On The Road Again: Na Estrada Real dos Lee Bats
On The Road Again: Na Estrada Real dos Lee Bats
Sidney Artur de Oliveira e Rob Ferrero
Uma das músicas do esquecido e marginal grupo de rock Lee Bats se chama “Estrada Real”, que é uma composição cuja letra é formada por versos escolhidos do poema épico O Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa. Embora os discos dessa banda sejam extremamente raros e que eles não participaram do meio profissional ou da mídia, atualmente é possível ouvir a música através do Youtube ou baixá-la em alguns sites que hospedam arquivos de música como 4Shared, Purevolume e BDG (Banda de Garagem).
O fato de ser uma letra baseada em versos de um poema épico que celebra a fundação de Vila Rica (Ouro Preto), da autoria do poeta árcade mineiro Cláudio Manuel da Costa e de se chamar “Estrada Real” leva-nos de imediato a deduzir que a música é uma referência à estrada imperial que partindo de dois pontos, Rio de Janeiro e Parati, passa por Ouro Preto e Mariana e chega à Diamantina. Esta estrada foi muito utilizada nos séculos XVIII e XIX para fins de exportação de ouro, pedras preciosas e para o comércio em geral, entre o Rio de Janeiro – capital da colônia e depois do Império – e as cidades produtoras de ouro e pedras preciosas de Minas Gerais. A partir da decadência da exploração aurífera nas Minas Gerais a estrada passou a ter um uso cada vez menor. Como nunca fora pavimentada, as novas estradas para o transporte rodoviário relegaram ao esquecimento e aos aventureiros o uso da estrada. Hoje ela é celebrada em rotas de MotoCross, rallyes, ciclistas, caminhadas e eventualmente em alguns trechos para uso dos povoamentos locais. Em seu percurso é possível ver à margem, em vários pontos, os padrões imperiais que marcam seu uso naquela época.
Nesse sentido, a música “Estrada Real” seria uma dessas composições que se incluem no que poderíamos chamar de ciclo “On the Road” (Pé na Estrada), que têm como pano de fundo a alegoria da estrada como signo de busca da liberdade e da juventude em busca dos ideais da contracultura, em seu semblante de rebeldia juvenil e quebra de tabus de comportamento. Canções como “Like a Rolling Stone” (Bob Dylan), “On the Road Again” (Canned Heat), “Born to be Wild” (Steppenwolf), “Endless Highway” (The Band), “Magical Mistery Tour” (Beatles), “Route 66” (Bobby Troup \ Chuck Berry \ Rolling Stones), The Doors (Roadhouse Blues) são exemplos de canções que formariam esse ciclo “On the Road”. No caso do Brasil, lembro de Toni Tornado sapateando e cantando “BR3”, dos Mutantes com “Rock’n’roll City” e “Não vá se perder por aí”, Patrulha do Espaço com “Rolê de Estrada”.
As músicas desse ciclo têm, em geral, um sentido dramático e fatalista, que pode ser bem comparada com o final de filmes como “Easy Rider” (Sem Destino) ou “Vanishing Point”, que, aliás, as trilhas sonoras estão repletas de referências ao “On the Road”. O homônimo romance de Jack Kerouac é o signo maior literário desse pé na estrada. As aventuras de Sal Paradise atravessando os Estados Unidos representam concreta e ideologicamente todo o ciclo.
Mas a música dos Lee Bats tem alguma coisa a mais nas entrelinhas que pode ser já sugerida pelo fato de ser baseada em versos escolhidos de um poema épico árcade de um inconfidente. Neste âmbito, Cláudio tem, enquanto figura histórica, o gérmen da rebeldia e da luta pela liberdade. Vejamos a letra:
Estrada Real (The Lee Bats \ Cláudio Manuel da Costa)
A quem te faz girar pelo Universo,
Necessária se faz uma igualdade,
Verdeja algum terreno, doura-se um verso!
Há de ser imortal nossa Saudade,
E já se descobria uma alta serra,
Co’a vista de algum obséquio lisonjeiro,
Oh! Os tesouros que oculta e guarda a Terra,
E ao vale vem descendo desde o outeiro!
Toda de flores de ouro matizada,
Co’as safiras azuis, co’os brilhantes, woh-woh...
Pulsar do peito, observa o vigilante,
Vendo ao norte da terra povoada,
O vário giro da amorosa história,
Jamais se viu segura uma alegria,
De seu furioso amor e que em memória,
Os braços suspendei da rebeldia, da rebeldia...
A prática de montar poemas retirando-se versos de poemas épicos ou dramáticos se notabilizou no barroco. Vários foram os poetas que se debruçaram sobre Os Lusíadas de Camões para compor sonetos. Essa prática era considerada uma arte engenhosa, o de se extrair versos de um poema maior para compor outro. Mais recentemente, Augusto de Campos, poeta concreto, compôs poemas extraindo frases de Os Sertões de Euclides da Cunha.
Para um grupo que intitulou um de seus discos de “Rock Barroco” e no qual aparece uma canção homônima, não é de se estranhar essa prática nem supor que não conheçam essa prática barroca, ainda mais, que um de seus integrantes, anos depois, doutorou-se em Literatura.
Vamos reler a letra, reinterpretá-la de modo a notar que se fala de outra estrada que não apenas a estrada real dos tempos do império, ou da ação pé na estrada da contracultura.
A primeira estrofe, no primeiro verso enuncia que a canção é “a quem te faz girar pelo universo”, isto é, quem faz girar a Terra, incluindo-se aí suas estradas, caminhos, deve ser a divindade, ou Deus, ou o destino, ou ainda, as forças gravitacionais, depende da contextualização da música num referencial ou repertório. Diz a canção que é necessária uma igualdade (verso 2), ou seja, que existe uma falta, uma desigualdade a ser solucionada. O verso 3 (“Verdeja algum terreno, doura-se um verso) insinua a igualdade buscada, entre a Natureza e a Linguagem da Poesia, de modo que uma ação da\na Natureza implicaria numa correspondência com a Poesia. Uma vez descoberta esta correspondência, garante-se o poder da memória (“Há de ser imortal nossa Saudade”).
Na segunda estrofe, sugerindo a descrição do caminho pela estrada, o eu lírico aponta a descoberta de uma “alta serra”, e que a mesma oferece uma linda vista, bem como dos percalços ou obstáculos que a estrada deve vencer (“Co’ a vista de um obséquio lisonjeiro”). No verso 3 desta estrofe, observa-se que a Terra esconde tesouros, estes tanto visíveis, quanto a visão da Alta Serra, quanto ocultos, escondidos, como “os tesouros que oculta e guarda a Terra”. Observemos os dois verbos: ocultar e guardar. Não são sinônimos plenamente. Ocultar é o sentido de esconder, velar; ao passo que guardar significa proteger, abrigar. Assim existem tesouros apenas guardados e outros ocultos. Os guardados podem ser conhecidos, é preciso explorá-los, os ocultos, antes é preciso descobri-los.
No verso 4, desta segunda estrofe, se insinua que os tesouros estão visíveis, mesmo quando ocultos, que é preciso ter a percepção de vê-los, daí se diz “E ao vale vem descendo desde o outeiro”. Outeiro (do latim altāre - altar) ou lomba (do latim lumbus - lombo) é uma pequena elevação de terreno. Era nos outeiros ou lugares altos, mais próximos dos céus, que se ofereciam as preces, as oferendas e sacrifícios aos deuses. Nesse sentido é preciso uma iniciação para se descobrir a linguagem que une a Natureza à Poesia.
Na terceira estrofe, nos dois primeiros versos se descrevem flores ouro com safiras azuis e diamantes incrustados.
Em fins de 1929 C. G. Jung e o sinólogo Richard Wilhelm publicaram O Segredo da Flor de Ouro, um livro de vida chinês (Dornverlag, Munique). O livro continha a tradução de um velho texto chinês, Tai I Ging Hua Dsung Dschi (O Segredo da Flor de Ouro), com seus próprios esclarecimentos e um comentário "europeu" de Jung. A flor de ouro é a luz, e a luz do céu é o Tao. A flor de ouro é um símbolo mandálico. Ela é desenhada a modo de um ornamento geometricamente ordenado, ou então como uma flor crescendo da planta. Esta última, na maioria dos casos, é uma formação que irrompe do fundo da obscuridade, em cores luminosas e incandescentes, desabrochando no alto sua flor de luz (num símbolo semelhante ao da árvore de Natal). Tais desenhos exprimem o nascimento da flor de ouro, pois, segundo o Hui Ming Ging, a "vesícula germinal" é o "castelo de cor amarela", o "coração celeste", os "terraços da vitalidade", o "campo de uma polegada da casa de um pé", a "sala purpúrea da cidade de jade", a "passagem escura", o "espaço do céu primeiro", o "castelo do dragão no fundo do mar".
No terceiro verso se diz “Pulsar do peito, observa o Vigilante”. Notemos que vigilante é na Maçonaria, um dos graus da iniciação. Os cargos de Mestre, Primeiro Vigilante e Segundo Vigilante são chamados de Luzes da Oficina. No terceiro verso se introduz uma referência espacial do Templo: “Vendo ao Norte da Terra Povoada”, e na estrofe seguinte se inicia dizendo “O vário giro da amorosa História”. Se no primeiro verso se faz referência a quem faz girar a Terra pelo Universo, agora se diz que esse giro, contínuo, é o resultado de uma história de Amor, entre a divindade e sua criação.
No verso seguinte se diz “Jamais se viu segura uma alegria”, menção à inconstância da vida, à eterna mudança, tema, aliás, caro a Camões. A alegria, para ser duradoura precisa ser o resultado da descoberta da relação entre a Natureza e a Poesia, esta como expressão da percepção ou da sensibilidade humana.
O Amor à Natureza e, por conseguinte, à divindade, tem característica de ser “furioso”, no sentido de que não aceita outra atitude que não a constante admiração e o reconhecimento. Nesse sentido, profetas, messias, místicos surgiram de tempos em tempos revirando a tradição de nossa percepção do Mundo, de nossas crenças, daí a rebeldia de um Jesus, por exemplo: “Os braços suspendei da rebeldia, da rebeldia”, assim se compreende os braços suspensos de Cristo na Cruz.
Por outro lado, se lembrarmos que Cláudio Manuel da Costa foi uma vítima da devassa da Inconfidência, a busca da liberdade e a independência da colônia era um emblema forte para a compreensão da vida do poeta. Suspeitas de associação entre os inconfidentes e a Maçonaria ainda hoje persistem, sem, contudo, comprovações irrefutáveis. Cláudio Manuel da Costa que morreu na prisão, é também uma vítima dos sistemas repressivos. Ao compor uma letra de canção com versos de Cláudio Manuel da Costa, os Lee Bats conseguem inserir três níveis de interpretação: I - o ciclo On the Road; II – o sentido místico e\ou oculto de descoberta da realidade e III – a contextualização de Cláudio como signo da luta pela liberdade.
Como se vê, por nossa interpretação, a canção “Estrada Real” vai além da questão “On the Road” em termos de viagem de rebeldia juvenil, mas sim, no sentido da descoberta do sentido da realidade, da vida, para além dos limites de nosso racionalismo.