As origens do rock do Curdistão
(Por um músico do álbum; postado com permissão)
[N.B.: Os comentários entre colchetes são de autoria de Galaktion Eshmakishvili.]
“O melhor e o pior do rock do Curdistão” [que pode ser ouvido/baixado em https://marcosandrada.bandcamp.com/album/o-melhor-e-o-pior-do-rock-do-curdist-o] é, sem sombra de dúvidas, um dos álbuns mais inventivos e divertidos nos quais tive a honra de trabalhar, e por isso sou eternamente grato a Marcos Andrada, já célebre por seu trabalho com uma das mais emblemáticas bandas paulistanas dos anos 80, o Vultos. O que muita gente não deve saber, no entanto, são as circunstâncias sob as quais este lançamento tão interessante foi concebido.
Fui eu um dos vários músicos que participou das gravações deste álbum – mas por uma pletora de motivos pessoais, esta é a única informação sobre minha pessoa que posso repassar. O que posso dizer é que me encontrei com Marcos Andrada (e grande parte dos outros componentes da compilação) num fórum de Internet, quase como que refletindo a alvorada do novo século: não me recordo de seu nome, e já nem sei se ainda existe 23 anos depois, mas me lembro claramente de ter me deparado, surfando pela Web com meu saudoso Windows 98, com o seguinte tópico:
“ME SINTO NO CURDISTÃO FAZENDO ROCK NO BRASIL.”
Ninguém o havia respondido. Fui o primeiro a ousar fazê-lo, já que ficara no mínimo intrigado pela assertiva do usuário “rockmarcos”. Surpreendentemente, em questão de minutos fui respondido e dentro em breve aprendi que “rockmarcos” era, de fato, Marcos Andrada, que havia gravado “Filme da alma”, um de meus álbuns prediletos. Nos dias subsequentes o tópico ganhou tração, e logo pessoas de várias idades e nacionalidades entraram na discussão, lamentando os rumos aos quais tudo parecia se encaminhar. (Hoje vejo que éramos felizes e não o sabíamos…)
Depois de algum tempo Andrada sugeriu que todos nos juntássemos a fim de gravar algo – a compilação suprema de todos os outsiders. Aqueles ousados o suficiente poderiam vir visitá-lo em sua residência em São Paulo, e trabalharíamos em algo pelos próximos meses. Logo a casa de meu amigo se tornara uma colônia de músicos talentosos e desajustados, e trabalhamos no álbum no estúdio de Marcos Oliveira, na Avenida Rebouças.
Com exceção do próprio Andrada, infelizmente todos nós viemos a perder contato com o passar dos anos, mas segue sendo um grande motivo de orgulho para mim ter trabalhado com tantas mentes talentosas e criativas. Segue também sendo deveras complicado fazer rock – não só no Brasil, mas no mundo todo; talvez até mesmo em nosso místico refúgio, o Curdistão…! Acho que se tivéssemos o grande prazer de nos unirmos novamente, faremos um álbum de música venusiana. Quem sabe o melhor e o pior do rock de Vênus nos traria fama de algum ponto do Universo tão distante…!
Se me recordo bem, fomos os seguintes quinze:
NAKED RECEIVER: trio britânico de Leeds, peculiarmente influenciado por Misfits, Helmet e pela cena norueguesa do black metal – em particular pelos quatro primeiros álbuns do conjunto Ulver e pelo enigma de toda a cena, o Fleurety. Contribuiu com “Overtune”. [A abertura do álbum, um presságio do mosaico que se desfraldará ante nossos olhos – ou, melhor dizendo, nossos ouvidos. Uma instrumental lo-fi, toda com guitarras, que mais parece ter saído de um disco do Âmesœurs, anos antes do Âmesœurs ter existido, ou uma demo do célebre “Themes from William Blake’s ‘The Marriage of Heaven and Hell’”, do Ulver.]
POROS: banda paulistana; à época, um dos projetos do próprio Andrada, que em prol de tantos outros acabou não progredindo. Influenciados pela cena indie e outras bandas como Killing Joke e The Fall, alegavam também querer experimentar com elementos de música eletrônica e synthpop como Soft Cell e Coil (em particular a fase lunar, pós-“Musick to Play in the Dark”). Contribuiu com “Pisando em Ovos”. [Um melódico e tradicional rock fundindo os anos 80 com os anos 2000 – muito alegre e cheio de energia, com uma letra profunda que só meu adorado pai Marcos poderia conceber.]
HAPPY LOSERS: banda britânica de Staines-upon-Thames. Contribuiu com “Tears of an Actress”. [Rock alternativo britânico do mais alto calibre; uma verdadeira epítome da sonoridade dos late 90s/early 2000s.]
RAGAZZA PATZA: banda italiana composta por Nicola Bradini (vocais e baixo) e Sergio Panatretto (guitarra). Bradini, natural de Palermo, mudou-se para Roma em sua juventude e formou o Ragazza Patza em 1986. Célebre por seus polêmicos álbuns “Cristosound” e “Santo sangue”, com letras de cunho altamente político em oposição a Silvio Berlusconi. Contribuiu com “Villa Bundesi”. [Após três faixas do mais puro rock, um intermezzo musical instrumental simples, porém agradável, com teclados. Simple and sweet.]
CORPORAÇÃO CÃO: banda santista de psychobilly e punk, fortemente calcada em Garotos Podres, Cólera e Olho Seco. Contribuiu com “Encosto”. [Um bom e velho punk oitentista; bastante semelhante aos primeiros trabalhos do Ratos de Porão e, diria eu, mesmo do Charlie Brown Jr. Se cantada em inglês, muito provavelmente seria confundida com algo do início do CBJr., ou dos Ramones.]
EASY DUST: quarteto originalmente formado na Cornualha, mas desde então residente em Londres. Contribuiu com “Constellation”. [Bela e melódica canção, com um instrumental remetendo ao shoegaze; bastante semelhante a algo do Cure.]
RUBY BULLET: banda nova-iorquina influenciada por Television, Buzzcocks e The Sound. Contribuiu com “Rock the Front”. [Ótimo rock que aparenta ter saído dos 70s – um dos pontos altos do álbum, inclusive.]
SEREIALARM: o segundo projeto do próprio Andrada a aparecer; baseado no eixo São Carlos–São Paulo. Influenciados por Flaming Lips, Mercury Rev, Elliot Smith e Daniel Johnston. [Lançaram “Bem aéreo” em 2014 – acho que o músico não estava ciente disto.] Contribuiu com “Vale das Begônias”. [Única coisa boa a sair de minha cidade!!!]
RENEGADOS DO ROCK: banda paulista de Cerquilho. Influenciados por Ramones, Ted Nugent, Pixies, Buddy Holly e The Shadows. Contribuiu com “Porsche de James Dead”. [Um energético pop rock exalando a late 90s/early 2000s. Um Bôa masculino e um tanto mais pesado, so to speak.]
SORO: banda de Ilhabela. Influenciados por The Cure, Echo and the Bunnymen, New Order, Big Country e The Waterboys. Contribuiu com “Tilintar Deus”. [Composição lindamente psicodélica, que parece ter sido um outtake de “Faith”, do Cure – um elo perdido entre “Faith” e “Pornography”.]
CLOWN MUMYS: banda americana de Carmel, Califórnia. Célebre por seu aclamado álbum de 1995, “Astrorama”. Encerraram as atividades em 2019. Contribuiu com “Dignity”. [Um stoner rock reflexivo que nada deve aos quintessenciais Red Hot Chili Peppers ou ao Kyuss.]
PAPOULA OVERDRIVE: banda de Campos do Jordão. Influenciados por Black Sabbath, Deftones, Spirit e Alex Harvey. Contribuiu com “Elektra Estrada”. [Pesado rock alternativo cheio de distorções, típico dos 90s; quase como se Alice in Chains, Stone Temple Pilots e Soundgarden tivessem um filho.]
DÓLMEN: banda curitibana. Influenciados pelo trabalho de Ian Curtis, com Warsaw e Joy Division, e por Happy Mondays e Durutti Column. Contribuiu com “Sentinela do Abismo”. [Um etéreo rock gótico análogo ao Mission.]
AS SURDAS: banda paulistana do Butantã, Zona Oeste; influenciada por Genesis, Uriah Heep, King Crimson e Marillion. Contribuiu com “Él Miss U”. [Rock progressivo calmo e agradável.]
MAN HUNT: banda de Los Angeles. Inspirada pela atmosfera do cinema noir e pela sonoridade de Steve Miller Band, Grateful Dead, Jefferson Airplane, The Doors e MC5. Contribuiu com “Rock Baby Alien”. [Semelhante aos créditos finais de um filme, cá somos agraciados com a faixa de encerramento, que parece unir todas as outras 14 numa síntese do que é este álbum: uma mélange de estilos diferentes, mas iguais ao mesmo tempo em sua intenção de fazer e divulgar boa música – que é tão louvável quanto rara nos dias de hoje.]
(16 de fevereiro de 2024)