Ó ABRE ALAS, O BRASIL VAI SAMBAR: O SAMBA DURANTE A DÉCADA DE 1930
Este artigo trata do desenvolvimento cultural na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, abordando especificamente a canção, o samba-canção como produção social e cultural durante o período, já que a música reflete momentaneamente o cotidiano da sociedade que a produz e divulga.
A nova mentalidade a respeito da cultura que se esboça durante os anos 30, mais democrática, permite o destaque de muitos compositores e a proliferação de vários gêneros musicais como a marcha, o samba canção, o samba-choro e o samba carnavalesco, o bolero e o chá-chá-chá. Será abordado no artigo o enaltecimento do samba através de obras do compositor Noel Rosa e o surgimento do samba-exaltação, no final da década mencionada, pela obra “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso.
O samba durante a Revolução da década de 1930
A Revolução de 1930, que dá fim à Primeira República, é um acontecimento de grande importância histórica para o Brasil. Foi um movimento que repercutiu intensamente na cultura, fazendo com que os elementos desta, de certa forma, adquirissem novas configurações, novos ambientes e dimensões diferentes e inovadoras.
A música popular brasileira tem sua grande primeira fase durante o governo de Getúlio. É a chamada Época de Ouro, em que se profissionaliza, vive uma etapa de grandes produções e padrões que terão vigor pelo resto do século. O início dos anos trinta é marcado pela expansão do samba e da marchinha. O samba, particularmente, se torna o principal gênero musical no Brasil. Desempenham papel importante no enaltecimento deste gênero os compositores Noel Rosa, Lamartine Babo, João de Barro, dentre outros.
Noel Rosa, que revolucionou a poesia da música popular no Brasil, usou preferencialmente o samba em sua obra. Nascido no final de 1910 mostrou desde cedo a sua inclinação para a música e poesia, em 1929 já manejava o violão com desembaraço. Em 1930, Noel rosa começou a fazer-se conhecido, participando do grupo “Bando de Tangarás”. Seu primeiro sucesso, mantido inédito durante um ano, “Com Que Roupa?”, um samba – carnavalesco composto em 31 inspirou anúncios comerciais, paródias, charges, crônicas, entrevistas e até influenciou a fixação do dito popular “com que roupa”.
“Agora vou mudar minha conduta, eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar/ Vou tratar você com a força bruta, pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Agora, eu não ando mais fagueiro, pois o dinheiro não é fácil de ganhar/ Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro, não consigo ter nem pra gastar/ Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Eu hoje estou pulando como sapo, pra ver se escapo desta praga de urubu/ Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu
Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?”
(ROSA, Noel: Com que roupa?, 1931)
A canção empresta, metaforicamente, significação patriótica tanto na poesia quanto na melodia.
“Segundo seus biógrafos, João Máximo e Carlos Didier, Noel confessou certa vez a um tio que ‘Com Que Roupa’ retratava de forma metafórica o Brasil – “ um Brasil de tanga, pobre e maltrapilho”. Daí, talvez, a semelhança de seus compassos iniciais com os do Hino Nacional Brasileiro (problema corrigido pelo músico Homero Dornelas ao passar a melodia para a pauta).”
(SEVERIANO; ZUZA, pág. 105)
Em 1932, Noel Rosa conheceu Oswaldo Gagliano (Vadico) e daí nasce a parceria que rende execelentes composições: Cem Mil Réis, Conversa de Botequim, Feitiço da Vila e outros. No entanto, segundo MARIZ, essa associação rendeu muitos comentários sobre até que ponto teria Vadico colaborado, qual seria o grau de sua participação na composição das músicas destes sucessos. Embora executasse perfeitamente o violino, Noel não sabia escrever música. Este seu desempenho na parceria com Vadico teria sido uma avaliação limitada da corrente que diminuía o mérito do compositor. Contudo, das músicas da parceria, cinqüenta por cento são de autoria de Noel.
A partir de 1934 a saúde de Noel fica debilitada, contudo, os sucessos continuam até 1936, pois falece no ano seguinte. São oito anos de carreira artística de um grande talento que, em parceria com incríveis outros compositores brasileiros (Ari Barroso, Ismael Silva, João de Barro, Lamartine Babo, dentre outros), movimenta os carnavais, os bares, festas e corpos dos brasileiros durante a década de trinta e muitas outras seguintes.
Ari Barroso foi também um grande esteio na música popular brasileira. Nascido em 1903, filho de um músico, contrariando a vontade da mãe, recusou a carreira de médico e começa a compor aos quatorze anos. No início da década de 30, Ari Barroso já havia granjeado nome considerável no Rio de Janeiro. A música vencedora do concurso no carnaval de 1930 foi Dá Nela, de sua autoria. Em 1939, Ari Barroso compôs Aquarela do Brasil, samba que contém, em sua canção, clara declaração de amor ao país.
“Brasil/ Meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus versos/ Ô Brasil, samba que dá/ Bamboleio que faz gingar/ Ô Brasil, do meu amor/ Terra de Nosso Senhor/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ Ah, abre a cortina do passado/ Tira a Mãe Preta do cerrado/ Bota o Rei Congo, no congado/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ Deixa, cantar de novo o trovador/ A merencória luz da lua/ Toda canção do meu amor/ Quero ver essa Dona, caminhando/ Pelos salões arrastando/ O seu vestido rendado/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ Brasil/ Terra boa e gostosa/ Da morena sestrosa/De olhar indiferente/ Ô Brasil, samba que dá/ Bamboleio, que faz gingar/ Ô Brasil, do meu amor/ Terra de Nosso Senhor/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ Oh, esse coqueiro que dá coco/ Onde eu amarro a minha rede/ Nas noites claras de luar/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim/ Ah, ouve essas fontes murmurantes/ Aonde eu mato a minha sede/ E onde a lua vem brincar/ Ah, este Brasil lindo e trigueiro/ É o meu Brasil, brasileiro/ Terra de samba e pandeiro/ Brasil, Brasil/ Pra mim, pra mim”
(BARROSO, Ari: Aquarela do Brasil, 1939)
Aquarela do Brasil fez grande sucesso no exterior, sendo consagrada como o segundo hino da nacionalidade. É a obra mais representativa durante sua carreira, pois traz um aperfeiçoamento não visto até então na música popular brasileira.
“Quase vinte anos depois, ele mesmo descreveria- de forma bombástica- a criação de “Aquarela do Brasil”, em entrevista à jornalista Marisa Lira, do Diário de Notícias: “ Senti iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, (...) do cenário sensual já tão explorado. Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clangor de emoções. O ritmo original (...) cantava na minha imaginação, destacando-se do ruído da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de uma só vez. Grafei logo (...) o samba que produzi, batizando-o de “Aquarela do Brasil”. Senti-me outro. De dentro de minh’alma extravasara um samba que eu há muito desejara. (...) Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso.” “
(SEVERIANO; ZUZA, pág. 177)
Como a maioria de suas composições era samba, é neste gênero musical que será empregado estes requintes e que serão conhecidos a partir daí, como sambas-exaltação. O samba-exaltação vinha exatamente ao encontro dos interesses da ditadura de Getúlio Vargas, que logo passou a incentivar a multiplicação de produções do gênero. O principal responsável pelo crescimento do número de ouvintes e do mercado dessas novas mídias foi o rádio, que difundiu músicas, notícias e valores a partir da década de 30. O resultado foi o surgimento de várias composições que consolidaram o prestígio do samba-exaltação, como “Canta Brasil”, de Alcir Pires Vermelho e David Nasser, em 1941 e “Exaltação à Bahia”, de Herivelto Martins, em 1943.
BIBLIOGRAFIA:
MARIZ, Vasco. A canção brasileira. Rio de Janeiro: Departamento de imprensa Nacional, 1959.
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, Vol. 1: 1901-1957. São Paulo: 34, 1997.
CASALECCHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo: Contexto, 2002.
VASCONCELOS, Gilberto & SUZUKI Jr, Matinas. “A malandragem e a formação da música popular brasileira”. FAUSTO, Boris . História da Civilização Brasileira (O Brasil Republicano), Tomo III, vol 4, SP DIFEL/Difusão Editorial S.A., 1986.