Lembranças sonoras
Sei muito bem o que causa em mim re-ouvir um canção, creio que posso “reiterar” algumas delas e explico já, já. Ouvir uma que já ouvi, é algo bem distinto de ouvir alguma outra pela primeira vez. Nem sempre, ao ouvir algo novo tenho uma sensação agradável, muitas vezes pode acontecer o contrário, posso me agradar depois de bastante ouvir algumas, posso não me agradar nunca de outras, é um instinto meu, creio. Não sei explicar porque não gosto de uns tipos, sei que a sensação me é desagradável e, com as que gosto, sei que gosto e posso tentar explicar porque gosto, mas isso se torna meio enfadonho pra quem não conhece alguns intervalos melódicos, acordes, inversões, modulações e outros termos teóricos, só que antes mesmo de eu conhecer esses símbolos sonoros, podia gostar e já gostava de algumas músicas e não sabia porque gostava, sabia sim que a achava bela, mas não sabia nada mais, nem as notas musicais.
Uma vez, quando eu era solteiro ainda, convidei uma garota amiga minha e que depois foi namorada, pra gente ir a um concerto no teatro. Ela foi, nós fomos, mas antes ela me disse que nunca tinha pensado em ir a um concerto porque não entendia aquele tipo de música. E eu aproveitei para dizer pra ela que eu também não entendia, o que era mesmo interessante era a gente procurar sentir os sons. Vou então usar o verbo sentir, pode ser que assim eu me saia melhor nessa explicação.
Volto a falar das audições primeiras e secundárias de uma melodia. Digamos que eu ouça uma palavra que esteja numa canção que eu goste: janela, deusa, rosa, confraria, garota, ouça... ou mesmo eu escute um assobio pela rua, quase sempre essas duas coisas são contagiante e logo começo a entoar a cantiga ou a arremedar o assobio. Já comprovei que uma boa gargalhada, um solfejo de uma canção alegre ou mesmo uma animada conversa pode afugentar meu mau-humor. Esse contágio é fatal até pra passarinhos, já observei que eles estando em galhos ou gaiolas são contagiados por expressivos sons musicais que escutem por perto e logo começam o seu trinado também. Sem querer atribuir nada às ciências dos místicos, sinto a simples vibração sonora me despertar e convidar, porque na vibração do canto ou do assobio, estou de certa forma trilhando um caminho, como uma velha e conhecida estrada, que tem começo meio e fim e ainda vários quadros atrelados á minha lembrança.
Certa feita em 1974, eu estava tocando bola com um primo meu, na rua dos fundos da casa do meu avô em Aracati, o local ainda não era calçado e havia até poças de água e era de tardezinha. A trilha musical daquele momento era um piano lento em menor e a voz de Roberto Carlos cantando: "eu disse adeus, nem mesmo eu acreditei mas disse adeus... mas foi melhor dizer adeus naquela hora pra não chorar depois". Era a radiadora de um circo situado bem próximo, na praça da caixa dágua, lembro-me que naquele momento, eu mesmo meio suado por causa do jogo, fui tocado pela música e a lembrança da bela Josilene, minha colega de sala e minha grande paixão adolescente. As vezes imagino que eu sempre tive alma de velho por coisas sentimentais, senão como explicar que um garoto de treze anos que nunca soube o que era uma despedida, ou um sentimento nostálgico similar, se enternecer por canção tão adulta e carregada de drama e desengano que, ainda nem pensava em viver. Seria eu já dotado de um bem desenvolvido diapasão para estar afinado com o sentimento realmente vivido pelo compositor e bem interpretado pelo cantor e os músicos? Talvez sim, se não foi isso, foi só sentimento mesmo e não sei o que foi se não foi uma das duas coisas. Conto mais dois casos, o primeiro foi o de uma neta de uma senhora moradora da Ilha do Governador no Rio de Janeiro, a menina contava uns oito anos e se emocionava e chorava ao ouvir o hino nacional brasileiro. O segundo se deu comigo mesmo ao ouvir uma peça nunca antes ouvida por mim e foi na sala Leopoldo Miguez também no Rio. O ano era 2002 e eu estava bem, ou seja não estava cansado, nem chateado, nem preocupado, nem nervoso... ao contrário de tudo isso eu estava bem humorado antes de entrar no auditório. Sentei-me ao lado de uma garota que podia ter uns dez anos, ela segurava uma flauta doce ao lado de uma mulher que podia ser sua mãe. Eu aguardava bem animado o início da execução, no meio daquele burburinho de sons dos músicos no palco se exercitando no instrumento. Aí o espala entra e em pé, começa a friccionar a nota mi do violino para se iniciar a afinação, lá, ré, sol. O silencio se faz na platéia e em seguida soam aplausos para o maestro que entra, cumprimenta o espala e o auditório. Pra encurtar a história digo que aquela peça do Henrique Osvald me atingiu em cheio, e logo aos primeiros compassos me senti dominado, derramado copiosas lágrimas e soluçando como um menino. A garotinha ao meu lado ao me ver e ouvir os suspiros do chorão aqui, se vira pra mulher e a interroga preocupada – será que ele está passando mal? – não eu não estava me sentindo mal, eu só estava chorando emocionado por algo que não definia e que me chegou com aquela música.
Existem canções que me tocam pela poesia e outras que fazem isso simplesmente pela melodia.
Encerro por aqui essas impressões sobre músicas que escutei, citando a descrição feita por Chico Buarque na música “a banda”, onde toda a cidade se enfeita e é de uma forma ou de outra, tocada pela banda que passa cantando(tocando) coisas de amor.