As marchas carnavalescas: Por que eram e por que não são mais a marca registrada do carnaval carioca?
A cada novo carnaval a questão retorna ao palco iluminado: Por que as marchinhas carnavalescas não fazem mais sucesso e não surgem novos clássicos? Embora cantadas por quase todos os blocos de rua do carnaval carioca as marchas padecem há anos de um mal crônico, a falta de renovação, não exatamente na produção, mas na aceitação de novas marchas que não conseguem voar além dos limites impostos pelas marchinhas mais clássicas. Mas o que explicaria a decadência desse gênero musical que, por anos à fio, foi a própria essência do carnaval carioca? Sim, pois o samba, embora logicamente também ligado intrinsecamente ao carnaval, dele sempre guardou uma independência muito maior, mesmo que um de seus principais subgêneros, o samba-enredo tenha nascido e se mantenha basicamente ligado ao carnaval, através do desfile das escolas de samba.
A chamada marcha carnavalesca é um gênero musical caracterizado pelo compasso binário e raramente quaternário e com o primeiro tempo fortemente acentuado. Segundo o Dicionário Musical Brasileiro, "No Brasil a marcha popularizou-se nos blocos carnavalescos como marcha-rancho e marcha de salão e segue a fórmula introdução instrumental e estrofe-refrão." Já o musicólogo Renato Almeida salienta que, apenas no Brasil, a marcha passou de acompanhamento de passos militares à dança. Já no século XIX, as marchas trazidas ao Rio de Janeiro por companhias teatrais portuguesas faziam sucesso. A primeira marcha escrita especialmente para o carnaval foi "O abre alas" composta pela maestrina Chiquinha Gonzaga em 1899 para o Rancho Rosa de Ouro que, com ela, venceria o carnaval. Essa marcha seria sucesso carnavalesco até 1910, e permaneceria nos anos seguintes como um hino de abertura do carnaval carioca. Em 1915, a marcha "A baratinha", de uma revista musical portuguesa, obteve grande sucesso e foi lançada como canção carnavalesca três anos depois, em gravação do cantor Baiano. A marcha carnavalesca começaria a se afirmar definitivamente a partir da década de 1920. Desenvolveu-se como gênero característico da classe média carioca e sofreu em seu ritmo influências externas que vão desde o one-step ao charleston norte americano, passando pela marcha portuguesa, além de incorporar boa parte do lirismo e do sentimentalismo de nossa modinha. Jocosas e espirituosas, com sátiras políticas e sociais, as marchinhas foram se popularizando mais e mais.
A partir da década de 1920, a produção musical destinada exclusivamente ao carnaval vai se consolidar e é nesse momento que as marchas carnavalescas passam a ser identificadas com a festa de Momo pois o samba, ainda mal saindo dos guetos, não havia ainda sido identificado com aqueles festejos, mesmo que muitos sambas de sucesso no carnaval já fossem lançados na Festa da Penha, no mês de outubro. Essa festa, realizada no bairro carioca da Penha, na zona da Leopoldina, atraía milhares de pessoas e lá ocorriam animados concursos de sambas e marchas carnavalescas. Mas, certamente, a dinâmica de uma e outra produção era diametralmente diferente. Ainda naquela década de 1930, autores como Eduardo Souto e Francisco de Freitas produziam obras para o carnaval, em especial o segundo, que especializou-se na divulgação de suas composições, pagando músicos para tocá-las nas ruas e cordões, além de ir, ele mesmo, pessoalmente de automóvel a reuniões carnavalescas, nas quais levava partituras de suas músicas.
Na década de 1930, três eventos vão contribuir definitivamente para a consagração da marcha carnavalesca. O primeiro deles, a gravação de disco, já existia no Brasil desde 1902, mas a partir de 1927, com a introdução das gravações elétricas, a qualidade dos discos melhorou e possibilitou registros mais precisos e sofisticados. O segundo foi a consolidação e ampliação da presença do Rádio, que logo se tornaria um veículo privilegiado na divulgação de músicas. Finalmente, o cinema falado e os filmes musicais que possibilitavam associar som e imagem no que se ouvia nos Rádios.
Afora isso, o carnaval carioca possuía, pelo menos, duas outras formas de propagação, digamos assim, espontânea das marchas. O carnaval de rua com os diferentes blocos e o carnaval nos bondes, na verdade verdadeiros blocos. Com todos esses veículos de divulgação, que começava bem antes do carnaval, quando o mesmo chegava, as marchas já estavam escolhidas pelos foliões e na ponta da língua.
Ao lado dessa divulgação as marchinhas expressavam, logicamente, o espírito de sua época e, assim, a jocosidade, o lirismo, o duplo sentido, a sátira social, a crônica eventual, a crítica política e a ingenuidade se misturavam alegremente numa galhofa, somente possível numa festa como o carnaval. Assim, a partir da década de 1930, as marchas vão compondo um vasto quadro da sociedade carioca, com algumas pinceladas nacionais e eventualmente internacionais. A década de 1930, por sinal, é considerada como a época de ouro do carnaval carioca e, por conseguinte, da música feita para ele, pois é nesse período que surgem alguns dos grandes clássicos carnavalescos, cantados até hoje como "Taí", de Joubert de Carvalho e primeiro grande sucesso de Carmen Miranda; "Mamãe eu quero", de Jararaca e Vicente Paiva; "O teu cabelo não nega", dos Irmãos Valença e Lamartine Babo; "Linda morena", de Lamartine Babo; "A jardineira", de Benedito Lacerda e Humberto Porto; "Linda lourinha", de Braguinha, entre outras.
Um detalhe importante a destacar é a simplicidade e singeleza das letras dessas marchas, o que as fazia fáceis de serem decoradas e, além disso, os arranjos de metais, o que as tornavam empolgantes e chamativas para cantar e pular. A mesma década de 1930 certamente marca o auge da produção carnavalesca de Lamartine Babo, que fez sucessos como “Linda morena”, “Moleque indigesto”, “Eu também” e “Grau dez”. Vale ressaltar que em todas elas contou com a presença marcante dos arranjos de Pixinguinha, que também regeu as orquestras nos acompanhamentos, nas duas primeiras com o Grupo da Guarda Velha e nas duas últimas com os Diabos do Céu.
Embora tidas como ingênuas, e em especial do ponto de vista atual, muitas marchinhas também faziam uso do duplo sentido, como se pode ver em marchas como “Mamãe eu quero” ou “Eu não te dou a chupeta”, de Silvino Neto e Plinio Bretas gravada em 1939 pelas Irmãs Pagãs e com versos como “Eu não te dou a chupeta/Não adianta chorar”, evidentemente muito possibilitadores de duplas associações.
È comum muitos pesquisadores falarem das críticas políticas e sociais das marchinhas como fator de seu sucesso. Muito embora muitas marchas fizessem alusões a questões políticas e sociais, como foram os casos, por exemplo, de “Ai seu Mé”, de Nunes Sampaio, o careca, que satirizava o presidente Arthur Bernardes e que chegou a custar a prisão do autor, ou “O retrato do velho”, de Pedro Caetano, alusiva à volta de Getúlio Vargas ao Palácio do Catete, não se pode dizer que as marchas tenham tido um cunho político. No que tange a questões sociais retratadas nas marchas carnavalescas, existem exemplos disso como “Pedreiro Valdemar”, o que fazia tanta casa e não tinha casa para morar, “Maria Candelária”, a funcionária pública que recebia sem trabalhar, ou “Daqui não saio”, com versos como “Daqui não saio!/Daqui ninguém me tira!/Onde é que eu vou morar?/O senhor tem paciência de esperar!/'inda mais com quatro filhos,/Onde é que vou parar?!...” que expressam a questão dos despejos nos bairros pobres nos anos 1950. Mas, certamente, essa não era a temática central das marchinhas, cujo objetivo era propiciar a galhofa e a brincadeira, glosando tipos populares, situações momentâneas, e eventualmente a carestia da vida.
Mas, essencialmente dois temas iriam predominar nas marchas carnavalescas: o amor e a bebida, dois elementos fundamentais do carnaval. Não foram poucas as marchas que retrataram a bebida e bebedeiras como "Tem nego bebo aí", de Mirabeau e Airton Amorim; "Cachaça", de Mirabeau, Lúcio de Castro e Héber Lobato; "Saca rolha", de Zé da Zilda, Zilda do Zé e Waldir Machado; e “A turma do funil”, de Mirabeau, M. de Oliveira e Uriel de Castro. Já a temática do amor vai atravessar todo o período áureo das marchinhas. E podemos citar ao acaso exemplos como “Aurora”, de Mário Lago e Roberto Roberti; “Se a lua contasse”, de Custódio Mesquita; “Linda morena”, de Braguinha, "Máscara negra", de Zé Kéti e Pereira Matos, e outras. Amores fugazes como o carnaval. Amores passageiros. Amores imortais.
Mas o certo é que, aspectos variados, que serviram como mote para a brincadeira e a folia é que foram, verdadeiramente, o tema das marchas. São os casos de marchas como "Ala-la-ô", de Nássara e Haroldo Lobo; "Eu brinco", de Pedro Caetano e Claudionor Cruz, “Touradas em Madri", "Chiquita bacana" e "Yes nós temos banana", de Braguinha e João de Barro; "Sassaricando", de Luis Antônio, Jota Junior e Oldemar Magalhães, "Me dá um dinheiro aí", de Homero Ferreira, Glauco Ferreira e Ivan Ferreira; "Olha a cabeleira do Zezé", de João Roberto Kelly e Roberto Faissal; "Mulata bossa nova", de João Roberto Kelly; "De marré marré", de Raul Sampaio, "Índio quer apito", de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, "A marcha do remador", de Antônio Almeida e Oldemar Magalhães, "A pipa do vovô", de Ruth Amaral, e "Maria Sapatão" lançada pelo comunicador Chacrinha. Exemplos mais poderiam ser arrolados, mas isso já demandaria outro texto.
Assim, grosando fatos do momento, cantando o amor, a bebida, a mulher, fatos políticos e sociais, as marchinhas foram, por mais de 40 anos, a própria essência do carnaval carioca. Mas, a partir da década de 1970, elas começaram a sair de cena, a produção de novos sucessos foi minguando e, pouco a pouco, apenas os antigos clássicos ainda eram cantados. Ainda na década de 1970, o Sistema Globo de Televisão e seu braço fonográfico, a Som Livre tentaram reviver a produção carnavalesca, através do concurso “Convocação Geral”, que durou de 1975 a 1979, sem, contudo conseguir deixar algo que permanecesse. Recentemente, em 2006, a Fundição Progresso do Rio de Janeiro criou um concurso de marchas carnavalescas que, a despeito da grande afluência de compositores, mais de 500 na primeira edição, ainda não logrou descobrir uma nova marcha que pudesse ser colocada como renovadora, ou mesmo, continuadora do gênero.
Aqui vem então a questão: O porquê da decadência das marchinhas carnavalescas? Muito já se falou sobre isso e não é possível apontar apenas uma causa, mas sim uma junção de fatores que determinaram essa decadência.
Primeiramente, é preciso verificar as transformações mais amplas pelas quais a sociedade brasileira em geral e a cidade do Rio de Janeiro passaram a partir do final dos anos 1950 e 1960. O crescimento urbano rápido e desordenado pelo qual passou a Cidade Maravilhosa deixou marcas profundas e, por pouco, não se conseguiu destruí-la em nome do progresso. Um desses efeitos de transformação urbana foi o fim dos bondes, substituídos por ruidosos e perigosos ônibus, com o que se perdeu um espaço fundamental para o carnaval de rua e a divulgação das marchinhas. Por outro lado, a repressão política imposta pela ditadura militar foi afastando pouco a pouco o povo das ruas e o carnaval foi decaindo, ficando, durante um bom tempo, quase apenas reduzido aos desfiles oficiais, principalmente das Escolas de Samba. Ao mesmo tempo, as transformações urbanas foram tornando a cidade mais fria e cinzenta, com a correria predominando.
Paralelamente a isso, a própria música popular também passou por mudanças fundamentais nesse mesmo período. A primeira delas foi o surgimento da bossa nova que, com novas propostas estéticas, em pouco tempo, foi colocando à baixo tudo o que estivesse em outro parâmetro, contribuindo para que, em pouco tempo, muitos valores da música popular fossem colocados na categoria de ultrapassados. Um pouco depois, a entrada do rock inglês e norte americano no Brasil e o aparecimento de seu sucedâneo nacional, a jovem guarda, foi mais um duro golpe em determinada produção musical. Finalmente, a invasão absoluta da música estrangeira, facilitada pela ditadura militar, foi tomando os espaços da música brasileira. E, se como dissemos acima, a marcha carnavalesca surgiu como gênero musical tipicamente de classe média, a partir da década de 1960, a juventude desse segmento social estava em grande parte engajada em novas correntes musicais, muitos voltados para a canção de protesto, ou de outras linhas comerciais.
Aqui ainda poderiam ser acrescidos dados, como a queda da influência do Rádio e seus programas ao vivo e o crescimento da importância da televisão, que vai impondo mudanças, por exemplo, na questão da musica ao vivo, pois enquanto as rádios de modo geral mantinha suas próprias orquestras, a televisão vai, pouco a pouco, substituindo esse costume pelos play-backs, ou grupos mínimos de, no máximo, quatro pessoas acompanhando um cantor solo. Afora isso, as escolas de samba e, mais especificamente outro filão que passou a ser explorado pela indústria fonográfica, os sambas enredo, vão a partir do começo dos anos 1970, tomar a primazia da música gravada para o carnaval e esses sambas enredo passam a ser gravados e tocados também fora dos desfiles das escolas de samba.
Nas décadas de 1980 e 1990, o carnaval de rua, especialmente no Rio de Janeiro, parecia ter naufragado de vez, ficando apenas a lembrança saudosa do carnaval de outrora e suas marchinhas. No entanto, a partir do início dos anos 2000, as ruas passaram a ser mais e mais ocupados por levas e levas de foliões e blocos numerosos e coloridos a engarrafar ruas e avenidas. Mas e a música para embalar esses foliões? De modo geral, os sambas enredo do ano ou de anos anteriores, e, principalmente, as velhas marchinhas. Vez por outra também, novas marchas pouco inspiradas e esquecidas logo após silenciar o último tamborim.
Mas, e as marchinhas voltarão a empolgar e a produzir sucesso e novos futuros clássicos? O quadro atual não parece indicar tal possibilidade. As novas levas produzidas não conseguem ultrapassar o circuito local em que são produzidas, mesmo que cantadas por blocos com quase cinco mil integrantes. A divulgação não é boa, não funciona, não toca nas rádios, e os bondes, não há mais.
Especialmente, no entanto, me parece que o destino das marchas carnavalescas, enquanto novas produções é o mesmo das modinhas ou do maxixe. De vez em quando alguém chega e faz algo, mas não adianta, pois como disse o poeta, o tempo não para. E não volta e, assim, como não voltará o velho Rio de Janeiro e seus bondes lotados de foliões, também não voltarão as velhas marchas carnavalescas, pois como já diz o ditado árabe, “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus pais”. E esse nosso tempo é um tempo acelerado, grosseiro, barulhento e com pouco espaço para o lirismo e mesmo a galhofa não faz muito sucesso, diante da balbúrdia e da grosseria. É muito mais fácil que surja outro gênero musical que, recebendo influências variadas, venha a embalar os foliões do futuro, do que as marchas voltarem, pois elas até podem ser produzidas enquanto exercício formal musical, mas o espírito, a essência que as embalava já não existe mais, pois os tempos atuais são mecânicos e as velhas marchas carnavalescas serão para todo o sempre apenas “um rio que passou”.
Paulo Luna