Wando: A morte do cantor
Na década de 1970, a cantora argentina Mercedes Sosa gravou a canção “Si se calla El cantor”, de H. Guarany, cujos versos diziam: “Si se calla El cantor, calla la vida/porque a vida, la vida misma es todo um canto”. A canção entoada por Mercedes Sosa seguia exortando o cantor, defensor dos humildes, dos que trabalham, dos que sofrem. Era o auge da “canção política”. Engajamento social. Música de protesto e repressão política. Ditaduras militares mordiam a carne da América Latina.
No entanto, esse momento era sentido de forma diferente pelas diferentes classes sociais, tendo em vista, inclusive, a censura aos órgãos de informação. Para o povo em geral, a opressão cotidiana vinha de antes do golpe militar de 1964, continuaria durante a ditadura e seguiria depois dela, já na democracia. Dor cotidiana. Opressão cotidiana. Para escapar dessa dor cotidiana, pequenas alegrias cotidianas. Entre elas o amor. Na alma popular o amor é a alma do sucesso. Sim, o mais duradouro na música popular, conforme disse em artigo para o jornal O Dia o cantor e compositor Reginaldo Rossi, é o canto do amor. Ainda segundo Reginaldo Rossi, “Quando o chifre dói, o diploma cai da parede”. Brega, cafona, romântica. A música popular sempre tem que pagar o preço pelo seu sucesso.
Mas, a música romântica está cravada na alma popular. O rótulo brega é transformado em purpurina. É o amor. E Wando fez isso como poucos, cantou o amor, propiciou à platéia, em especial a platéia feminina, vivenciar a fantasia de ser luz, raio, estrela, luar. Ícones supremos do romantismo. Entre tantas opressões, a opressão sobre a mulher é a mais longa e permanente nesse mundo de despautérios. O amante latino, aquele cantor que declama para a amada, “Me suja de carmim/ Me põe na boca no mel/ Louca de amor/ Me chama de céu”. O amor sem preconceitos e barreiras, leve e sensual. Sem amarras. Sem surras. Sem falsas juras de amor.
“Chora coração/ Chora coração/ Passarinho na gaiola/ Feito gente na prisão.” A prisão política até teve anistia. Por pior que tenha sido, e foi. Pode ser superada. Mas a opressão do homem e da mulher comuns, não. No caso feminino, a Lei Maria da Penha, que criminaliza a agressão contra a mulher, ainda fica dependendo de julgamento superior. Em mulher não se bate nem com uma flor, diz o malandro embriagado.
Wando, obrigado, gritam fãs ensandecidas, calcinhas na mão, na ânsia da libertação, pois o amor, “É o galho que se dobra/sob o corte do facão/ É o mar que sai dos olhos/ Pra banhar a solidão.” Sim, se se cala o cantor, cala-se a vida. Mesmo que suas canções estejam, e estarão, tocando em vinis, cassetes, CDs, MP 3 e outras mídias pelas casas e bares do país, nas entranhas do povo. Que só quer amar. Pois foi assim que homem e mulher, fogo e paixão, puderam, juntos, gerar a vida.
Seu canto, sua voz, se tornaram a voz de milhares e milhares de homens e mulheres que ao entoarem suas canções puderam embalar seus romances e sorrir por fugazes momentos em que a vida se fez melhor na beleza do amor. Calou-se o cantor, mas suas canções continuarão a ecoar no coração do povo.