ARTISTAS INVISÍVEIS (ARTIGO)

Um dia criei uma espécie de ouvidoria a céu aberto na calçada da rua do passeio público, em frente ao setor de registro da escola nacional de música da UFRJ. Cataloguei diariamente, ao longo de 13 anos, mais de 56 mil compositores. Detectei seus principais problemas, ouvi suas reivindicações, mapiei suas dificuldades, seus sonhos, suas necessidades, suas opiniões.

As questões aqui apresentadas foram compiladas do desejo coletivo de uma enorme parcela da população brasileira, justamente a parcela que constitui o cerne de nossa alma musical tão valorizada pelo mundo à fora, mas que dentro do nosso próprio país, se mantêm tolida, secularmente subjugada por uma insigne parcela dos que retêm o monopólio mercantilista da nossa cultura.

Do encontro com esses artistas, paladinos da real música popular brasileira, surgiu o meu primeiro livro voltado à questão do autor musical "Novas Histórias da Velha Lapa". Onde o espirito artístico de um povo dita cada linha, lançando-me, como um ambientalista cultural, à saga desesperadora em busca do registro de sua oralidade quase extinta. O incessante empenho pela preservação da memória de uma gente que faz arte guiada por sua alma cultural empírica, talentosa e irriquieta.

Mas um livro não é suficiente para sintetizar nossa pluralidade musical. Resolvi estudar o cinema, arte em que me tornei bacharel e que me possibilitou a realização de um outro grande sonho: a criação e direção do filme "O Maestro das Ruas do Brasil, um Mergulho na Alma Brasileira", um documentário cuja inexistência há muito tirava o sossego do meu coração havido por correção de injustiças. Um projeto realizado sem patrocínio, onde busquei Identificar e trazer à tona uma multidão de artistas populares, no sentido lato da palavra, com suas histórias e canções que o Brasil e o mundo até então desconheciam. Iniciando assim os primeiros esboços de um diálogo que tende a avançar por todas as esferas de nossa sociedade. É a ponta de um gigantesco iceberg submerso. É o surgimento de possibilidades não utópicas de dar voz aos que nunca tiveram vez. É a parte que me cabe neste enorme latifundio cultural.

Artistas Invisíveis, quem são?

Artistas invisíveis são os celibatários, os sacerdotes da cultura nacional. Aqueles que realmente fazem e mantêm a nossa arte genuína, motivados unica e exclusivamente pela força de um sonho, por uma ideologia natural, empírica, essencialmente cultural. É a parte sagrada da população fadada à criação de nossas essências culturais. São raízes brotadas do mais profundo do nosso solo. São as microcélulas de um corpo folclórico habitado pelo espirito das tradições. São os pilares de nossa construção artística. Os que tecem o gigantesco mosaico da cultura nacional. O mantenedores da nossa diversidade cultural. Os que por um outro lado, são os excluídos das máquinas gigantescas da industria cultural. São peças não aproveitadas pelo sistema e sua sistematização. Os que, apesar de tanto descaso e injustiças a que são historicamente vitimados, representam o que há de melhor no nosso âmbito cultural, o nosso produto de primeiro mundo. Mas que finalmente começam a sair detrás das cortinas dos palcos de todas as regiões do Brasil para fazerem o nosso maior e mais emocionante espetáculo.

Nonô do Jacaré e Ismael Camilo.

Marquei uma reunião com os compositores Nonô do Jacaré e Ismael Camilo em meu escritório na calçada da rua do passeio público naquela tarde ensolarada de quarta feira. Precisava sujeitar minha mais nova ideia a apreciação de tão ilustres mestres. A conversa pelo telefone estava meio truncada. O burburinho do bairro da Lapa, onde eu me encontrava, se misturava aos sons que vinham das vielas das favelas do Jacaré onde vivia Nonô e posteriormente da Vila Aliança, onde morava Ismael Camilo. Poucas horas depois eles apareceram, atendendo prontamente ao meu chamado. Camilo foi o primeiro a chegar. Apertou minha mão com seu olhar fraterno e um sorriso tímido. Logo em seguida surgiu Nonô solfejando um samba inédito entre dentes, sacolejando seu corpo bambo, levemente entortado pra frente. Estavam ali dois dos maiores compositores de samba da historia desse país. A multidão passava apressada, alheia as nossas nossas três figuras sentadas sobre velhos caixotes de madeira na calçada onde se realizava a nossa reunião. Nonô do Jacaré, entre tantas pérolas compostas, havia feito o genial "voa canarinho", hit da copa do mundo de 1982, gravado por Junior, cantor e jogador da seleção brasileira de futebol. Ismael Camilo havia acabado de compor o sucesso "deixa eu te amar", gravado pelo cantor AGP, onde pela primeira vez o samba atingiu recordes de vendagem jamais visto anteriormente. A reunião iniciou com suas reclamações em torno de suas dificuldades financeiras. Ambos tinham sucessos gravados, mas o que recebiam de direitos autorais mal dava para os alimentar. Nonô do Jacaré era mais pragmático, dizia que era uma pouca vergonha a covardia o que se fazia com o compositor brasileiro. Já Ismael Camilo tinha um tom mais suave. Falava que para poder sustentar os filhos e a esposa se virava como pintor de paredes na zona sul do Rio de Janeiro e que muitas pessoas duvidavam quando ele, todo sujo de tinta, dizia ser o autor do hit histórico cantado pelo famoso cantor AGP. Aproveitei a pausa para lhes falar do real motivo de nossa reunião: o meu desejo de montar o nosso próprio selo fonográfico. O selo das ruas do Brasil. Onde lançaríamos o compositor cantando suas obras. Onde a premissa era a de um artista consumir a obra do outro e assim fortalecemo-nos mutuamente. Os dois se mostraram encantados com essa ideia. Deram sugestões, rabiscamos meu caderno de pautas com várias anotações pertinentes ao assunto. Organizei toda a documentação e dei entrada nesse nosso sonho de mudar a história da musica popular brasileira. Camilo e Nonô passaram a compor e a me mostrar coisas maravilhosas, obras de arte imbuídas da mais absoluta genialidade. Mas em pouco tempo, Infelizmente, os dois vieram a falecer sem que nosso sonho ali se concretizasse.

Lamentavelmente o Brasil perde muito com a morte de seus grande gênios, mas perde muito mais com a falta de registro das memórias da genialidade de seu próprio povo, um acervo memorável que deixa de ser construído unica e exclusivamente por falta de visão dos que poderiam fazê-lo, mas que ainda não atinaram para a importância de se criar mecanismos para abranger essa gente que vive, trabalha, consome, paga imposto, vota e, acima de tudo, faz a arte popular brasileira. Suas obras, muitas registradas apenas em suas memórias se esvaem para sempre com o passar do tempo. Fico pensando se o nosso projeto tivesse ido adiante naquele momento. Quanto essa dupla, Nonô do Jacaré e Ismael Camilo, e outros milhares de artistas produziria de maravilha para a cultura musical brasileira.

Quantos gênios vão morrer anonimamente, quanta obra prima será enterrada tão profundamente, que nem os maiores arqueólogos e pesquisadores futuros serão capazes de reencontrar seus vestígios?

Toda quarta feira, ao meu chamado, diversos autores musicais se reúnem na calçada da rua do passeio público, em frente ao setor de registro da UFRJ para uma série de debates em torno da música popular brasileira. As reuniões são sempre calorosas. As vezes, pontos de vistas divergentes levavam alguns dos debatedores as raias dos confrontos pessoais. Mas busco mediar os conflitos, extraindo o melhor das partes, resumindo as conclusões de cada debate, criando uma síntese entre as diversas teses e antíteses apresentadas. A questão mais recorrente é com relação a situação do registro autoral. Nossos compositores sempre se queixaram do alto preço pago pelo registro de uma obra musical: R$ 15,00 por música, cobrado pelo setor de registro da UFRJ , além de uma taxa sobressalente de R$1,70 do boleto bancário.O fato é que geralmente cada compositor possui dezenas, centenas e até mesmo milhares de músicas compostas. O preço do registro é impraticável para a gr ande maioria desses artistas. Uma das soluções seria baixar consideravelmente esses valores. Por exemplo: se fosse cobrado o valor de R$1,00 por música registrada, haveria muito mais registro de música no Brasil, muito mais arrecadação das entidades que realizam esse serviço.

A escola nacional de música da UFRJ é o principal órgão de registro autoral do país, possuindo o nosso principal acervo musical. As obras ali registradas ficam arquivadas para sempre em papel comum e não recebem nenhum tipo de tratamento especial. Portanto os efeitos corrosivos do tempo deterioram todo esse precioso acervo naturalmente. Como hoje estamos na era da reprodutibilidade técnica, esse órgão público pertencente ao governo federal, deveria urgentemente, digitalizar todos os seus arquivos e disponibilizá-los (letras, partituras, nome dos autores, número e ano de registro) em seu site oficial. Onde qualquer pessoa no mundo poderia acessar as obras dos compositores que autorizassem tal exposição. Seria uma poderosa vitrine. Com toda a certeza a única janela de mostragem para a maioria dos artistas que ali registram suas obras. Haveria uma consequente explosão de nossa diversidade musical, possibilitando o aparecimento de novos difusores culturais de ta lentos fantásticos, de gêneros e estilos até então impensados, surgidos de todos os cantos dessa nação, oriundos de todas as camadas sociais, sobretudo das mais baixas, a enaltecer nossos ouvidos e corações com a grandeza da arte genuinamente brasileira, invadindo os meios de difusão da internet e outras janelas de mostragem gratuitas com a arte musical do nosso povo, seduzindo e encantando os ouvintes de todas as partes de um planeta globalizado.

JANELAS DE MOSTRAGEM

Os senhores Aristóteles Gomes e Roberto Ananias, dois compositores anciãos á beira de seus centenários. Donos de uma sabedoria que o tempo transmite a poucos, participam do debate semanal dos compositores das ruas, onde apresentei uma série de interrogações extraídas do tema "Janelas de mostragem". Embora ambos tenham nascidos numa época bem diferente, ainda no estado da Guanabara, quando a cidade do Rio de Janeiro era a capital nacional e também cultural da república brasileira. Os dois, como bons sábios que são, reconhecem o indispensável papel da internet num mundo pós-moderno. Entendem que este tem sido um meio eficaz de divulgação das obras dos autores desconhecidos. Que hoje é possível se fazer uma gravação musical caseira, um vídeo no celular, por exemplo, e postá-los em diversos sites de divulgação. Me ouvem repetir incansavelmente que estar fora da internet, é estar morto para o mundo artístico pós-moderno, já que em pouco tempo um compositor anônimo pode ter sua música divulgada em todos os cantos do Brasil e do mundo. Mas suas preocupações, sempre bem fundamentadas, se dão com relação a alguns tópicos que vale a pena apresentá-los: como receber pelo material baixado e distribuído pela rede mundial gratuitamente? É justo que o artista trabalhe de graça para sites que acrescentam milhares de dólares todos os anos em suas contas bancárias, enquanto estes, fomentadores de toda esta poderosa máquina, morra á míngua? Será que cobrar alguns centavos dos que desejarem baixar e até mesmo distribuir essas obras pela rede mundial de computadores não poderia ser o início de uma nova era para o artista popular brasileiro? Quanto a divulgação da obra musical de compositores desconhecidos pelos órgãos públicos de comunicação, como fica?. Uma rádio ou uma tv pública que dedica a maior parte do tempo de sua grade de programação a artistas famosos, tem contribuído para a difusão e democratização da cultura nacional? Veículos de comunicação pública que não permitem a entrada dos artístas desconhecidos em suas programações têm legitimidade? Será que tais instituições não fazem uso do mimetismo, da cópia, da repetição do que já vem sendo utilizado pelas redes privadas, pelos grandes feudos, a serviço dos senhores que monopolizam a nossa cultura? Como mudar toda essa situação de emparedamento, de claustrofobia em que o nosso povo artista se encontra? O que pode ser feito?

A POLÍTICA DOS EDITAIS

Infelizmente estes artistas populares a que este estudo se refere, não são contemplados pelas políticas dos editais. A maioria sequer sabe de sua existência. Não têm empresa de produção de arte com CNPJ,nem patrocinadores. Não demandam, vivem a margem das politicas públicas de fomentação. Muitos não possuem ainda um acesso amplo a internet, criando uma enorme lacuna a ser preenchida em nosso ambiente cultural. Uma das soluções para que haja uma correção, ainda que em parte dessa injustiça cometida contra a cultura nacional, é a criação de editais voltados para pequenos empreendedores artísticos individuais. Com verbas que variam entre mil e sete mil reais por projeto. Com divulgação em toda a rede pública de comunicação na ocasião das inscrições. Com todas as informações necessária, expressadas de forma clara e simples para os artistas que desejarem se escrever.

A VITÓRIA DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA.

Sempre que vou trabalhar com algum artista famoso da musica popular brasileira, faço questão de levar comigo um pequeno grupo de artistas desconhecidos do grande público, alguns com muito tempo de carreira, outros ainda iniciando os primeiros passos dessa longa e árdua caminhada. Procuro realizar intercâmbios, diminuir as distâncias, promover dialogos, criar um possível vínculo entre seus universos tão antagônicos. Foi assim nos trabalhos que realizei com Chico Anysio, Ivan Lins, Nonato Buzar, Alcione, Luiz Melodia, Paulinho Rezende, Sandra de Sá, Jorge Versilo, Carlinhos Lira, Pery Ribeiro, Daniela Mercury, Gabriel Pensador, Tony Tornado, Tibério Gaspar, Zezé Motta, Paulo Debétio entre muitos outros. Acho importante esse encontro olho à olho, mão à mão, da troca de energia, de palavras, de pensamentos. Pois essas intercessões são muitíssimo raras entre esses dois polos tão extremos da nossa mesma arte.

Certa ocasião eu estava escrevendo mais uma partitura musical para registro, quando o meu aparelho celular começou a tocar incessantemente. Ao atendê-lo percebi que do outro lado da linha havia alguém de voz feminina, incrivelmente mansa, afável, quase familiar, convidando a mim e os meus artistas das ruas para encontrá-la em uma reunião no prédio do Ministério da Cultura, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Fiquei profundamente satisfeito com o convite e dessa vez resolvi levar um grupo imenso, formado pelos nossos artistas invisíveis.

Ao chegar ao rol de entrada do suntuoso edifício público, fomos conduzidos por dois funcionários federais através de longos corredores bem arejados, com uma belíssima vista panorâmica da cidade do Rio de Janeiro. Ao abrir-se de uma enorme porta dupla, entramos em uma confortável sala de reunião, onde se encontrava sorridente a nossa espera, a própria ministra da cultura do Brasil, com sua voz mansa incrivelmente afável, quase familiar. A ministra nos cumprimentou um a um, com um incrível respeito, que tangenciava a própria devoção. Pela primeira vez na história de nossas vidas, fadadas à luta por dignidade e reconhecimento no campo artístico nacional, havia alguém realmente disposto a nos ouvir. Um membro do primeiro escalão do governo, sensível à nossa causa, preocupado em quebrar o silêncio a que fomos por muitas décadas condicionados. Alguém que desejava realmente entender o que sussurravam os artistas invisíveis das ruas do Brasil.

Desse incrível encontro surgiram reais lampejos de esperança. Agora havia gente importante que se importava com os artistas favorecidos. Pessoas dispostas a verdadeiros sacrifícios em prol da arte e da cultura brasileira. Que buscavam a qualquer custo, meios de se alcançar melhorias, justiça, transparência, responsabilidade social, imparcialidade na forma de gerir recursos públicos. Ali todos nós pudemos opinar, ajudamos a pensar, a criar projetos que venham ao encontro das verdadeiras necessidades dos artistas populares. Projetos elaborados e discutidos democraticamente com toda a classe artística e que possibilitam fantásticas criações, como a da secretaria da diversidade cultural, o fórum permanente de música, os microprojetos de cultura, os editais que contemplam o pequeno produtor artístico em todas as regiões do país. Testemunhamos o maravilhoso empenho de uma gente apaixonada pelas artes brasileiras, dotada de um extremo caráter patriótico, que busca resolver problemas aparentemente insolúveis da complexa cultura nacional.

Participamos dessa e de muitas outras reuniões no ministério da cultura, nas secretarias estadual e municipal de cultura, lugares de onde sempre saímos com nossas almas lavadas, com a certeza de que nossas vozes, antes sussurros incompreensíveis, ecoam bravamente das esquinas, das ruas, de todos os recantos onde se faz a arte desse grandioso país, para serem ouvidas. Nossos sonhos nunca foram e nunca serão vãos. Nosso grito tem surtido um poderoso efeito em todas as esferas da sociedade e sobretudo de um governo verdadeiramente democrático. E embora saibamos do muito que ainda tem a ser feito, podemos sim comemorar pelo muito que já fizemos. Como artistas brotados dessa terra fértil, onde, se plantando arte e cultura, tudo o mais da, sentamos ainda sobre caixotes e bancos de madeira, em salas improvisadas à céu aberto pelas ruas do Brasil, mas com o orgulho e a feliz certeza de que começamos a ser vistos, que já não somos mais tão invisíveis. (Dudu Fagundes, O Maestro Das Ruas).