A INCULTA RECEPÇÃO DA LÍNGUA INGLESA NAS MÚSICAS QUE TOCAM NO RÁDIO: O caso de There’s no more corn on the brazos e a transcriação dos Lee Bats

A INCULTA RECEPÇÃO DA LÍNGUA INGLESA NAS MÚSICAS QUE TOCAM NO RÁDIO: O caso de There’s no more corn on the brazos e a transcriação dos Lee Bats.

Prof.ª Dr.ª Cristina de Fátima Lourenço Marques – UNIP

A recepção da língua inglesa no país é um fator que remonta ao império, quando começou nosso processo de endividamento por meio de financiamentos com banqueiros ingleses. Mas, de fato, até a década de 50 do século XX, a língua francesa era culturalmente a mais valorizada no país, valorização que vinha de uma tradição dos séculos XVIII e XIX, por meio da arte e da literatura francesas que serviam como modelo cultural para grande parte do mundo.

Como observa Gisvaldo Bezerra, a influência da língua inglesa está associada ao universo da mídia e dos conceitos que são transmitidos ideologicamente por ela:

“Esse universo é parte constitutiva dos modos de vida na contemporaneidade. Ele parece abranger literalmente todos os setores da sociedade e se fazer presente de forma mais ou menos explícita no nosso cotidiano. O uso de termos e expressões da língua inglesa deixa marcas, inaugura racionalidades onde quer que ela se infiltre. Como uma espécie de canto da sereia, somos envolvidos de maneira sedutora especialmente pela mídia. Em conseqüência disso, as relações entre o inglês e prazer, felicidade, êxtase, sofisticação são repetidamente reiteradas nos anúncios e propagandas, nos filmes e séries, nas músicas e revistas. Além disso, a idéia de ser “descolado”, “antenado” e fazer parte de um clube, que promete “nada além do melhor”, está associada a tal língua. Em virtude disso, somos impelidos a conhecer, estudar, integrar esse universo, que promete garantir desde os melhores empregos − como demonstram diariamente os anúncios classificados dos jornais − até momentos sucessivos de prazer a serem consumidos no estilo fast food.”

(ARAÚJO-SILVA, Gisvaldo Bezerra. “A Língua Inglesa Como Imperativo da Globalização” em: Página da Educação, n.º 185, serie II, 2009, p. 38)

Não são poucas as obras que discutem a importância da utilização de leitura de letras de música para o aprendizado da língua inglesa, entre os quais podemos citar os trabalhos de Miragaya , Murphey , Ferreira , Howard e Paiva além de vários artigos na internet.

No geral, se considera útil o ensino de inglês com recurso da música, existindo inclusive livros didáticos que vem acompanhado de recursos de áudio e atividades programadas para o trabalho com as letras das canções. A força desta atividade com música está nos próprios recursos áudio-estéticos da música e no aspecto lúdico que ela envolve. Porém, a língua inglesa é um elemento relativamente recente no âmbito das relações socioculturais do Brasil. Até a década de 60 do século XX ela ainda divida espaço com o ensino da Língua Francesa, tanto nas escolas públicas quanto particulares. A música inglesa passou a dominar grande parte da programação de emissoras de rádio, notadamente as de freqüência modulada (FM) a partir desta mesma década, tendo em vista o sucesso mundial de ritmos como o rock, o funk, a soul music. É claro que esse sucesso mundial vinha ancorado no poder das grandes gravadoras, em geral, sediadas nos USA.

Esse impacto da chegada em grande quantidade das músicas em língua inglesa no âmbito da audição no Brasil, bem como a questão do cinema e da televisão, gerou um amplo espectro de contradições e ambigüidades. O ensino de inglês nas escolas seguiu, por outro lado, um ritmo menos empolgante, se valendo de uma situação didático-pedagógica que ia além das especificidades do ensino de língua estrangeira, mas que envolvia vários aspectos socioculturais e econômicos do país. Assim, o conhecimento da língua inglesa no Brasil, em geral, foi deficitário, não tanto por um certo sentido de valorização dos recursos da língua nacional ou pátria , mas sim pelas situações deficitárias da educação no Brasil como um todo e que programas de alfabetização como o MOBRAL, Projeto Minerva e Telecurso tentavam diminuir. Havia, além do público em idade escolar, uma considerável parcela da população em idade posterior que não tinha tido no âmbito de sua vivência escolar qualquer base para compreensão da língua estrangeira, especificamente do inglês. Como a questão de se priorizar o aspecto gramatical e estrutural da língua inglesa em detrimento de estratégias de aquisição do idioma em âmbito prático, escrito e oralizado.

Dois exemplos são salutares para compreensão desse panorama. Na obra Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins, depois transformada brilhantemente em filme, direção de Guel Arraes, existe uma cena em que Leléu diz a sua amada Lisbela “I Love you”, e esta pergunta o significado da expressão estrangeira, ao que Leléu responde que achava que era uma expressão francesa que significava primavera. Noutro exemplo, um comercial de televisão de um instituto de idiomas mostra uma cena de sofá na sala, em que um casal assiste televisão e o namorado oferece uma música em inglês para a amada, sem conhecer a letra, embora a música tivesse uma sonoridade de balada romântica, tratava a figura da mulher num âmbito machista e preconceituoso, a namorada que sabia inglês dá um bofetão no incaulto namorado e encerra o namoro.

Caso muito ilustrativo da questão da recepção da língua inglesa em terras tupiniquins é a da música “There’s no more corn on the brazos” do grupo holandês The Walkers. A música fez enorme sucesso no Brasil no início dos anos 70. Sua sonoridade romântica formada por um dedilhado de guitarra de Gert Michelsen, a voz melancólica do cantor Torben Lendager, uma introdução com sonoridade de flauta andina chorosa e um coro lento de o-ohoo a cada frase deram a fórmula deste sucesso, inesquecível para muitos ainda.

Mas essa impressão musical romântica levou a grande maioria do público que apreciava esta canção e que não tinha conhecimentos de inglês a pensar no significado da letra com base nessa mesa impressão. Num efeito curioso, a imaginação deste público colocava sugestões de palavras de amor, de idílio romântico na audição das incompreensíveis palavras. Deve ter causado algum ligeiro estranhamento o fato da letra da canção não ter palavras conhecidas como “Love”, “Heart”, “Darling” ou “Baby” tão constantes em músicas românticas, mas o fato é que a melodia suplantou essa ausência vocabular com um imaginário fundado no campo semântico das músicas de amor.

Postada em vários vídeos no Youtube neste início de século XXI, a canção permanece sendo ouvida por variado público. A observação de alguns comentários a esses vídeos vem confirmar o modo como a música foi recebida pelo público que não tinha conhecimento de inglês no Brasil. Num dos vídeos, um certo Joaquinzão escreve: “maravilha de musica ah bons tempos de infancia quando eu ouvia esta musica quantas recordações maravilhosas,obrigado por postar esta maravilhosa canção.”

Nos comentários deste mesmo vídeo Nelia214 escreve: “ola você não sabe como eu procurei esse vídeo . Essa musica nossa me traz tanta lembrança de coisas tão boas que já vivi nessa vida ameiiiii ! bjs.” Os beijos são para o postador do vídeo, um certo 5zomaar, que é holandês e provavelmente pouco ou nada compreendeu dos comentários postados pelos brasileiros. Um outro, com o pseudônimo de C310c519c0 comentou acerca dos “bailinhos” tão freqüentes na juventude dos anos 70: “esta é pra mata a saudade dos velhos tempos de bailinhos nas casas dos amigos cada sábado era em uma casa que saudade pena que nunca mais irá voltar”. Em outro vídeo com a canção, postado por Alexsia31 , que se apresenta como uma jovem brasileira, lemos um comentário de Mateus9119 que escreve: “ke música maravilhosa, chego choro quando escuto, hoje já não faz musicas assim, a moda hoje e reboleichom lobo mal, ke lastima.”

Esta falsa recepção do significado da música no Brasil acabou sendo reforçada e aproveitada por artistas da chamada música brega. Não se está aqui colocando pejorativamente o gênero, que tem aspectos interessantes e valiosos na história da música brasileira, mas efetivamente o gênero também abarca um conjunto de artistas e de obras de caráter dúbio no âmbito da sua avaliação artístico-musical. Se valendo do modo como a canção dos Walkers foi apreciada pelo grande público, duas versões substancialmente diferentes do significado da letra foram produzidas. Um certo João Viola, na década de 80 fez uma versão da música, com o título de “Marcas de Amor”, aproveitando apenas a melodia, modificou totalmente a letra em função de um imaginário de música romântica, porém, a letra produzida ficou apenas no nível da absoluta banalidade e do kitsch:

“Foi bom demais, pena que teve fim, o ohoo ohoo

Porque tanto amor terminar assim, o ohoo ohoo

Lembranças tão vivas, marcas de amor, o ohoo ohoo

Vão ficar para sempre dentro de mim onde eu for, o ohoo ohoo

Sonhos iguais, lindos planos, o ohoo ohoo

No fim, vejo só desenganos, o ohoo ohoo

Lembranças tão vivas fazem doer, o ohoo ohoo

Sem razão, nos deixamos tudo se perder, o ohoo ohoo

A paupérrima versão é assinada por João Viola, Neri Batista e Cilinha. Reginaldo Rossi, um cantor de maior sucesso e expressão no gênero brega também fez sua versão da música do The Walkers, com o título de “Eu acho que vou chorar”:

Quero voltar para o interior

Hum, hum, hum, hum, hum

Pra no campo, correr, sobre a relva deitar

Com um grande amor sonhar

E sonhar que outra vez um menino eu sou

Hum, hum, hum, hum, hum

Livre, correndo, só pensando em brincar

Comer, dormir, sonhar

E sonhar com os campos, com a mata em flor

Hum, hum, hum, hum, hum

Com as águas do rio, onde vou me banhar

E um peixe bom... Pescar

Quero voltar para o interior

Hum, hum, hum, hum, hum

Pra no campo, correr, sobre a relva deitar

Com um grande amor sonhar

E é tanta saudade nesse meu coração

Hum, hum, hum, hum, hum

Dos domingos, na missa, onde eu ia cantar

Eu acho que vou chorar

E são tantas as lembranças de tão lindo lugar

Hum, hum, hum, hum, hum

A igrejinha, a praça, a bandinha a tocar

Eu acho que vou chorar

Quero voltar para o interior

Hum, hum, hum, hum, hum

Pra no campo, correr, sobre a relva deitar

Com um grande amor sonhar

Reginaldo Rossi canta a saudade de uma cidadezinha do interior, do amor idílico num tom de locus amenus e fugere urbem anacrônico e frágil. Assim, o sentido original da música se vê totalmente deturpada, dando à melodia um sentido fundado no discurso melodramático e sentimentalista com tonalidades de superficialidade.

Mais problemática fica a situação dessas versões se lembrarmos que quando a música dos Walkers estourou nas paradas de sucesso do Brasil, era vigente a ditadura militar e a censura e a ausência da liberdade de expressão eram notórias. Assim, fica de forma mais contraditória, o sucesso desta música no Brasil, uma vez que seu conteúdo é literalmente político e contra a falta de liberdade. A censura da ditadura militar raramente impôs sanções às músicas em inglês tocadas no Brasil, confiando de certo na pouca compreensão da língua inglesa pelo público em geral.

A situação da recepção da música “There’s no more corn on the brazos” no Brasil fica mais complexa se lembrarmos acerca da inspiração ou da motivação que levou The Walkers a compor a música. A canção é inspirada em outra, “Ain’t no more cane on the brazos”, de origem popular norte-americana, texana para ser exato, e que era cantada por negros ex-escravos e negros presos em prisões texanas que ficavam à margem do rio Brazos. Os presos faziam trabalhos forçados nas plantações de cana-de-açúcar ao longo do rio Brazos. O cantor de blues Leadbelly fez uma das primeiras gravações desta canção e o grupo canadense The Band gravou com Bob Dylan a canção no disco The Basemente Tapes. Dylan já havia gravado a canção anteriormente, nos anos 60. Outras gravações da canção foram feitas por Deep Purple, Son Voly, Lyle Lovett e Band of Heathens .

A versão dos Walkers é praticamente uma paráfrase da letra original. A gravação de Leadbelly é feita com a seguinte letra:

Ain't no more cane on the Brazos

Its all been ground down to molasses

You shoulda been on the river in 1910

They were driving the women just like they drove the men.

Go down Old Hannah, don'cha rise no more

Don't you rise up til Judgment Day's for sure

Ain't no more cane on the Brazos

Its all been ground down to molasses

Captain don't you do me like you done poor old Shine

Well ya drove that bully til he went stone blind

Wake up on a lifetime, hold up your own head

Well you may get a pardon and then you might drop dead

Ain't no more cane on the Brazos

Its all been ground down to molasses.

A gravação da The Band com Bob Dylan em Basement Tapes é a mesma letra. Comparemos agora com “There’s no more cane on the brazos” dos Walkers:

There's no more corn on the Brasos - o oho oho

They grinded it all up in molasses - o oho oho

Captain, don't you do me like you've done for Shine - o oho oho

Well, you've driven that bully till he went stone blind - o oho oho

You've come on the river in 1904 - o oho oho

You could find many dead men on every turn of the road - o oho

There's no more corn on the Brasos - o oho oho

They grinded it all up in molasses - o oho oho

You've been on the river 1910 - o oho oho

Well, they're drivin the women like they drive the men - o oho oho

Rise up all dead men, help me drive my load - o oho oho

Oh, rise up all dead men, help me drive my load - o oho oho

There's no more corn on the Brasos - o oho oho

They grinded it all up in molasses - o oho oho

O refrão tem a mesma rima brasos / molasses, e a vocalização o-o-o-o. A troca de “it’s all been ground down” em Leadbelly-Dylan / The Band por “They grinded it all up” apresenta pouca alteração no contexto geral, apenas a se considerer a explicitação da idéia de moer a cana e fazer melaço em The Walkers, que está subentendida em Leadbelly pela idéia de tudo já foi por terra abaixo virando melaço.

A alteração realmente significativa é a troca de “cane” por “corn”. Em Leadbelly a idéia é de trabalhos forçados na plantação de cana, nos Walkers, a idéia colocada é a troca de monocultura de subsistência, no caso a do milho, pela de cana-de-açúcar, esta de caráter industrial.

Na versão original de Leadbelly apenas é referida a data de 1910, enquanto nos Walkers se faz referência a dois momentos distintos, mas próximos: 1904 e 1910. Em julho de 1910, na localidade de Slocum, Texas, cerca de 300 brancos mataram 25 negros. O massacre se deu por uma série de desentendimentos entre negros e brancos e foi reforçado pelo preconceito racial dominante na época. No mesmo ano em 1910 começaram as obras de uma das mais importantes pontes sobre o rio Brazos, a ponte suspensa de Waco. Na sua construção muitos trabalhadores negros participaram ganhando bem menos que os brancos e trabalhando mais. Não podemos afirmar com certeza qual acontecimento a letra faz referência, mas efetivamente era uma época de forte preconceito racial, notadamente no Texas.

A letra dos Walkers, cita além de 1910, uma outra data – 1904. A letra dá a entender uma espécie de diálogo entre o eu-lírico e dois personagens, um chegando em 1904 e outro em 1910, ou ainda, que o eu-lírico chegara numa data e o interlocutor em outra data. Em 1904 foram construídas duas pontes sobre o rio Brazos, uma em Palo Pinto e outra em Brazos River, ambas já não existem mais em sua versão original. Em 1904 foi construída a prisão do condado de Sabine, em Hemphill, que hoje é um museu da prisão.

Uma alteração significativa é a questão dos mortos que se levantam. Na letra dos Walkers, o eu-lírico pede que os mortos se levantem para ajudá-lo a carregar sua carga. Evidentemente existe nesse pedido uma forte carga irônica, tanto no pedido em si, quanto no significado alegórico desta carga. Na letra original de Leadbelly, a questão é invertida. Se diz que a velha Hannah, morta, não se levante até o dia do juízo final. Mas essa alteração não é substancial o suficiente para que consideremos a letra dos Walkers mais que uma paráfrase da canção gravada por Leadbelly e Dylan\The Band.

A maior diferença está mesmo no âmbito da melodia. A música “Ain’t no more cane” é um blues em Leadbelly, e um country-rock em Dylan \ The Band, ao passo que nos Walkers é uma canção lenta, com impressão musical romântico-sentimental acompanhada por solo de flauta de sonoridade andina.

Assim, se considerarmos a recepção da música dos Walkers no Brasil, o modo como a letra não foi entendida pelo público em geral, e ainda, o fato de que a música dos Walkers é uma paráfrase de uma outra música, esta, por sua vez, tendo uma receptividade bem menor no Brasil, podemos perceber como o domínio da língua inglesa era problemático e como a censura da ditadura militar soube se aproveitar disso, no sentido de não dar importância à chegada de músicas estrangeiras com sentido engajado e político no país.

Existe, porém, um episódio relativo à música “There’s no more corn on the brazos” no Brasil, que embora tenha passado totalmente despercebido do público e da mídia, reflete os limites da atuação da censura com relação às versões e traduções de música.

Em 1980, o esquecido grupo The Lee Bats fez uma versão da música, com o título de “Não se Planta Mais Roça com Meus Braços”. Já no título duas alterações significativas. A troca de “corn” por “roça” visa reforçar a leitura no sentido da substituição da cultura familiar pela monocultura industrial, e “braços” por “brazos” demonstra, ao meu ver, um grande conhecimento do tema da música. O rio Brazos tem esse nome a partir de uma corruptela do nome em espanhol do rio. Antes do domínio americano, o Texas era um território mexicano, de colonização espanhola. O rio em questão foi denominado pelos espanhóis de “Rio de los Brazos de Dios” (rio dos braços de Deus), popularmente “rio braços”, daí originando “Brazos river” em inglês. Muitos que tentaram traduzir a música para o português se depararam com problemas ao buscar no dicionário o significado de “brazos”.

Na tradução ou transcriação como definem os Lee Bats, ocorre um processo de contextualização, de modo que as referências ao contexto cultural norte-americano são substituídas por equivalentes semânticos ou num outro sentido, produz-se analogias contextuais com a história e a cultura brasileiras. Assim, as datas de 1904 e 1910 são substituídas por 1964 (“sessenta e quatro”) e 1979 (“setenta e nove”). As datas são referências respectivamente à instauração da ditadura militar no Brasil, especificamente citando o caso da prisão de Gregório Lourenço Bezerra, quando este tentava organizar resistência armada dos camponeses na usina Pedrosa na zona da mata pernambucana . Assim, a referência na canção dos Walkers a um certo “Shine” que apanha do capitão até ficar cego é substituída pelo episódio da prisão de Gregório. A data de 1979, nos Lee Bats, refere-se a onda de greves, em especial, à greve dos trabalhadores das plantações de cana-de-açúcar da zona da mata de Pernambuco, movimento grevista liderado, entre outros por Beija-Flor (José Domingos de Lima) e Agapito Francisco dos Santos. A “Edite” citada na canção refere-se a Edite Alves da Silva, trabalhadora na plantação de cana que escreveu uma poesia, divulgada no movimento e que tinha como título e bordão a frase “Quem quer greve é a fome”. Desse modo, a tradução dos Lee Bats é efetivamente uma transcriação, no sentido de que aquilo que tem significado histórico, político e cultural para o norte-americano é transposto para outro contexto – o brasileiro – com analogias que dão um sentido específico para a cultura brasileira. No original, se refere à questão das vítimas do racismo nas prisões texanas e o trabalho forçado a que estavam sujeito nas fazendas de cana-de-açúcar é substituído pelas ações políticas e grevistas nas plantações de cana-de-açúcar na zona da mata de Pernambuco durante a vigência da ditadura militar .

Há ainda um verso na transcriação dos Lee Bats, cuja textura poética leva-me a uma curiosa questão de referência. O verso em questão diz: “Oh, levantem-se os mártires, de ferro em flor é a farda do bardo! O oho oho”. Pois bem, Ferreira Gullar escreveu o poema “História de um Valente” ao modo de um cordel em que narra poeticamente a luta política de Gregório Bezerra e para o qual o poeta cria a expressão “Feito de ferro e flor” para funcionar como epíteto do líder comunista. O poema foi escrito por Ferreira Gullar em 1966, porém, com o pseudônimo de José Salgueiro, editado clandestinamente. Só na década de 80, o poema é reeditado, agora com Ferreira Gullar assinando o poema. Os Lee Bats parece que tinham conhecimento do raro poema àquela época, como se pode perceber pela expressão usada no verso: “de ferro e flor é a farda do bardo”. O bardo em questão é Ferreira Gullar, apresentado assim como alguém que luta pela liberdade por meio da poesia. De fato, o poema foi escrito com a intenção de ajudar a divulgar a situação de Gregório Bezerra e promover uma campanha pela sua libertação, uma vez que em 1966 ainda estava preso .

Em entrevista gravada com Bibi Pepper em 1989, tomei conhecimento do episódio referente à transcriação de “There’s no more corn on the brazos” pelos Lee Bats. A transcriação estava pronta em meados de fevereiro de 1980 e faria parte do primeiro disco do grupo, Rock’n’Roll, gravado em março de 1980. Porém, houve uma interferência da Ordem esotérica a qual os membros da banda estavam ligados. A direção da Ordem em São Paulo, que financiou parte da edição de discos e comprou parte substanciosa da pequena edição, objetou que a canção traria problemas com a censura, o mesmo opinou a gravadora contratada para a impressão dos discos, uma vez que seria preciso a licença da censura para a gravação. Desse modo, a canção foi substituída pela versão de “Fantoches” canção de Guilherme Arantes, canção recente que seria lançada em disco – Coração Paulista, naquele mesmo ano, e que fora inscrita por Guilherme Arantes para o Festival MPB Shell. As eliminatórias do festival começaram em março, e por meio de contatos internos da Ordem, tendo já iniciado as gravações do disco Rock’n’Roll, na última hora os Lee Bats receberam cópia da letra de Guilherme Arantes e resolveram gravá-la mesmo sem autorização do autor. Afinal, contavam com a pouca divulgação do disco na mídia.

Em fins de 1981 o grupo faria um show no Tuquinha, teatro que fica embaixo do Tuca, na PUC-SP. Como Gallahade estudava na PUC e fazia parte de direção do C.A. de Letras não foi difícil agendar o Tuquinha para um show numa sexta à noite. Pouco mais de 150 pessoas estavam presentes, maior parte delas como convidados, que não precisaram pagar para assistir.

A música “Não se planta mais roça com meus braços” fora apresentada pela primeira vez em público. Ao término do show, porém, ocorreu um fato que demonstra bem a questão da censura no âmbito da ditadura militar.

Quando já estavam no camarim, apresentou-se um senhor bem vestido, de terno, dizendo ser censor e que, por acaso, estava ali assistindo ao show, acompanhando sua filha que era aluna de História e que queria saber se havia licença da censura aprovando a música “Não se planta mais roça com meus braços”. Bibi Pepper diz não se lembrar exatamente do nome do senhor, algo como Hilton ou Milton, mas se lembra dele citar o nome do advogado Muller Chaves como seu amigo pessoal. Então, como não existia tal documento, uma vez que a letra não fora enviada ao DCDP (Divisão de Censura e Diversões Públicas), ele “solicitaria” que a banda comparecesse à uma delegacia para prestar esclarecimentos e fazer fichamento. Houve um bate-boca com as pessoas ali presentes, integrantes do diretório dos estudantes ali presentes tomaram ciência do que estava acontecendo e a coisa estava prestes a virar uma briga, quando chegaram cinco ou seis policiais militares. Ao que parece um outro senhor, em companhia deste Hilton ou Milton ligou para a polícia e logo chegaram. Houve voz de prisão e vários estudantes, a banda e amigos seriam presos.

No momento em que já se formava uma fila para que todos entrassem nas viaturas, chegaram três homens, um deles vestindo roupa totalmente branca e sapatos brancos, depois Bibi Pepper saberia que era um membro de alto grau da Ordem, e um homem também bem vestido e um militar, com patente de coronel. Este se apresentou como pertencendo ao corpo do CSC (Centro Superior de Censura) e objeta que não podem os estudantes e a banda serem presos, devendo apenas ser feita uma abertura de solicitação de autorização da letra da canção. Houve uma reunião entre os policiais, o senhor do DCDP e os três recém-chegados, incluindo o Coronel. A ordem de prisão foi suspensa e como diz Bibi Pepper: “houve um grande alívio, pois todos estavam muito tensos, nervosos, tinha umas meninas chorando, os policiais tinham encontrado um rapaz com maconha, a coisa tinha tudo para terminar mal.”

Segundo Bibi Pepper, soube depois que o coronel era também membro da Ordem, e fora chamado pelo senhor de branco, que assistira ao show e ficara sabendo da confusão após o espetáculo.

A letra fora então enviada, uma semana depois, para o DCDP e fora reprovada sob alegação de que a tradução não traduzia “o sentido da canção original, inserindo nela acontecimentos e nomes estranhos ao texto em inglês, com intenção de criar polêmica e levantar suspeitas sobre a ação policial.”

Em 1984, no show em Arembepe a canção fora pela segunda e última vez apresentada, ousando os Lee Bats, em desacordo com o veto da censura. Mas ao que parece, nenhum integrante do DCDP estava presente no espetáculo na aldeia hippie baiana. Esse show fora gravado em fita cassette e é o único registro sonoro que existe da música.

NÃO SE PLANTA MAIS ROÇA COM MEUS BRAÇOS (There’s no more corn on the brasos)

The Lee Bats / The Walkers

Não se planta mais roça com meus braços o oho oho

Tudo agora é só cana e melaço o oho oho

Seu Coronel, não me faça o que fez ao Gregório, o oho oho

Céus, de tanto no caboclo, do inferno ao purgatório, o oho oho

O pobre sofreu os diabos em sessenta e quatro, o oho oho

Se viu tantos valentes mortos à beira do canavial, o oho oho

Não se planta mais roça com meus braços o oho oho

Tudo agora é só cana e melaço o oho oho

Beija-flor brigou no canavial em setenta e nove, o oho oho

Sim, Edite, as mulheres sofrem na lavoura e ninguém se comove, o oho oho

Oh, levantem-se os mártires, me ajudem a levar este fardo, o oho oho

Oh, levantem-se os mártires, de ferro em flor é a farda do bardo! O oho oho

Não se planta mais roça com meus braços o oho oho

Tudo agora é só cana e melaço o oho oho

A transcriação dos Lee Bats, em que se considere a questão polêmica do sentido que fazem de transcriação, alterando significativamente as referências da música, colocando tudo num novo paradigma histórico-social, é das versões/traduções que tomei conhecimento da canção dos Walkers, a única que dá a ela o sentido político que ela tem, não levando o público sem conhecimento de inglês a imaginar que se trata de uma canção de confessionalismo sentimental pseudo-romântico como fizeram Reginaldo Rossi e João Viola. Não foi por outro motivo, que a esquecida banda de rock dos anos 80, na sua marginalidade e estranha ao âmbito da mídia, ainda assim pagou à censura do período da ditadura militar do Brasil, o preço de ter seu trabalho censurado.

E, o mais estranho, e ao mesmo tempo, explicável pelos aspectos referentes ao ensino de língua inglesa no Brasil naquela época, que alguns dos que ouviram a apresentação no Tuquinha, ou em Arembepe, rejeitaram a música, considerando que os Lee Bats alteravam o sentido da “belíssima” canção fazendo uma paródia desagradável e sem sentido. Em Todas As Letras: Transcriação e Rock-Poesia nas Canções dos Lee Bats, Jairo Luna escreve que “quando da apresentação da canção nas duas únicas ocasiões em que fora levada ao público, ouviram-se na platéia, alguns murmúrios e uma tímida vaia mostrando o desagrado com a música” .

Na entrevista com Bibi Pepper este comentou que após a apresentação de Arembepe “um casal jovem, que mais parecia ser de turistas do que membros da comunidade hippie local que embora tivessem gostado muito do show da banda, acharam que a nossa tradução da música dos The Walkers tinha destruído a belíssima impressão que essa música causava neles, e estavam até um pouco chateados, pois a canção tinha sido escolhida por eles como símbolo do namoro do casal, pois fora num baile que o rapaz convidara a moça para dançar, pela primeira vez, ao tocar a canção.”

Passadas quatro décadas desde o grande sucesso de “There’s no more corn on the brazos” no Brasil, permanece para a grande maioria do público a idéia de tratar-se de uma canção romântica, com tema do relacionamento amoroso. A obra dos Lee Bats, pela ousadia e pelas circunstâncias marginais em que fora produzida, aguarda ainda o momento de ser redescoberta e entendida.

REFERÊNCIAS:

ARAÚJO-SILVA, Gisvaldo Bezerra. “A Língua Inglesa Como Imperativo da Globalização” em: Página da Educação, n.º 185, serie II, 2009.

LUNA, Jayro (Jairo Nogueira Luna). Todas as Letras: Transcriação e Rock-Poesia nas Canções dos Lee Bats. São Paulo, Vila Rica, 2011.

SANTOS, Viviane Apareida. Do Ressentimento à Cicatriz: Memória e Exílio em Ferreira Gullar. Dissertação de Mestrado, UFSJ-Univ. Federal de São João Del-Rey, orientação da prof.ª dr.ª Maria Ângela de Araújo Resende, 2010.