Aniceto do Império – Um centenário esquecido.
O começo do século XXI tem sido pródigo em efemérides comemorativas de aniversários centenários de diferentes nomes da música popular brasileira que fizeram valer nossa cultura. Com maior ou menor estardalhaço, tivemos as comemorações dos centenários de Ary Barroso, em 2003; de Lamartine Babo, em 2004; de Cartola, em 2008; de Carmen Miranda e Ataulfo Alves, em 2009; de Adoniran Barbosa e Noel Rosa, em 2010; de Mário Lago, em 2011, e, de Luiz Gonzaga, agora em 2012. Isso para ficar apenas nos de maior cobertura midiática. Louvando o valor de cada um dos homenageados por diferentes mídias, e de variadas formas, todos eles de méritos incontestáveis, verificam-se entre alguns esquecimentos, um que, no mínimo, provoca reflexões: o de Aniceto de Menezes e Silva Júnior, o Mestre Aniceto do Império, nascido em 11/3/1912, no bairro carioca do Estácio, menos de três décadas após a abolição da escravidão. Mestre do samba, Mestre do partido alto.
Aniceto trazia em suas veias a mais profunda ancestralidade africana. Era neto de escravos. Ele inclusive cantou a história de um avô, que bem poderia ser o seu, no partido alto “Atroz cativeiro”, gravado por ele no LP “O partido alto de Aniceto e Campolino”. Pouco depois de nascido, seus pais se separaram, foi viver com dona Risoleta Arlói Vieira, e passou por diferentes bairros do subúrbio carioca: Encantado, Engenho de Dentro e Piedade. Por fim, foi morar com a mãe, carnavalesca e sambista, e, fundadora da Escola de Samba “Capricho do Engenho Novo”, da qual logo se tornaria diretor de harmonia. Frequentou blocos e escolas de samba pelos subúrbios adjacentes de Madureira, até que, em meados dos anos 1930, ingressou na escola de Samba Prazer da Serrinha, no morro da Serrinha em Madureira, e lá, em 1947, foi um dos fundadores da Escola de Samba Império Serrano.
Seguindo uma cruel continuidade, vinda do tempo da escravidão, pouco pode estudar. Consta que, devido à sua facilidade de expressar-se e fazer apreciações acima da média, acabaria saindo da escola antes de completar o antigo primário. Os professores, sim os professores, consideravam que ele prejudicava o bom andamento das aulas. Mas não perdeu o estro, tanto que tornou-se orador oficial do Império Serrano. Foi trabalhar no cais do porto, como estivador, e lá, envolveu-se no lendário Sindicato dos Arrumadores, do qual tornou-se um dos líderes, além de promover rodas de samba com outros trabalhadores da estiva, para cantar e folgar em batuques e partidos altos.
Defensor e divulgador do jongo, que conheceu ainda criança, “o jongo que ouviu falar”, segundo suas palavras, era o do tempo dos escravos. O jongo que os negros bantuzis trouxeram e desenvolveram na região do Rio, Minas, Espírito Santo”, segundo disse em entrevista à jornalista Valéria Fernandes. Na contra capa do LP “O partido alto de Aniceto e Campolino”, o jornalista Moacyr Andrade, assim escreveu: “Aniceto, estivador aposentado, porte físico de rei negro, foi um contemporâneo mais jovem das figuras lendárias – Aço Humano, João Alabar e outros, todos “rezadores” – de que fala em “Raízes da África”, faixa que abre o lado B deste LP”.
Essa ancestralidade africana pode ser percebida em sua musicalidade, em seus versos de partido alto e em sua voz possante de preto velho. Aniceto deixou cerca de 600 composições, e nem dez por cento delas foram gravadas. Ele mesmo deixou apenas dois LPs gravados, sendo um deles, em conjunto com Campolino, outro nome esquecido. Esse primeiro disco, foi lançado em 1977, quando mestre Aniceto já estava com 65 anos de idade. Resta-nos ouvir suas gravações podendo avaliar a riqueza de sua arte e lamentar a ignorância dos detentores do poder por desperdiçarem o talento desse emérito partideiro que, ao morrer, levou consigo toda uma gama de ensinamentos e musicalidades que poderiam ter sido melhor registrados, resguardando para as gerações futuras sua sabedoria herdada de milênios.
Torcemos para que algum produtor de sensibilidade venha a gravar o que ele deixou composto. Mesmo que sua ancestralidade, seu conhecimento rítmico, sua voz e sua ginga não estejam mais presentes.
A memória histórica é uma operação complexa de construção e reconstrução. De avivamento e de apagamento. A memória coletiva não existe apenas por si só. Ainda mais na sociedade contemporânea, midiática e escolarizada, onde a memória coletiva ancestral e oral vai se perdendo mais e mais. E nessa construção e reconstrução, nada é isento. A memória das tradições negras são tão segregadas quanto o próprio negro, que para cá foi trazido à sua revelia, mas que aqui construiu riquezas e deixou inestimáveis legados culturais, cujo ponto mais divulgado e conhecido é a música, especificamente falando, o samba. No entanto, e a história de Aniceto demonstra isso, para ele tem sobrado apenas as migalhas, inclusive migalhas da própria memória.
Mestre Aniceto do Império Serrano fez 100 anos nesses 2012, e não houve comemorações a respeito. Queremos aqui louvar o mestre, agradecer seus ensinamentos e pedir desculpas por nossa ignorância coletiva, pois a nós, que aqui lutamos nesse Brasil de enganos e desenganos, basta-nos a dor de saber que nem ao menos soubemos guardar, como deveríamos, a memória desse grande sambista que foi Mestre Aniceto do Império.
Fica a lembrança, para que se promovam, mesmo que tardiamente, comemorações saudando sua memória, quem sabe no seu aniversário de 101 anos, no ano que vem, pois se o samba é hoje um produto de exportação e valorização nacional, muito disso se deve a esses pioneiros, como Mestre Aniceto, tantas vezes esquecidos, ou, nem mesmo, lembrados.