OS LEE BATS E AS SOCIEDADES SECRETAS DO OCULTISMO

OS LEE BATS E AS SOCIEDADES SECRETAS DO OCULTISMO

Poucas, pouquíssimas são as pessoas que conhecem, ainda que superficialmente, a obra do grupo Lee Bats. Esse esquecido e curioso grupo de rock atuou entre fins de 1979 e o começo de 1985, fazendo shows, mas não costumeiramente, nem de forma profissional pelo subúrbio de São Paulo, principalmente pela Zona Leste, algumas apresentações no interior do estado de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Constam dois shows com mais público e que, ao que se consta, foram gravados em fitas de vídeo, um em São Tomé das Letras (MG), em 1983, e outro em Arembepe (BA), na primavera de 1984.

Essa banda de rock gravou cinco discos independentes, de reduzida tiragem (Rock’n’Roll - 1980; Do Mississipi ao São Francisco - 1981; Mythologias – duplo, 1983; Rock Barroco – 1984 e Símbolos & Selos – 1985), são discos raríssimos de encontrar, não só pela reduzida tiragem, mas também pelo fato de só existir em vinil. Se tem notícia de que alguns CDs de caráter pirata tenham sido produzidos.

Mas o que quero tratar aqui nesse texto, não é propriamente acerca da carreira do grupo, enquanto aspecto artístico direto, mas sim de uma questão que ajuda a explicar um mistério que envolve essa banda. O mistério em questão é que o grupo era formado por cinco integrantes que só se apresentam mascarados e/ou vestidos com roupas de personagens alegóricos, como o palhaço, o mago, o cavaleiro medieval, o general da banda, o vampiro. E o grupo também utilizava pseudônimos, dos quais apenas um é conhecido o nome verdadeiro. A formação básica era J.J.Gallahade (Jayro Luna – atualmente professor universitário), Alvin Bates (João Loco?), Marcos Sparkles (?), Bibi Pepper (?), Cid Charles (?). Cid Charles, segundo se sabe, morrera num acidente de automóvel na ponte Rio-Niterói em 1985 ou 1986. Alvin Bates, possivelmente seria um certo João, dito, João Loco, se mandou para o Tibete ou Nepal, ou ainda, Índia, em 1985, acompanhando um certo guru, meio hippie, meio hare krishna, conhecido por Raji Guenol ou Raji Onguel, que conhecera em Arembepe (BA). Marcos Sparkles teria ido à Macedônia, em 1985, sua terra natal, acompanhado os pais, logo após a independência do país da Iugoslávia. Nunca mais dera notícias. Estes três integrantes, Sparkles (teclados), Bates (guitarra solo) e Charles (bateria) não conhecemos pois seu paradeiro atual, nem se ainda estão vivos ou o que fazem, bem como não conhecemos suas verdadeiras identidades, além de um apelido dado à Bates, antes de ser Bates. Bibi Pepper seria um contrabaixista ainda atuando no meio musical brasileiro, acompanhando inclusive artistas famosos, porém, jamais revelando sua identidade ou sua participação nos Lee Bats. Assim, apenas J.J.Gallahade, que após a dissolução da banda, atuou publicando poesias marginais em fanzines nos anos 80 e 90 com esse pseudônimo e que fez o doutorado em Literatura na USP, sendo atualmente, professor universitário é conhecido.

A pergunta que se faz é porque um grupo, ainda em caráter amador, toma deliberadamente a decisão de esconder suas identidades? Em que se considere o fato de que poderia ser uma estratégia artística, visual ou promocional, como foi o caso do Kiss, por exemplo, ou dos Secos & Molhados, só para lembrar dois casos dos mais famosos, ainda assim não se justifica isso no caso dos Lee Bats, pois levaram à obsessão pelo olvidamento como uma atitude deliberada.

Uma explicação é evidente possível ao se começar pelo que se sabe da figura de Bibi Pepper. Este músico seria membro de uma sociedade ocultista. Essa sociedade influenciou nas decisões do grupo, pois os outros músicos da banda, incluindo de início Gallahade, participaram como iniciados de rituais secretos da ordem ocultista. A partir daí, essa estranha ordem que preza ao que parece, acima de tudo, o ocultismo no sentido de ser efetivamente uma ordem secreta, determinou estratégias para os Lee Bats que os levaram efetivamente ao completo esquecimento. Não posso afirmar, que de outro modo os Lee Bats galgariam sucesso na mídia, ao adotar estratégias convencionais de colocação na mídia, uma vez que entra aí a questão da qualidade musical, e mais, do momento - ou seja, estar no lugar certo na hora certa, coisa que nem sempre exige talento musical. Uma das definições do grupo, no sentido de colocar ações que dificultassem um provável ou improvável sucesso da banda, foi a determinação de que apenas Gallahade seria o cantor do grupo. Decisão acatada pela banda, mas que era de estranheza, uma vez que o próprio Gallahade afirmou em entrevista e em depoimento que não sabia cantar, que era desafinado e que não tinha ritmo. O que pode ser confirmado na audição de algumas músicas em que ele foi mais infeliz na interpretação. Estranha escolha para o vocal, quando o próprio Gallahade afirma que de início a banda tinha como cantores, Alvin Bates e Marcos Sparkles, que teriam boas vozes. E mais, nessa etapa inicial, antes da primeira gravação de disco (Rock’n’Roll – 1980), Cid Charles seria o baterista cantor de algumas músicas e que Bibi Pepper faria o backing vocal de várias outras. Porém, nos discos só se ouve a voz de Gallahade, a voz de pato fanhoso, sem ritmo, quase declamatória.

Qual seria essa ordem? Que motivos ela teria para se preocupar em manter esse estado de ordem secreta, inacessível? Como ela trabalha? Que rituais seriam esses de que participaram os Lee Bats? Tentarei responder essas questões com base em uma entrevista que fiz com J.J. Gallahade em 2006, antes dele ir para Pernambuco, onde assumiria o cargo de professor da universidade estadual e no depoimento de algumas pessoas amigas de Gallahade de longa data, bem como na análise das letras e dos poucos textos escritos sobre o grupo, aos quais tive acesso. Tudo foi levado quase como uma investigação detetivesca, que levei a cabo, e me empolguei por ela à medida que algumas peças do quebra-cabeça foram se apresentando.

A primeira questão, “Qual seria essa ordem?” continua a pairar o mistério, embora se possa fazer algumas suposições. Essa ordem teria ligações com a escola gurdjeffiana (de Gurdjieff – místico russo que divulgou sua obra nas primeiras décadas do século XX). Em São Paulo existe uma escola de trabalho ao modo de Gurdjieff. Procurei a escola, mas não consegui elementos convincentes que me levassem a ver alguma ligação entre os organizadores da escola e a ordem secreta, embora suspeite que entre seus membros mais antigos possa estar a ligação. Parece haver alguma questão que envolve a Golden Dawn de Crowley, mas não consegui também provas convincentes disso. O que mais me intriga, porém, é a possibilidade de ligação entre essa misteriosa ordem e a chamada escola do templo Sarmoung, referida por Gurdjieff em seu livro Encontro com Homens Notáveis. Tal templo, escondido em algum lugar do oriente, talvez próximo ao Tibete, foi onde Gurdjieff teria aprendido acerca do significado e do uso do Eneagrama, bem como de rituais de dança e de música. Na entrevista com Gallahade ele falou que a ordem secreta tinha esse conhecimento, bem como no disco “Símbolos & Selos” se encontra na contracapa a reprodução do Eneagrama.

Com base nas referências encontradas nas capas dos discos, bem como na análise de letras, parece-nos que dois são os conjuntos de elementos que podem definir ou ajudar a compor um panorama em que se insere a ordem secreta. A primeira é a Alquimia. Simbolos alquímicos, referências alquímicas em gravuras e em canções são em número suficiente para assegurar essa assertiva. Basta observar que o último disco se chama “Símbolos & Selos”.

O segundo conjunto de elementos é o formado por elementos paganistas, e neste âmbito o disco “Mythologias” é o mais exemplar.

Neste aspecto é importante reler, para fins de exemplificação, a letra de “Júpiter na Bahia de Todos os Santos” (Mythologias):

Júpiter na Bahia de Todos os Santos

I

Descendo do Olimpo, alto e lindo,

Oh! Céus de Deus!

Vivendo entre os mortais,

Os Reis que tais!

Céus de Deus!

[Refrão]:

Júpiter! Também entre os mortais

Viu os pobres miseráveis,

E o deus dos raios

E de outros balaios

Viu a confusão!

II

Ó Rei Zeus!

Em seu poder de deus,

Atônito nas avenidas,

Luzes lidas,

Desejou amar mais os infiéis e os ateus

Qual filhos seus!

Nos templos de fé e dinheiro vil,

Num tempo de raios e armeiros hostis,

[Refrão]:

Júpiter! Também entre os mortais

Viu os pobres miseráveis,

E o deus dos raios

E de outros balaios

Viu a confusão!

III

Ó Rei Zeus!

Em seu poder de deus,

Entre carros e buzinas,

Trombetas, notas antidivinas,

Desejou sonhar,

As nuvens de seu lar!

Júpiter, entre nuvens de poluição cinza,

Edifícios, buscou um poeta,

Pra reciclar o quadro,

Sem esquadro!

E o poeta repensou o céu,

A Terra, a Sorte e o Fel!

A nova obra pós-tudo,

E nada!

O Real com que me iludo

É nada!

IV

Júpiter, deus do Olimpo,

Quis o mundo tão justo,

Quanto limpo!

Mas a Verdade nos sorri a que custo!

Uma Jóia no garimpo,

Júpiter, deus doutras eras!

Venceu titãs e feras do passado,

Porém, o presente desespera o sonhado!

Se te fazes ausente,

Júpiter, aqui, Salvador!

Bahia de Todos os Santos!

E cantos!

Soltas tuas flechas

De raios às brechas

Da Felicidade sonhada aos prantos!

Na primeira estrofe lemos que Júpiter desce do Olimpo, este lugar é identificado como “céus de Deus”. Assim, no sentido de ser um deus na visão monoteísta, que se opõe ao deus do Olimpo, politeísta. Desce esse deus para viver entre os mortais, referência à Cristo. Nesse sentido, Júpiter reproduz a ação de Cristo, ou vice-versa, ao descer à Terra para “viver entre os mortais”. No refrão, Júpiter, com o epíteto clássico de “deus dos raios”, viu a confusão do mundo e a miséria, novamente tal qual Cristo. Destaca-se aqui também a questão da dicotomia mortal\imortal.

Na parte III, se contextualiza a descida de Júpiter aos tempos de nossa contemporaneidade (carros, buzinas, poluição, pós-tudo). A música desta nossa época é “antividivina”, lembremos como o rock, desde o seu surgimento, foi considerado pelos cristãos mais “xiitas”, a música do diabo. Nesse contexto, Júpiter se revela um deus pagão, cujas “trombetas” e o som do deus raios se aproximam da sonoridade do rock. Júpiter procura alguém que seja o seu cantor, ou num sentido teológico, seu profeta. Mas seu profeta é um poeta. Desse modo, Júpiter busca a poesia no lugar da profecia. De um lado a estética, a beleza, o encantamento; de outro, associado à profecia, o discurso messiânico, o sibilino, a simbologia exotérica e esotérica. Opta, Júpiter pela transição para a poesia, como se a profecia não respondesse mais às necessidades dessa época, ou seja, não mais direcionar a visão da esperança para o futuro distante, mas para a ação no presente. A ação proposta do poeta, repensar o céu é nesse sentido, e o fato de reciclar o quadro sem esquadro, temos uma conjunção de aspectos simbólicos. O esquadro é um dos símbolos da Maçonaria, mas o poeta age sem o esquadro, como se dispusesse de outra estratégia que dispensa o esquadro, sua ação não é, pois, maçonica, mas subjetiva (ou objetiva, na visão gurdjieffiana) e interiorizada, haja vista que a realidade observada é ilusão.

Na quarta parte, Júpiter que se apresenta como um “deus de outras eras”, se reconfigura, se recontextualiza no presente – alusão ao Neopaganismo, possivelmente - e se associa à justiça, de fato era uma das qualidade atribuídas à Júpiter na mitologia clássica. Sua reaparição se faz na “Bahia de Todos os Santos”, a necessidade de se colocar todo o epíteto atribuído à Bahia é para criar o efeito da polissemia e da ambigüidade. Afinal, ali é o lugar de todos os santos, num sentido amplo, de todos os cultos religiosos, incluindo o paganismo. A verdade buscada para além da ilusão do real observado se concretiza nesse momento, Júpiter age com seus raios e flechas para recompor a ordem perdida, num sentido de alusão à um estado cíclico das civilizações, viveríamos a época da confusão.

A segunda questão que nos propomos tentar responder, ainda que em comentários indiretos é “Que motivos ela [a Ordem] teria para se preocupar em manter esse estado de ordem secreta, inacessível?”

Com efeito, o trabalho musical dos Lee Bats é marcado por uma ação em direção à obscuridade e à manutenção de um estado de marginalidade e amadorismo, em que se pese a complexidade de seus discos, que cria uma evidente contradição. A solução desse impasse, entre a complexidade de sua obra e o estado marginal e amador apresentado é próximo do estado alquímico. Como observa Serge Hutin (A Tradição Alquímica), “Quando lemos a descrição de experiências alquímicas, o que impressiona é sempre seu caráter concreto, artesanal.” (p.44). Essa artesanalidade nada tem de simples, mas sim de um outro processo, em que os limites da quantificação e da reprodutibilidade são superados ou dilatados em virtude de um processo em que pesa a questão do observador ou do agente da operação no âmbito de um paralelismo entre a ação operacional externa e o estado psicológico e espiritual do alquimista. De fato, pelo que se sabe, algumas das composições dos Lee Bats foram ensaiadas pouquíssimas vezes e após gravadas uma vez, não foram mais reinterpretadas ou ,

reapresentadas, como se fosse um evento único. Essa questão da reprodutibilidade da experiência tem seu ponto correlato na arte moderna pela reprodutibilidade da obra de arte, e artística que ao mesmo tempo que é artesanal é também uma resposta à questão da reprodutibilidade dos tempos midiáticos. Porém, essa resposta acaba sendo moldada e conformada pela ação da ordem a que seus membros se integraram ou participaram.

Outra questão que propomos aludir é “Come ela [a Ordem] trabalha?” Esta é uma questão cujas referências e fontes disponíveis são extremamente difusas e raras. Sabemos que Bibi Pepper foi aquele que levou os demais músicos a participar da ordem, nesse sentido, podemos inferir que para ingressar na ordem é preciso que exista um convite de um já iniciado, ou que apenas os iniciados podem levar pessoas para a Ordem. Funciona, pois, no sistema de convite. Nesses termos se aproxima da prática das sociedades secretas, como de fato esta é. A necessidade de se manter oculta indica a busca de uma ação distante dos meios midiáticos e do marketing contemporâneo das seitas hodiernas, incluindo-se aí o modo agressivo como algumas religiões e seitas agem, possuindo inclusive programas e canais de televisão. Lembremos do caso polêmico dos chamados “Protocolos dos Sábios do Sião”, que malgrado, seu caráter político repulsivo, alude à uma sociedade que conspira secretamente. Não posso garantir que não exista um clima de caráter conspiratório nessa estranha ordem, porém, o que se indicia é tratar-se de uma ordem que supõe possuir segredos que só podem ser mostrados àqueles que passaram por um longo processo de aperfeiçoamento, de aprendizado ou de iluminação. Nesse aspecto se aproxima das práticas de templos tibetanos escondidos entre as montanhas nevadas, como é o caso da irmandade Sarmoung. O fato de Alvin Bates ter ido ao Oriente em companhia de um estranho guru com quem fez amizade reforça essa tese.

A última questão, “Que rituais seriam esses de que participaram os Lee Bats?” não é também de fácil resposta. Na entrevista que fiz com J.J.Gallahade, ele me disse que quando fora convidado a participar de rituais iniciáticos na Ordem, presenciou um espetáculo de dança ritual, mas que todos os presentes estavam encapuzados e vestidos de túnicas de diversas cores com símbolos também diversos inscritos no peito e nas costas, bem como nos capuzes. Ele identificou alguns, mas não outros. Entre os que identificou estava o pentagrama, o eneagrama e símbolos astrológicos de signos e planetas. A música tocada se baseava em uma percursão suave, pausada com sons de instrumentos orientais, mas percebeu também um teclado eletrônico. Houve momentos de um discurso feito pelo regente do ritual em uma língua antiga que segundo lhe foi dito era de origem indo-européia mas que não era estudada no Brasil.

Concluo, provisoriamente, que os Lee Bats tiveram seu trabalho circunscrito no âmbito da divulgação, se assim posso chamar, de aspectos iniciáticos pautado num discurso hermético que apenas iniciados compreendem plenamente, garantindo-se também a recusa ao sucesso na mídia, como forma de preservar o obscurantismo dessa ordem, através da estratégia da marginalidade e do amadorismo, bem como da escolha de um vocalista de menores dotes musicais. Observe-se ainda, que segundo me disse Gallahade, parte da edição de discos da banda, que já era pequena, foi comprada por membros dessa ordem, o que torna o acesso aos discos da banda uma tarefa semelhante ao do colecionador que procura um livro de exemplar único.

Robertson Kircher \ Sidney Artur de Oliveira.

Sid Artur
Enviado por Sid Artur em 03/01/2011
Código do texto: T2707127