LEE BATS E O CONCEITO DE ROCK-POESIA

Eis aqui um interessante texto escrito à quatro mãos com Robertson Kircher:

LEE BATS E O CONCEITO DE ROCK-POESIA

O rock a partir do final dos anos 60 entrou numa fase altamente criativa, deixando de ser apenas o ritmo do balanço. O rock progressivo, o heavy metal, as fases dos Beatles, dos Rolling Stones e o desenvolvimento da obra de Bob Dylan e do The Doors criaram um panorama enriquecedor no âmbito do rock.

As referências do Led Zeppelin à obra de J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis, em músicas como Misty Mountain Hop, Battle of Evermore e Ramble On encontram-se referências explícitas à obra.

Jim Morrison, o canto do Doors, foi considerado um poeta do rock, devido à riqueza não só de suas letras, como a de seus depoimentos e frases. Bob Dylan, por sua vez, teve uma obra mais ligada diretamente à questão da poesia, notadamente à da Beat Generation, sendo famoso o encontro de Dylan com Ginsberg.

Rick Wakeman, após sair do grupo Yes, teve uma carreira marcada pela criação de obras musicais inspiradas em obras da literatura mundial: Viagem ao Centro da Terra (Júlio Verne), As Seis Esposas de Henrique VIII (ecos de Shakespeare e de Fred Murray e R. P. Weston) e Os Mitos e Lendas do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda(Geoffrey, Wace).

Bandas de rock progressivo como Jethro Tull, King Crimson, Genesis compuseram algumas canções com referências literárias ou com aproveitamento de temas da literatura popular e do folclore.

No âmbito do Brasil, o rock tupiniquim, que teve como um de seus momentos mais ricos o surgimento e a carreira altamente criativa dos Mutantes, que numa ou noutra canção podemos encontrar referências literárias, como em “Dom Quixote”, “Cavaleiros Negros”, “Ave Gengis Khan”, mas é com os Secos & Molhados, na sua rápida carreira que encontramos uma quantidade interessante de, não apenas referências indiretas às obras literárias, mas efetivamente poemas musicados: “Rosa de Hiroshima” (Vinícius de Moraes), “Mulher Barriguda (Solano Trindade), “Rondó do Capitão” (Manuel Bandeira), “As Andorinhas” e “Prece Cósmica” (Cassiano Ricardo), “O Hierofante” (Oswald de Andrade), “Tercer Mundo” (Julio Cortázar), “Não: Não digas Nada” (Fernando Pessoa).

Numa entrevista, João Ricardo, o band-leader dos Secos & Molhados (embora a grande figura no palco, sempre fora Ney Matogrosso, o vocalista) disse: “Essa é a nossa linguagem [a do rock]: a reinvenção do pop, porque isso é um processo que vem a partir de algum tempo, do underground, dos beatniks, dos hippies, e então talvez seja uma reinvenção disso, mas ainda dentro de uma infraestrutura progressiva do pop, entende, e dentro do próprio momento absolutamente capitalista que vivemos hoje. Sim, porque nós, de alguma maneira, somos um produto bem acabado, sabe, da sociedade."

A relação entre o rock e a literatura, em particular, a poesia, tem um explicação decorrente da amplitude dos temas tratados pelo compositor. No âmbito de uma produção musical que sinta a necessidade de ultrapassar o confessionalismo sentimental pseudo-romântico ou os bordões de balanço, de tratar de uma significação mais ampla para a mensagem da letra, invariavelmente o autor da canção esbarrará no paideuma literário e poético, recuperando assim, de certo modo, a lira de Orfeu para o âmbito da indústria e do mercado da música.

Especialmente, no caso da musicalização de poemas, encontramos o caráter de dar ao poema uma nova leitura, uma nova expressividade que a leitura, em silêncio, ou em declamação não tem. O acompanhamento musical, a vocalização e os solos instrumentais podem abrir novas possibilidades de leitura e de entendimento do poema, agora transformado em letra de música. Se adere aos estratos do poema um novo, o estrato musical. Pensemos no citado exemplo do grupo Secos e Molhados, o poema, “As Andorinhas” de Cassiano Ricardo, que possui uma colocação espacial da página que o aproxima dos experimentos visuais concretistas, agora, ganha a expressividade temporal da voz de Ney Matogrosso, assim, o que tinha um caráter visual, espacial, ganha um sentido temporal, rítmico-expressivo.

O poema “Hierofante” de Oswald de Andrade ganha uma introdução de vocalização (tirititirititi....) que associada ao ritmo acelerado das batidas, bem como ao âmbito melódico criado um possibilidade de leitura do poema que abre ou reforça o aspecto de oposição, de rebeldia e de crítica ao sistema social que o poema, em si, pretende tratar.

Mais recentemente, mas nem tanto, 1989, o grupo Legião Urbana, na música “Montecastelo”, fez uma belíssima inserção do poema “Amor é fogo que arde sem se ver” de Camões, além de trechos do capítulo 13 da Primeira carta de São Paulo aos Coríntios.

Como nos atemos à questão do rock, não pretendo citar as relações ricas entre a poesia e o movimento tropicalista. As obras de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé são riquíssimas nesse aspecto.

Mas um grupo que transformou a possibilidade de transformação de poemas em música, foi sem dúvida, o grupo The Lee Bats. Uma banda legada à marginalidade, ao completo esquecimento, mas que aos poucos vem sendo relembrada.

São muitas as músicas do grupo que são poemas musicados: “O Vampiro” (Charles Baudelaire, tradução de Jamil Haddad), “Psiquetipia” (Fernando Pessoa), “Poética” (Manuel Bandeira), “Adamastor” (trecho de Os Lúsiadas, de Camões), “Alerta” (Oswald de Andrade), “Ao Poder Público” (Raimundo Correia), “São Francisco” (Castro Alves), “Mundo Grande” (Carlos Drummond de Andrade), “O Torso Arcaico de Apolo” (Rilke), “Estrada Real” (trechos de O Vila Rica, de Cláudio Manuel da Cláudio Manuel da Costa), “Ode ao Sepulcro de Alexandre Magno” (também de Cláudio Manuel da Costa), são algumas dos poemas musicados.

A música “Rock-Poesia” da autoria do grupo é uma espécie de manifesto em favor do aproveitamento de poemas como letras musicais:

Rock-Poesia (The Lee Bats)

A poesia nasceu com a música

Sua musa única calíope em meus braços,

A sociodinâmica ensina que a vida é düreza

Nada é moles,

Mas que lua marshall no céu do sertão!

A poesia não é mais de Orfeu,

Agora quem manda é Palamedes!

Ôrra meu, blues suede shoes e besteirol mad...

Os poetas invadem o show

Let’s go! Camões, aqui Homero bashô,

Virgílios que a vida é perigo...

A poesia tem sabor de veneno, Arrigo.

Shakespiro si ti vejo,

Bate o gôngora do desejo.

A poesia não é mais de Orfeu,

Agora quem manda é Palamedes!

Ôrra meu, blues suede shoes e besteirol mad...

Gonçalves os dias da rainha,

Oswald por aí hastear o bandeira,

Vico alegre si ti vejo,

Peirce bem nietzsche tudo qui lhe disse,

De agora em dante, serei outro poeta,

Outro pessoa...

A poesia não é mais de Orfeu,

Agora quem manda é Palamedes!

Ôrra meu, blues suede shoes e besteirol mad...

Só ezra quem arrisca, vladimir avante,

Sou amante à toa;

Gosto de mallarmé com queijo

De cima drummond ti beijo,

Quem rimbaud meu coração?

A poesia não é mais de Orfeu,

Agora quem manda é Palamedes!

Ôrra meu, blues suede shoes e besteirol mad...

Logo ao início da letra, se faz a referência à origem mítica da música “A poesia nasceu com a música” e se cita a musa Calíope. Notemos que a musa da música era Euterpe, sendo Calíope a musa da epopéia, da eloqüência, sendo o significado de seu nome “A Bela Voz”, ao passo que o significado do nome “Euterpe” é “a doadora de prazeres”. Assim, ao substituir o nome da musa da música, os Lee Bats estão sugerindo a necessidade de associação entre a palavra e a música. Na origem do mito de Orfeu, este era ao mesmo tempo poeta e músico.

No refrão da música se sugere a destronação de Orfeu como o representante mitológico da poesia para o nome de Palamedes. Na mitologia grega, Orfeu era poeta e músico, filho da musa Calíope e de Apolo ou Eagro, rei da Trácia. Era o músico mais talentoso que já viveu. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar para escutar e os animais selvagens perdiam o medo. As árvores se curvavam para pegar os sons no vento. Ganhou a lira de Apolo.

Palamedes, por seu turno, foi considerado um dos heróis gregos mais talentosos. Segundo Higino (Fabulae, 277), ele criou onze letras do alfabeto grego. Era o alfabeto pelasgo, que mais tarde Cadmo levou para a Beócia e Evandro da Arcádia, com sua mãe Carmenta, introduziu na Itália.

A tradição mítica grega lhe atribui um grande número de invenções. Filóstrato escreve que foi ele quem inventou o farol, a balança, o disco e a guarda com sentinelas. Conta-se que ele também criou o uso da moeda, os pesos, as medidas, os jogos de xadrez e de dados e os sinais de fogo para transmitir mensagens. Os inventos atribuídos a Palamedes tiveram origem provavelmente em Creta.

A proposta, de certo modo irônica, é a de recuperando a figura do lendário herói grego, trazer o âmbito da invenção poética para a esfera do humano, uma vez que Orfeu era filho de Calíope e Apolo, portanto de natureza divina, ao passo que Palamedes seria filho de Náuplio, rei de Eubéia e de Clímene, filha de Catreu, por sua vez, descendente de Minos, rei de Creta.

Palamedes foi morto por meio de um estratagema de Ulisses, que queria se vingar de Palamedes, por tê-lo desvelado diante dos demais heróis gregos na tentativa de não ir à Tróia. O estratagema foi o seguinte: Ulisses, para se vingar, produziu uma carta supostamente enviada por Príamo, rei dos troianos, a Palamedes, escrita por coação por um prisioneiro troiano, para fazer crer que Palamedes era um traidor. Ulisses o acusou então de conivência com o inimigo e, para reforçar sua denúncia, escondeu ouro, preço da traição, na tenda de Palamedes. Quando o ouro foi descoberto, Palamedes foi condenado à morte pelo conselho de guerra e apedrejado injustamente.

Orfeu, por sua vez, morto pelas Mênades, teve seu corpo despedaçado, mas as musas recuperaram os pedaços e enterraram no Olimpo, fazendo com que os rouxinóis que por lá passaram se transformassem em pássaros de canto maravilhoso.

Palamedes, humaniza o sentido da relação entre música e poesia, ao passo que Orfeu tem um sentido semidivino. A proposta leebatina, nesse sentido é a de trazer a esfera artística em questão para o domínio da criatividade humana, para o âmbito da técnica e do saber fazer. Nesse sentido é que na letra se faz uma série de trocadilhos com nomes de poetas, filósofos, artistas em geral: Shakespeare, Abraham Moles, Nietzsche, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, C.S. Peirce, Mallarmé, Rimbaud...

Creio que a recuperação da obra musical dos Lee Bats teria muito a acrescentar no âmbito da experiência musical-literária, ou musical-poética, como forma de entendimento das possibilidades entre essas duas artes.

Robertson-Kircher \ Sidney Artur de Oliveira.

Sid Artur
Enviado por Sid Artur em 28/12/2010
Código do texto: T2696201