Por que os Lee Bats são um mistério?
Por que os Lee Bats são um mistério?
Entre 1979 e 1985 um esquecido, marginal e amador grupo de rock paulista produziu quatro discos independentes, dois deles em formato incomum para bandas independentes e sem apoio financeiro: uma caixa com disco triplo (3 lps) e um disco duplo. Embora de tiragens pequenas, ao que se sabe, algo entre 500 e 1000 exemplares para distribuição restrita a amigos, membros duma desconhecida e misteriosa ordem esotérica e alguns sortudos espectadores de seus raros shows.
Uma olhada com argúcia na história do rock brasileiro e encontraremos dezenas ou até mesmo centenas de histórias de bandas de rock tupiniquim que praticamente nunca saíram do anonimato, com eventuais, muito eventuais registros deixados em alguns discos de vinil, a maioria de produção independente, ou quando não, algumas raras e malsucedidas empreitadas de algumas pequenas gravadoras e alguns empresários a cata de um empreendimento de sorte. Assim, nomes como Lodo, Papa Poluição, Santa Gang, A Chave, entre outros, muitos outros, são alguns desses exemplos. O Lodo, por exemplo, nunca gravou nada, ao que se sabe existe um único registro, de um vídeo gravado para um programa de televisão. Os raros ouvintes que presenciaram performances da banda a colocam como de extrema capacidade criativa e ousadias para a época (anos 70).
Mas os Lee Bats é um caso à parte. De fato, não é o caso de uma banda que procurava o sucesso musical e que por circunstâncias e obstáculos vários acabaram no esquecimento. Eles estavam na contra-mão... Eles, deliberadamente, conscientemente buscavam o olvidamento!?
Ou seja, é um grupo que gravou mais de cem músicas e que tinham como projeto empresarial o nunca ficarem famosos, nem nunca serem reconhecidos! Parece um contra-senso, se pensarmos na própria história do rock, em que o glamour e a tietagem sempre estiverem ao lado, tantos dos astros e estrelas, quanto dos menos conhecidos. Andy Warhol, no centro da contracultura, profetizava que a cada um estaria reservado quinze minutos de fama... Porém, os Lee Bats buscavam a eternidade do esquecimento completo.
Aliando a marginalidade, ou melhor, a marginalia – conquanto postura consciente de recusa do sistema – à associação com uma seita esotérica, o grupo tornou-se símbolo esquecido e ao mesmo tempo, concreto do anonimato.
Do lado esotérico da história, sabemos que o esoterismo tem como um de suas tônicas de conduta o hermetismo, no sentido, do fechamento, da ruptura e da busca de ciframentos e códigos que dificultam, ou mesmo, impossibilitam a compreensão e a entrada aos seus segredos. A iniciação esotérica é um lento subir de escada – parodiando um de seus símbolos mais caros: a escada – degrau por degrau, paulatinamente até chegar à revelação, esta depois de muito tempo e experiências subjetivas e práticas. Na alquimia, muitos alquimistas deixaram registros praticamente incompreensíveis ou mesmo degradados de seus experimentos, de modo que apenas uns poucos que conhecem o segredo dos códigos conseguem entender a validade e a profundidade dos registros.
Na fuga de situações perigosas, como o confronto com a Inquisição, alquimistas se utilizaram de pseudônimos, modificaram o lugar de seu nascimento e mesmo a época, publicando obras que hoje deixam claros vazios no campo da historiografia: Shoral, Lambsprinck, Fulcanelli, Flamel, entre outros, são alguns dos alquimistas que guardam segredos em relação aos aspectos biográficos: local de nascimento, atividades que exerceram, significado de seus textos, ano e local que morreram, o que efetivamente descobriram, limites entre lenda e realidade, etc.
Os Lee Bats, nas suas raras apresentações estavam vestidos com fantasias altamente simbólicas: palhaço, cavaleiro templário, mago, general da banda, coringa, Napoleão, pierrot, frade. E mais, utilizavam maquiagem e máscaras e pseudônimos. Dos cinco integrantes regulares, três deles não se tem notícia de seus nomes verdadeiros: Cid Charles (bateria), Bibi Pepper (contrabaixo) e Marcos Sparkles (teclados). Supõe-se que o bateria teria como primeiro nome real Sidney, mas de que, ninguém sabe. Marcos Sparkles, se sabe que era ou macedônio ou filho de macedônios e ao que parece, Marcos era mesmo seu primeiro nome. Bibi Pepper é um completo mistério. Dos outros dois, o guitarrista Alvin Bates seria um certo João Loco, o que não revela muito, porque é outra alcunha. Apenas um integrante se conhece sua identidade: J.J. Gallahade é Jayro Luna, atualmente, professor universitário com pós-doutoramento.
Uma breve observação na produção desse professor e pesquisador e revela-se algumas coisas: sua tese de doutoramento – acerca da poesia de Almada Negreiros – tem uma parte considerável do texto a analisar os aspectos esotéricos e numerológicos da poesia almadiana. Escreveu um livro – disponível integralmente em pdf na internet – acerca das interpretações esotéricas no livro Mensagem de Fernando Pessoa: A Chave Esotérica de Fernando Pessoa, além de alguns textos interpretando quadras de Nostradamus. Tem também dado cursos de extensão universitária acerca da Alquimia e da Simbologia esotérica. Não é, pois, um autor que não tenha fundamentos sólidos de iniciação esotérica, suponho, apreendidos no seu período de participação nos Lee Bats e na relação do grupo com uma ordem esotérica.
Sabe-se que Gallahade foi o único a revelar sua identidade porque consta que não se integrou totalmente à ordem esotérica, não continuando os estudos herméticos. A coisa aqui é um pouco mais nebulosa. Num artigo assinado por Robertson Kircher e Sidney Artur de Oliveira lemos:
“Não posso garantir que não exista um clima de caráter conspiratório nessa estranha ordem, porém, o que se indicia é tratar-se de uma ordem que supõe possuir segredos que só podem ser mostrados àqueles que passaram por um longo processo de aperfeiçoamento, de aprendizado ou de iluminação.” (KIRCHER & OLIVEIRA, “Os Lee Bats e as Sociedades Secretas do Ocultismo”)
Comentam os autores como Gallahade se recusou a passar aos estágios mais avançados na Ordem, e que os demais integrantes da banda optaram por seguir, de modo que a estratégia de olvidamento ou de recusa à busca do sucesso se tornou o resultado de uma prática hermética determinada de tal modo que Gallahade ficou sendo uma espécie de sentinela guardiã do portal que abriria a obra da banda ao mundo, mas apenas num âmbito marginal, restrito, incongruente com as práticas glamurosas do próprio rock.
Rob Ferrero transcreve na internet uma antiga entrevista dada por Marcos Sparkles a João Loco (Alvin Bates!) para um fanzine editado na PUC-SP nos anos 80. Em determinado momento João Loco pergunta a Marcos Sparkles:
“JL: A que você atribui o olvidamento dos Lee Bats?
MS: A nós mesmos, em primeiro lugar.... primeiríssimo lugar...Eu poderia reclamar do destino, num viés mais romântico; poderia reclamar da indústria fonográfica e dos empresários de artistas, num viés crítico-social; ou ainda, poderia reclamar do público médio brasileiro que tem, ao que nos parece, preterido obras de certo grau de complexidade por outras mais medianas e rasteiras...Porém, é certo, nós, os Lee Bats, somos os culpados em primeiro lugar...Fizemos uma opção em função de fatores externos à música, mas que incidem diretamente na nossa visão de mundo...” (FERRERO, Rob. “Entrevista com Marcos Sparkles – o tecladista dos Lee Bats”)
Durante sua existência, os Lee Bats jamais saíram do esquecimento, nem galgaram qualquer sucesso. Muito eventualmente algumas de suas músicas foram tocadas em rádio do interior ou rádios piratas. Lembro do caso do radialista que ancorava um programa de rock numa rádio de Santo André, Antônio Vasconcelos, que tocou algumas músicas dos Lee Bats lá...Jamais apareceram na televisão, os poucos shows que efetivamente fizeram foram de no máximo para um público de mil pessoas, como se diz que foi o show em Arembepe, em 1984, e ao que se tem notícia, existe uma fita gravada desse show.
Mas à medida que se vai tomando contato com a obra dessa banda, se vai descobrindo uma riqueza que superam as questões relativas à qualidade ruim das gravações e mesmo à questão do vocal desafinado e desconjuntado de J.J.Gallahade. De imediato, as virtuoses em perfomances do guitarrista Alvin Bates (João Loco), do tecladista Marcos Sparkles (Lottar Sparkles seria seu verdadeiro nome?), o ritmo forte e criativo do baterista Cid Charles, o baixo de Bibi Pepper. Mas para além da qualidade musical desses músicos, existem os conceitos de rock-poesia e de transcriação. O modo como musicaram poemas da literatura brasileira e mundial, e já a seleção de poemas é demonstração de um conhecimento acima da média, as traduções polêmicas e inovadoras de várias letras de rock são também prova de um pensar criativo acerca da música, da poesia e da tradução.
O mistério fica maior na medida em que se compreende que a obra musical da banda estava no mínimo um passo adiante do pensamento roqueiro da época, e ao meu ver, ainda está. Por outro lado as ligações com a misteriosa ordem esotérica que determinou o aspecto de olvidamento do grupo está cheio de interrogações que dificilmente encontrarão solução nalguma resposta. O tempo e a exigüidade de documentos escritos ou fonográficos correm a favor da permanência do mistério.
Diana Novaes, com o apoio do amigo Sid Artur.