A MARCHA DO POVO DOIDO(1)
30 de abril de 1981, noite de festa no Riocentro, Rio de Janeiro. Todos já tinham chegado: Alceu Valença, Ângela Rôrô, A Cor do Som, As Frenéticas, Beth Carvalho, Ivan Lins, Cauby Peixoto, Gonzaguinha, Céu da Boca, Clara Nunes, Costinha, Djavan, Fagner, Elba Ramalho, Francis Heime, Gal Costa, Dona Ivone Lara, João Nogueira, João do Vale, Miúcha, MPB 4, Ney Matogrosso, Noveill, Paulinho da Viola, Simone, Roberto Ribeiro, Zizi Possi, Chico Buarque e, o grande homenageado da noite, Luiz Gonzaga, o Gonzagão.
Já poderíamos parar por aqui, satisfeitos pelo resgate memorável de nomes os quais ajudaram sobremaneira, através de suas vozes e canções de ternura e protesto, no prélio pela abertura política que mais tarde livraria o nosso país das garras da ditadura.
Pode parecer estranho eu, um “garoto” de 33 anos, estar escrevendo sobre esse assunto, visto que em 1981 eu tinha apenas 4 aninhos, porém, justifico; sempre fui apaixonado por liberdade e sei que para nos libertarmos das ditaduras atuais, temos que aprender, e muito, com tantas pessoas que “ousaram lutar, ousaram vencer”2. Realmente foram muitas vidas ceifadas, “memórias de um tempo onde lutar por seus direitos era um defeito que matava3”. Por isso, iniciei esse artigo com o braço musical dessa luta, afim de que possamos fazer um paralelo com os artistas atuais. Assim, quem sabe, conseguiremos entender o que realmente os move e qual o seu atual papel na sociedade: entreter/atrofiar, ou contribuir/libertar?
É óbvio que me lançarão nas chamas todos aqueles que me criticam quando afirmo que alguns novos artistas alimentam apenas o corpo de seus fãs, que descem até o chão ao sabor do dissabor, e nada mais. Mas, como todos os artistas citados anteriormente, me arrisco no palco do Camaçari Agora, onde a democracia sempre se mostrou límpida, sabendo que as bombas, tal qual no Riocentro, podem estar sob os meus pés. Só vos peço que, parafraseado o saudoso Gonzaguinha, “quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda”.
Em comemoração ao Dia do Trabalhador, o show se inicia no Riocentro, sob a pressão de ainda estarmos em pleno regime ditatorial. A abertura já havia sido iniciada, é verdade, mas de forma lentíssima. De certo que havia correntes dentro do próprio exército brasileiro que refutava tal iniciativa. Esse receio ocorria talvez por pura sede do poder, ou talvez por medo da represália que poderia se seguir caso a anistia não fosse ampla. O certo é que uma sucessão de ações terroristas iria ser desencadeada como justificativa para uma retomada à repressão. O desfecho, sabemos hoje, foram três bombas no “Show 1º de Maio”. Uma delas explodida acidentalmente no colo do Sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto na hora e ferindo o então Capitão (hoje Coronel) Wilson Dias Machado. Outras duas bombas, por sorte, não conseguiram alcançar seu intento. Uma explodio no pátio da miniestação elétrica do Riocentro, e a outra não chegou a explodir e foi posteriormente recolhida pela polícia.
Este caso, após exatos 30 anos, jamais foi totalmente solucionado. A verdade, assim como em centenas de casos ocultos nos porões da ditadura, jamais fora revelada. Pior ainda, esse túnel escuro, mesmo tendo atualmente uma ex-militante da luta armada no mais alto cargo público do país (a presidente Dilma Rousseff), parece nem ter gambiarras...
Platéia lotada, artistas de peso já haviam se apresentado e eis que, próximo ao final do espetáculo (verdadeiro espetáculo para o trabalhador, diga-se de passagem!), “pessoas, contra a democracia, jogaram bombas lá fora para nos amedrontar”, informava Gonzaguinha.
A ditadura brasileira foi feroz, fez centenas de vitimas, mortos, desaparecidos, humilhados e oprimidos. Todavia, ela encontrou na classe artística: cantores, atores, escritores, artistas plásticos e afins, uma voz ativa, uma muralha intransponível, cujo clamor, mesmo que camuflado, ressoava nas ondas do rádio, nos palcos e nas ruas, fazendo o povo marchar. Eis aqui o nosso paralelo: quais as marchas promovidas pelos “nossos” atuais artistas?
A democracia brasileira foi restabelecida no ano de 1985. Desde então, a batuta da luta pela liberdade foi herdada por uma nova geração. E em se tratando de música, instrumento de protesto e revolução nos anos de chumbo, questiono-me sobre o verdadeiro propósito dos atuais “astros”. Será que o que nos resta, ou melhor, os resta, é apenas o enriquecimento pessoal à custa de um “sacode” que balança tanto o povo, que os deixa até mesmo com os cérebros fora do lugar? Já disse que era criança na época da efervescência musical das décadas de 1970 e 1980, mas até hoje me alimento da poesia, da perfeita construção dos versos, das lições de protesto e da utopia daquela geração. Como afirmei no último artigo: “sinto saudade do que não vivi”. Essa fonte ainda mata minha sede, através da água cristalina dos poemas nascidos no peito desses artistas.
Em outro artigo, aqui mesmo nesta coluna, fiz referência aos tempos de faculdade, quando um professor me disse que a função do arrocha, do pagode, do funk e demais ritmos correlacionados é “aliviar o sofrimento do pobre”. Quantos crêem nisso? Você crê nisso? Será que devemos validar esse aspecto dominante da nova música popular de massa? Trazendo à mente o paralelo aqui proposto, podemos afirmar que a função dos hits momentâneos é exclusivamente ensinar a nova “dançinha”? A mensagem, nada subliminar, explicitamente diz o que deve ser feito, afinal, as crianças têm que crescer já sabendo “ralar no asfalto”. Não precisamos de letra, melodia, música, cultura, história, ideal... Não precisamos pensar... Isso ficou no Riocentro!
E hoje? 26 anos após a ditadura, será que somos tão livres que nossos artistas já não precisem se engajar em lutas sociais? Será que o peso de alguns milionários artistas baianos não faria a diferença na luta contra a violência, as drogas, os impostos, a corrupção, a exploração sexual infantil, as injustiças sociais, à falta de oportunidade e educação e mais dezenas de mazelas? Vale salientar que não estou me referindo às campanhas esporádicas promovidas pela mídia, estreladas pelos novos artistas e suas “caras” de bonzinhos. Estou falando de quem se importa verdadeiramente, de quem está disposto a assumir os riscos de se expor e, talvez, perder seus milionários cachês em favor daqueles que, paradoxalmente, enchem seus cofres.
É insano tentar entender que atualmente temos liberdade para dizer, por exemplo: “ei, governador, esse pedágio vai massacrar o povo. Isso vai ter que mudar, ou então vamos protestar todos os dias de carnaval, em plena avenida, para o mundo inteiro conhecer sua ingerência”, mas nada fazem de cima dos seus luxuosos palcos ambulantes. O contrário, o que vemos são mais bandas, artistas, cantores que apenas estão preocupados com seu próprio bolso, atendendo em altíssimo nível, por sinal, aos anseios politiqueiros da máquina e à avareza de empresários sem compromisso com o social. Manter a válvula de escape aberta nos diversos carnavais, festivais, micaretas, becos e vielas dos miseráveis bairros da Bahia (e Brasil), caiu como uma luva... É o pão e circo elétrico!
Fazer pensar. Pensar em transformar. Transformar na prática. Praticar o pensar, revirar, reviver, revoltar... Mudar... Mudar, “muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente. A gente muda o mundo na mudança da mente e quando a gente muda, ninguém manda na gente4”. Muda... Quero mudança, minhas correntes!
Os holofotes, infinitamente mais incandescentes que naquele palco, no Riocentro, estão sobre os novos artistas. A mídia está sobre eles, o povo está ébrio à espera do novo hit, pois fugir com a mulher maravilha já é uma opção antiquada. A “música do povão” não mais derruba ditaduras, ela serve apenas como alento ao corpo padecido, segundo seus defensores que vivem eternamente relaxando na bica. Não importa mais fazer pensar, não importa mais a poesia que nos coloca em sintonia com nós mesmos e com o ambiente que nos cerca, não mais importa a mensagem que nos impulsiona pelas veredas do conhecimento. Nada mais importa, apenas o vil metal – Muda!
Penso em todos aqueles artistas, juntos, comemorando o trabalho e o trabalhador, lutando pelo retorno da democracia ao país, se indignando pelas injustiças sociais e atrocidades cometidas pelo então governo, contra seu próprio povo. Logo me vem à mente os modelos atuais, onde só os que recebem, antecipadamente, seus cachês milionários sobem nos “palcos do povo”, sem ideais, pois morta é sua utopia e seus sonhos são apenas de contas bancárias com cifras cada vez maiores.
Se contra ou a favor, não vamos pelejar. Todavia, devemos ao menos concordar que a música ainda liberta, mas as chaves das algemas são antigas, de um tempo tão longínquo, que nem mesmo se conseguem fazer cópias.
Salve,
Caio Marcel Simões Souza (admcaio@gmail.com) é Administrador de Empresas e formado em Capoeira Regional, pelo Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra. Também é responsável e mantenedor do Projeto Social Crianças Cabeludas, no bairro do Parque das Mangabas, Camaçari.
P.S. Este artigo é uma singela homenagem aos saudosos irmãos: Antônio Carlos Santa Bárbara e José Carlos Santa Bárbara. O primeiro, amigo particular, competentíssimo professor do SENAI, cujos conhecimentos e experiências de vida sempre me foram passados com um largo sorriso no rosto. Saudades revolucionárias, “Santinha”! O Segundo foi um exemplo de luta nas fileiras da resistência baiana, contra o regime militar. Não o conheci pessoalmente, apenas nas páginas da história, mas sua luta pela liberdade, naqueles tempos de chumbo, me inspira até os dias atuais.
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1 Título em referência a música “A Marcha do Povo Doido”, de Luiz Gonzaga Junior;
2 “Ousar lutar, ousar vencer” era o lema da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), organização de extrema esquerda que aderiu à luta armada, contra a ditadura. Dentre os integrantes mais “ilustres”, destaca-se a atual Presidente Dilma Rousseff;
3 Trecho da música “Achados e Perdidos”, de Luiz Gonzaga Junior;
4 Trecho da música “Até Quando?”, de Gabriel Contino;
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Artigo publicado no Portal eletrônico Camaçari Agora, em 17/05/11:
http://www.camacariagora.com.br/colunista.php?cod_colunista=17