta rápida e positiva entre o público consumidor.a modernização de seus ritmos e a sua mistura com outros.
Mas há nisto tudo algo que chama à atenção: nos shows dos astros da nova geração de sertanejos, o momento em que a plateia vai de fato ao delírio é jaquele em que, invariavelmente, cantam as músicas da geração dos sertanejos dos anos 80 (aquela, onde ainda está evidente a raiz campeira, onde o indivíduo ainda se surpreende e se adapta com as mudanças provocadas pelos costumes urbanos), quando cantam com paixão "Fio de Cabelo", "Telefone Mudo" "Boate Azul", "Ainda ontem chorei de saudade" e outras. É como se fizessem disto uma espécie de alavanca para o ânimo do público, lá pela metade do show, o que indica algo de falha ou fadiga na coisa.
Faz mais de década, gente esperta ou incomodada começou a inventar rótulos para designar a música dos que se mantém fiéis aos ritmos do passado, com os vistosos nomes de "música caipira" e, mais recentemente, "música sertaneja de raiz". No meio disso há gente respeitável - o decano Rolando Boldrim, por exemplo. Mas, a aplicação destes rótulos caem por terra, quando se verifica que, nas gravações das duplas antigas, do mesmo disco que saia um clássico falando do sertão, se celebrizava uma música de dor de cotovelo.
Portanto, tais rótulos só fazem sentido na medida em que se constituem numa ferramenta de exploração de nichos de mercado, sem deixar de observar que os que fazem música às antigas, embora o façam com muita felicidade, caso de Zé Mulato e Cassiano, estão incorrendo, em certa medida, na repetição da fórmula do que - e muito bem - o passado...
- Muita gente não dá a mínima para a música sertaneja. Eu ouço e, gosto de muita coisa desse universo. E presto atenção nele - pois a sempre algo a aprender sobre mim, as origens e a minha gente...