3 - A BOSSA NOVA SE ENCAIXA NO PERFIL DO GOVERNO JK
Ernani Maller
É comum que a arte retrate seu tempo, que reflita o contexto histórico em que está inserida, portanto, uma poesia baseada em temas como: “o amor, o sorriso e a flor”29, foi bastante oportuna no final da década de 1950. Uma poesia que exaltava apenas aspectos positivos, que trazia uma sensação de bem-estar, felicidade e harmonia com a natureza, refletiu muito bem o perfil otimista do governo de JK. A Bossa Nova em sua primeira fase não incomodou o governo, pois ela jamais contestou.
Esse período de mudanças do país, que saia do trauma com o suicídio de Getulio Vargas, e entrava numa fase de grande esperança, está bem refletida na primeira música de sucesso da Bossa Nova, “Chega de saudade”. As duas partes distintas desta música podem nos levar a pensar bem esses dois momentos, antes e durante o governo JK. Na primeira parte, em tom menor, geralmente ligado à tristeza, as tonalidades menores são compostas de acordes melancólicos, o autor envia um recado a amada, cuja portadora, é sua própria tristeza: “Vai minha tristeza e diz a ela / que sem ela não pode ser/ diz-lhe numa prece / que ela regresse/ Por que eu não posso mais sofrer ...”, aí a letra se identifica com o do estilo musical anterior a Bossa Nova, com a tristeza dos sambas-canções e boleros. Na segunda parte ela se ilumina, passa para uma tonalidade maior e, com uma temática positiva e esperançosa, passa a falar com otimismo, a fazer planos e ver um futuro cheio de felicidade. Nesse ponto ela nos remete ao período do governo JK “ ...Mas se ela voltar, se ela voltar / que coisa linda, que coisa
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29 - Essas palavras dão nome ao segundo LP de João Gilberto, lançado em 1960 pela Odeon e reeditado EMI.
louca / Pois há menos peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos que eu darei na sua boca...”. É esse otimismo da segunda parte de “Chega de saudade” que Juscelino quer passar aos brasileiros, e é esse alto astral que vai nortear toda a primeira parte do movimento Bossa Nova. Todos participantes da fase Pré-Bossa Nova, são unânimes em dizer que naquele momento havia algo diferente no ar, e realmente havia.
A estética da Bossa Nova, com seu aspecto solar, harmonizava-se com o otimismo que marcou o governo Juscelino Kubitschek e sua utopia desenvolvimentista representada pela construção de Brasília, a “capital do futuro”. A arquitetura de Oscar Niemeyer era informada pela mesma concepção construtiva que orientava o concretismo e o neo-concretismo nas artes plásticas e na poesia, no sentido de buscar uma integração estética com o mundo da indústria e da comunicação de massa., ( NAVES, 2004, p.30 )
A Bossa Nova por muitas vezes foi acusada de ser alienada quanto aos problemas sociais do país, porém esse é um perfil do qual ela não tem exclusividade, por muito tempo a temática da música brasileira, romantizou aspectos que na verdade eram negativos, principalmente no que tange à vida nas favelas, como na música “Chão de estrelas” 30: ”...a porta do barraco era sem trinco/ mas a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão...”. Não questionado qualidade poética, nem o valor lírico dessas obras, mas há nelas uma forma evidente de alienação quanto a verdadeira situação de pobreza e exclusão social. Não que o engajamento social e político devam ser posturas obrigatórias do artista, mas dado ao fato de que, a arte tem o poder de formar opinião e, conseqüentemente, ser um fator de mudança, essa necessidade (do engajamento) aparece. Há principalmente nos momentos de crises políticas e sociais, uma cobrança quanto a um posicionamento do artista. Mas em geral foram nesses momentos de crise, que a música participou como resistência civil às ditaduras civis e militares. A Bossa Nova refletiu seu tempo e seu contexto geográfico, portanto, ela foi coerente, ao retratar o dia-a-dia da classe média carioca.
A sensação de otimismo vivida pelo país, fazia parte da estratégia do presidente, que em reclames publicitários na TV Tupi, nos quais utilizava uma linda garota propaganda, mostrava
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30 - Composição de Silvio Caldas (1908-1998) e Oreste Barbosa (1893-1966).
que estava modernizando nossos parques industriais, estava nos colocando no futuro, os tempos eram de construir Brasília, de ter automóvel, máquina de lavar, geladeira, enfim, era tempo modernidade, era tempo de ser feliz. O próprio presidente, com seu jeito sedutor e convincente, prestava contas de seu trabalho através do rádio e da televisão. Devido ao forte
apelo de comunicação existente na televisão, rádio, música e nas artes em geral, não era de se admirar que um líder carismático do nível de Juscelino, estivesse sempre próximo dessas formas de comunicação, e que procurasse compreender e interpretar as culturas populares, rurais e urbanas. Juscelino teve em sua vida sempre esteve muito próximo das artes informais como ele diz:
“Meu pai era um homem muito boêmio e, como todos os habitantes daquela cidade, gostava de serenata. A maneira com que o diamantinense extravasava o seu desejo de manifestação artística era através das serenatas; não havia noite de luar sem que os grupos deslizassem pelas ruas tranqüilas, pequenas ruas íngremes, banhadas pela luz do luar, detendo-se de porta em porta e de baixo das janelas de suas amadas, cantando as modinhas que vinham desde a fundação da cidade e cujas origens ninguém conhecia”. (COHEN, 2005, P. 231).
E também das artes formais, como ele falava da época em que estudou com a professora francesa em Diamantina.
“Ela cobrava três mil réis por mês e eu comecei a freqüentar a aula [...] Ela ficou muito minha amiga; eu tinha 17 anos. Nós estudávamos, líamos juntos. [...] Traduzi todo o teatro francês: Moliére, Voltaire, Racine. Isso me deu um amor enorme à literatura francesa”. (COHEN, 2005, P. 231).
A Bossa Nova com seu perfil otimista se encaixou perfeitamente no projeto desenvolvimentista de JK, não destoava de suas propostas, já que, diferente da maioria dos sambas do morro e a árida música nordestina, não trazia em seu lirismo questionamentos quanto aos problemas sociais. Mais sim uma mensagem de alto astral e otimismo, nos mesmos moldes das mensagens do presidente da república, homem de sorriso fácil e diálogo cativante e que era o porta-voz de um povo brasileiro imbuído de grande esperança e otimismo, para quem o desenvolvimento industrial era a “solução de todos os nossos problemas”. Como diria o cronista capixaba autor de “As Coisas Boas da Vida”.
"...eu acho bom essa coisa de viver o nosso presidente a esvoaçar para um lado e outro do Brasil, não sei por quê, mas anima o interior e conforta o país, esse presidente volante que sorri cada dia em um município, dá abraços, come seu frango ao molho pardo e angu, inaugura um troço qualquer, diz coisas otimistas [...]. Por mim eu prefiro um presidente voando a dois na mão. Voando ele é um anjo federal, que não faz mal a ninguém[...]. Voai, presidente, voai”. (COHEN, 2005, P. 231).
No que tange as críticas à Bossa Nova de que americanizava o samba, era possível fazer uma separação entre a letra e a música. A visão nacionalista de críticos como o historiador José Ramos Tinhorão, deve ser discutida, pois a Bossa Nova, embora tivesse em sua parte musical elementos importados, tinha seu lado poético puramente brasileiro, extremamente carioca. Porém o modismo do ideário esquerdista tão em voga nos anos sessenta, principalmente nos meios universitários, até mesmo por conta das ações nacionalistas do Centro Popular de Cultura (CPC)31, tendo como um de seus líderes o poeta Ferreira Gullar, fazia com que qualquer noção antiimperialista americana ganhasse força. Mas essa submissão a valores importados com certeza não deveria ser atribuída ao lirismo bossa-novista. Embora inquestionável o seu aspecto de alienação quanto as questões sociais, as letras32 da Bossa Nova, sempre foram voltadas para o cotidiano da Zona Sul carioca dos anos sessenta, mesmo desprezando outras regiões, não se pode negar a originalidade dessa forma de compor.
Segundo Maquiavel, em o “Príncipe”, para o governante não adianta apenas ser bom, tem que parecer ser bom. Assim como JK, que acreditava no Brasil e demonstrava acreditar. Essa convicção do presidente em suas metas e sua crença na capacidade do país em se superar e entrar em uma nova era de crescimento e de industrialização, foram fundamentais para a construção do mito em torno de si. Outro contribuinte foi sua estreita ligação com artistas como Bruno Giogi33; o violonista Dilermando Reis, que inclusive foi quem sugeriu o nome,
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31 – CPC - Fundado em 1961 pela UNE, União Nacional dos Estudantes.
32 - Cada autor tinha suas particularidades nas formas de escrever, não havia uma hegemonia literária no movimento.
33 – Escultor - autor de “Os Guerreiros”, instalado na Praça dos Três Poderes, “Dinamismo Olímpico” e “Monumento à Cultura”, todas fundidas em bronze, e ainda “Meteoro”, em mármore de Carrara, instalada em frente ao palácio do Itamaraty.
“Catetinho”, para a primeira construção em Brasília; o poeta Vinícius de Moraes, que o presidente visitava constantemente em sua casa no Rio de Janeiro, e o compositor Tom Jobim. Os dois últimos no auge da Bossa Nova foram convidados por ele para comporem “Brasília, Sinfonia da Alvorada”, que seria apresentada no espetáculo Son et lumière, na inauguração de Brasília, porém uma mudança no cerimonial, que alegou mudança no estilo de música, durante o espetáculo ouviu-se “Peixe vivo” e “Salve o presidente” ( Heckel Tavares). “Brasília, Sinfonia da Alvorada”, seria apresentada pela primeira vez ao vivo somente em 1985, na rampa do Congresso Nacional, interpretada pela orquestra sinfônica de Brasília, com Radamés Gnattali ao piano, regência de Alceu Bochino e com a presença de Tom Jobim. Os compositores nunca receberam pela obra, como disse Tom:
A Sinfonia de Brasília foi no fim do governo do Juscelino Kubitschek. Para receber o dinheiro e pagar a orquestra foi uma dificuldade. O cara me disse: “Ou eu pago vocês, ou pago a orquestra. O que você quer?” Eu disse: “Pague a orquestra”. Se não pagasse a orquestra, ela não viria mais. Eu dependia da orquestra, pois vivia como orquestrador. Nunca recebi pela Sinfonia de Brasília. Receber o quê? Cobrar do Jânio Quadros, não dava. E o espetáculo para qual a sinfonia foi feita jamais se realizou. (SOUZA, 1995, p. 131).
Essa ligação com as artes, essa aproximação com artistas certamente foi uma forma, consciente ou não, de humanizar sua administração.
Se pensarmos que a arte, de um modo geral, não se constrói como algo independente, que ela é um reflexo do seu tempo, de seu contexto histórico. A Bossa Nova em sua primeira fase (1958-1962), demonstrava ser o período de maior alienação social e política da música brasileira, a futilidade dos temas que em geral abordava, o cotidiano da zona sul carioca como: o dia de sol, a garota que passa, o barquinho que navega no mar azul, o balanço dos quadris de uma carioca e assim por diante. Contrasta com o hábito de denunciar e ironizar situações do dia-a-dia, muito presente em nossa música. Porém ela nasceu e se irradiou para o mundo, da então Capital Federal, que sendo sede do poder era economicamente privilegiada e, por sua vez também era o centro irradiador de otimismo para o país.
Nesse momento o Rio de Janeiro ainda não sentia a perda do status de Capital Federal, parte significativa da administração federal continuaria no Rio por muito tempo após a inauguração de Brasília. Havia inclusive movimento entre os servidores públicos, no sentido de levar a capital de volta para o Rio de Janeiro, apesar da remuneração em dobro em Brasília, a “dobradinha”. O movimento era fortalecido devido às precárias condições que ainda se encontrava a nova capital. O movimento “retornista” continuaria no governo do presidente Castello Branco, que segundo seu secretário de imprensa, o jornalista Carlos Chagas, passou 75% do seu mandato no Rio de Janeiro, mas não desistiu da mudança, e diria: “Brasília foi construída às pressas, mas é cidade pra sempre”. (COUTO, p.287, 2006). Por fim consolidação acontece. “A cidade é cada vez mais capital. A pá de cal é jogada pelo presidente Emílio Médici, terceiro do ciclo militar, que assumiu no final de 1969. Ele considerou Brasília irreversível”. (COUTO, 2006, p.287).
Juca Chaves, compôs na época do movimento a música “Presidente Bossa Nova”, que é uma crítica ao presidente, inclusive ironizando o fato de uma de sua filhas ter comemorado o aniversário no palácio de Versális na França. A essa composição é atribuída apelido do presidente. Por ser baseada no ritmo de Bossa Nova, irritou muito o pessoal do movimento, pois Juca Chaves usou do estilo que eles consideravam como propriedade suas, para fazer críticas, o que não era estilo do movimento na época. Além disso, Juca era (e continua sendo) visto por suas sátiras, como um comediante e não como músico. A música, “Presidente Bossa Nova”, também denuncia outras extravagâncias do presidente como: “Mandar parente a jato pro dentista/ Almoçar com tenista campeão/ Também poder ser um bom artista exclusivista/ Tomando com Dilermando umas aulinhas de violão”. A música acabou sendo proibida por Juscelino, o que a tornou memorável, pois esse tipo de atitude, não fazia o estilo do presidente, que sempre procurou usar de diplomacia para contornar situações desfavoráveis, na verdade Juscelino em várias ocasiões mostrou que sabia perdoar.
A Bossa Nova em sua primeira fase nos mostra um Brasil sem mazelas, sem problemas sociais. O desdém que as classes média e alta cultivavam em relação às classes populares, esta diretamente ligada à noção de desvalorização da produção artística nacional, dentre elas o samba. A Bossa Nova também renega uma prática comum da música brasileira, que é a de denunciar e satirizar situações do dia-a-dia Já em 6 de dezembro de 1916, no
primeiro samba a fazer sucesso, lançado no Brasil, “Pelo telefone”33 de Donga34 e Mauro de Almeida. Os autores debocham do fato de o chefe da polícia mandar avisar “ ...que na Carioca tem uma roleta para se jogar...”, onde fica evidente os atritos entre a polícia e a malandragem e o fato de o jogo35 já ser coibido naquela época.. O grupo Vocalistas Tropicais grava em 1946 o samba de Zé Keti, "Tio Sam no Samba” uma ironia a influência musical americana. As marchas de carnaval tiveram como ponto forte o deboche.
O projeto desenvolvimentista de JK, de industrializar o país através de multinacionais e, na maioria das vezes, com capital 100% estrangeiro, tem para o crítico e historiador José Ramos Tinhorão o seu correspondente na música: a Bossa Nova. Para ele os recursos de harmonia, interpretação cool, e o próprio formato dos grupos musicais: bateria, baixo, piano e violão, seriam “ a custa da assimilação de recursos culturais importados da música popular norte-americana e da música erudita”. ( Tinhoão, 1978, p.230). Segundo ainda ele, a Bossa Nova não consegue se firmar no mercado internacional como música brasileira, devido às influências estrangeiras tão evidentes na formatação do estilo, para sustentar sua posição, cita o LP de saxofonista americano Stan Gezt, como sendo o disco de Bossa Nova mais vendido no mundo. Acredita também em uma linha de separação social que ocorre na mesma época no Rio de Janeiro, com pobres e negros nos morros e na Zona Norte, ricos e remediados na Zona
Sul, o que facilitou o aparecimento de uma nova classe de jovens totalmente desvinculados das tradições musicais, principalmente do samba. Essa nova elite sujeita “a ilusões do rápido processo de desenvolvimento com base no pagamento de royalties à tecnologia estrangeira”. No afã desenvolvimentista essa elite às vezes era levada ao equivoco pelo próprio presidente da república.
“Juscelino Kubitschek saudou com um discurso de afirmação nacionalista o lançamento dos primeiros modelos de automóveis JK no Brasil, diante de algumas unidades trazidas às pressas da Itália pelos espertos donos da Alfa Romeo, que tinham vindo fabricar seus
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33 - Há muitas controvérsias quanto a autoria de “Pelo telefone”, que teve como primeiro título “O Chefe da Folia”, “O Chefe da Folia/ Pelo telefone manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione para se brincar”, o fato de ser cantada em partido-alto na casa de Tia Ciata, onde foi composto, dava margem a vários autores participarem da letra, já que no partido-alto fica livre a improvisação de versos. Em artigo de 1917 o Jornal do Brasil atribui a co-autoria, além de Donga e Mauro de Almeida, também a João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário.
34 - Ernesto dos Santos (1889-1974)
35 - O jogo só seria proibido no Brasil em 1946, no governo do General Gaspar Dutra.
modelos com as iniciais do presidente nas instalações da Fábrica Nacional de Motores, no Estado do Rio de Janeiro”. ( Tinhoão, 1978, p.224-225).
A Bossa Nova teve depois da sua primeira fase, um período de engajamento político, mas dessa nova postura só participará um dos seus principais criadores, Carlos Lyra. Ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, do qual foi um dos Fundadores. O CPC tinha como objetivo, criar um senso crítico através das artes e com isso mudar o foco dos problemas individuais, que geralmente eram abordados nas músicas, para um âmbito mais geral.
...como no início dos anos 60 a realidade da política desenvolvimentista do governo Kubitschek se revela incapaz de absorver em seu quadro econômico a totalidade dos novos profissionais de nível superior gerado pelas universidades, a falta de perspectiva de ascensão levou os estudantes a uma atitude de participação crítica da realidade, que os acabou conduzindo inapelavelmente para o campo da política. ( Tinhorão, 1998, p. 315 )
Nara Leão também se inseriu na música engajada, porém com repertório desvinculado da tendência bossa-novista. Não sendo este o caso de Lyra, que continuaria usando os princípios básicos do movimento em suas composições, como na parceria com Chico de Assis, “A canção do Subdesenvolvido” composta em 1962 que foi proibida após o golpe militar de 64. Em 1963, no documentário com fins ideológicos, “Couro de Gato”, que focalizava os meninos pobres dos morros cariocas a caçar gatos para lhes tirar a pele, para com elas fazer seus tamborins, gerando crítica como esta:
O compositor escolhido para musicar o filme era o mesmo autor de “Criticando”, Carlos Lyra, que aí lançaria com Geraldo Vandré uma requintada composição de Bossa Nova, em chocante desacordo com a crua realidade das imagens. ( TINHORÃO, 1998, P.315).
Nesse mesmo ano, compôs com Vinícius de Moraes o "Hino da UNE". E criticando também o movimento Bossa Nova, compôs música “Influência do Jazz”, expondo seu descontentamento com a descaracterização do samba, que segundo ele “foi se misturando/ se modernizando/ e se perdeu". Posteriormente, assim como Nara Leão, tentou uma aproximação dos compositores do morro, Cartola e Nelson Cavaquinho. Porém tornou-se parceiro apenas de Zé Keti, juntos compuseram o “Samba da Legalidade”, na época da renúncia de Jânio Quadros, quando os militares dificultavam a posse de João Goulart. Essa aproximação com Zé Keti, o único dos três sambistas que não tocava violão, pode ter sido uma forma de Carlos Lyra não fazer concessão no jeito de tocar o instrumento.
Depois do golpe de sessenta e quatro e o advento da repressão imposta pelos militares, surgiram muitos artistas engajados, que tentavam através de sua arte conscientizar a sociedade sobre os problemas sociais e seus direitos. Era comum esses artistas tentarem ludibriar a censura, que geralmente era praticada por pessoas, consideradas por esses artistas, de baixa capacidade intelectual36. Nessa época surgiram as chamadas músicas de protesto, o que gerou um novo tipo de modismo. “ ...a partir da música “Disparada” 37, Geraldo Vandré se tornou o músico brasileiro mais identificado com a versão brasileira de “canção de protesto”, (Napolitano, 2003, p.209). Porém sua música “Pra não dizer que não falei das flores ou Caminhando“ , lançada no III FIC da TV Globo em 1968, se torna o hino não-oficial da oposição à ditadura militar, sendo posteriormente proibida, e seu autor obrigado a exilar-se no exterior (Naves, 2001, p.67). Compor música de protesto era um caminho mais fácil para o sucesso, o que muitas vezes colocava em dúvida a sinceridade do protesto em si.
Em 1964 Nara Leão, a musa do movimento, “cansou-se” dos temas alienados da Bossa Nova, partindo para a gravação dos compositores do morro, tornando-se a cantora mais politizada do país. No LP, Opinião de Nara, que deu origem ao show “Opinião” interpreta músicas de, Zé Kéti38, “Opinião“ e “Acender as velas”. E em seus LPs seguintes seguiu gravando compositores como Nelson Cavaquinho39 “Luz Negra” e Cartola 40 , “O Sol Nascerá”, “O Favelado”, “Partido alto”, “Samba, samba, samba”, temáticas sociais onde os compositores alardeia a falta de oportunidade dos moradores do morro. Também há nesses discos as músicas nordestinas com temáticas sociais de João do Valle como: “Peba na Pimenta”, “Carcará” e “Pisa na Fulô”. Pouco antes de sua morte, quando gravava seu ultimo disco, intitulado “Dez anos depois”, em homenagem à Bossa Nova, Nara falou sobre essa fase de sua vida:
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36 - Deve haver aí uma exceção a Vinícius de Moraes, que por algum tempo também foi censor.
37 - Composição de Geraldo Vandré e Théo de Barros.
38 - José Flores de Jesus (1921-1999)
39 - Nelson Antônio da Silva (1911-1986)
40 - Angenor de Oliveira (1908-1980)
“Houve uma época, antes de 1964, em que eu acreditei que pudesse fazer uma revolução através da música popular. Com isso troquei um material riquíssimo da Bossa Nova, que ninguém supera, por músicas muito pobres, como as de João do Valle ou Zé Keti, que diziam coisas que eu considerava importantes sobre
reforma agrária ou a vida na favela. Claro que eu era muito ingênua. Nenhum cantor vai mudar o mundo”. ( CASTRO, 2001, p.235)
Por toda a década de sessenta a “queda de braço” continuou. De um lado artistas engajados atacavam a ditadura das formas mais inusitadas possíveis. Por outro lado os governos militares, que usam a música para fazer proselitismo patriótico, a música “Eu te amo meu Brasil”, de Dom e Ravel, gravada pelo conjunto Os Incríveis, seria ensinada nas escolas como forma de incutir ideais patrióticos aos estudantes. A fase de protesto da música brasileira, que inclusive antecedeu “‘a protest song norte-americana”, (ARAÚJO, 2006, p.328) foi de extrema importância na carreira de compositores como Carlos Lyra, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, que desempenharam papel relevante na defesa dos ideais de liberdade e de cidadania, desafiando a ditadura e, em muitos casos, sofrendo as conseqüências de um sistema rancoroso que não sabia lidar com a diversidade de opiniões. A resposta vinha geralmente na base da força e da truculência. Por outro lado artistas como, João Donato, Roberto Menescal, Eumir Deodato, Tom Jobim, com exceção para o “Morro não tem vez”, não usaram a tendência desse momento político em suas temáticas musicais.
Tom [...] preferia combater o bom combate pelo lado do humanismo, povoando o planeta de maravilhas sonoras recônditas como sua alma em concha. No máximo, na terceira fase de sua carreira, ele empunhou a bandeira da ecologia. ( SOUZA, 1995, P.146)
Tom que já havia atuado como ator figurante no filme “Pluft, o fantasminha”, de Maria Clara Machado, talvez por evitar uma postura política, recusou-se participar do filme “Terra em transe” a convite do cineasta Glauber Rocha, no qual faria o papel de um poeta idealista. Roberto Menescal por sua vez não concordava com o uso da música para alertar a sociedade, segundo ele, “música não foi feita para alertar coisa nenhuma, quem alertava era corneta de regimento”.
Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda a partir de sessenta e cinco, lançaram uma música que torna velho tudo que veio antes, inclusive a Bossa Nova ainda tão jovem. Esse tipo de música lançada pela Jovem Guarda talvez tenha sido o mais propício às conveniências do momento político. Porém mais uma vez a arte demonstraria aspectos alienados, desta feita em forma de rock, o nosso chamado iê- iê- iê.
Com a instauração do iê- iê- iê & derivados, perdeu-se o sentido da história. A súbita infantilização da música popular “envelheceu” tudo que vinha de antes. Se a própria Bossa Nova se tornou jornal de ontem, como acreditar que havia apenas dez anos, em 1955, Dick e Lúcio eram dois meninos pelos quais se guiavam outros ainda mais jovens do que eles? (CASTRO, 2001, p.177)
Em 21 de novembro de 1962, a Bossa Nova faz sua estréia internacional no Carnegie Hall de New York. Uma iniciativa do produtor fonográfico Sammy Frey e da consulesa do Brasil Dora Vasconselos. Esse show que teve a participação de 35 músicos abre as porta do mundo para a Bossa Nova. Depois desse show, para mais de 3000 espectadores, ela nunca mais seria a mesma. Sendo esse o fim da primeira fase do movimento. Em sua nova fase, procedimentos que o movimento rejeitou passaram a ser incorporados novamente. Elís Regina, por exemplo, retomou toda uma forma de interpretação que havia sido renegado pelos bossa-novistas.
Para quem costumava cantar boleros e versões, o canto cool da Bossa Nova não cabia direito em seu estilo. A voz de Elis Regina destoava radicalmente do caráter intimista da Bossa Nova, em que o verbo cantar era conjugado com suavidade, no feminino. Bossa Nova, para a linguagem do jazz, era cool. A voz de Elis era hot. Diferente. Como água e vinho. ( ECHEVERRIA, 2007, p. 34 e 35 )
Os gestos exagerados também sinalizavam para uma outra descaracterização, Elis, cantava rodando os braços, o que inclusive lhe rendeu o apelido de “Hélice”, parecia que ela queria levantar vôo. Essa coreografia atribuída ao bailarino americano Lennie Dale, causou muita insatisfação em Ronaldo Bôscoli, que levou Mielle a falar: “Deixa, Bôscoli, assim ela enterra a Bossa Nova de uma vez”. ( ECHEVERRIA, 2007, p. 39 ). E o seu parceiro no programa “Fino da Bossa” (depois apenas “O Fino”, devido a problema de direito sobre o nome), Jair Rodrigues, cantava Bossa Nova como quem cantava samba tradicional, trazendo a um programa dedicado à Bossa Nova a postura do sambista malandro, em total desacordo com a postura da primeira fase do movimento.
Todas essas mudanças aliadas ao fato da maioria dos principais artistas do movimento terem ficado nos Estados Unidos após o show do Carnegie Hall, fez com que a Bossa Nova começasse a perder a força, e em meados da década de 60 ser substituída no gosto popular por um novo movimento, a Jovem Guarda.
O movimento passou, porém, muitas influências ficaram como as novas e ricas harmonias, com seus acordes dissonantes e uma música mais intelectualizada, na verdade o samba se tornou mais suave, uma música mais adequada às expectativas internacionais, passaria a ter mais erudição, não seria visto apenas como algo exótico. “... com a Bossa Nova, o país musical passava de fornecedor do turbante de bananas de Carmem Miranda, a exportador de um produto urbano de ponta, industrialista”. (SOUZA, 1995, P. 148).
Em 31 de janeiro de 1956, na posse de JK, o Brasil ouvia Ângela Maria cantar ”Babalu” no rádio. Na transmissão da faixa presidencial a Jânio Quadros, cinco anos mais tarde, a jovem nata intelectual em ascensão se entregava à cadência desconcertante de “Desafinado”, de João Gilberto. Entre uma e outra se concretizou um milagre, prometido pelo ex-presidente mineiro: crescer 50 anos em apenas 5. (COHEN, 2005. p.65)
CONCLUSÃO
O trabalho realizado, cujo objetivo foi analisar as transformações no Brasil na era JK, norteou-se em pontos importantes, como a realidade da social e política do período. O surgimento do estilo musical Bossa Nova, que trouxe à sociedade uma nova opção musical, com seu novo jeito de compor e interpretar. Também o pensamento de pessoas que apoiaram ou não o esse movimento, que retratava principalmente o cenário carioca.
Concluímos que a tranqüilidade política, não é a responsável pelo surgimento da Bossa Nova, já que a maioria das pessoas que viveram a época é unânime em dizer que as raízes e a maturação do movimento vêm de muito longe, mas teve sim grande influência na sua formatação, como um estilo musical que a principio, recusava-se a contestar, insistia em não ver que havia sim, muitos problemas sociais no país. Ficou bastante evidente o quanto ela retratava o otimismo e a sensação de bem-estar disseminada pelo então presidente JK. Com certeza mais importante que a tranqüilidade política foi a figura do presidente, o alto astral que ele proporcionou ao país influenciou diretamente no alto astral da Bossa Nova. Tanto que, aos primeiros problemas políticos, oito meses após o término do governo de Juscelino, quando os militares impediram João Goulart de assumir o poder após a renúncia de Jânio Quadros, surge a primeira Bossa Nova de protesto, com o “Samba da Legalidade”, daí por diante o país entrou em uma fase, (principalmente depois do golpe militar), de músicas de protesto, que também estavam refletindo o momento político do país.
Compreender esse estilo, não só no aspecto musical, mas também social, foi de grande valia, já que nos dias atuais grande parte dos cantores, músicos e compositores são influenciados pelo movimento Bossa Nova e por seus fundadores: Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, Roberto Menescal, Johnny Alf, Newton Mendonça, João Donato, Carlos Lyra, Nara Leão, Sérgio Ricardo, Wanda Sá, Ronaldo Bôscoli, Alaíde Costa e outros, que deixaram legado perene para as futuras gerações.
Artistas de alto nível foram influenciados, toda uma geração pós-Bossa Nova, como Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso, João Bosco, Gilberto Gil, Milton Nascimento. Mais recente, Cazuza, Marisa Monte, Kay Lyra, Bebel Gilberto, Leila Pinheiro, Cris Delano e Joyce, mostram a possibilidade de renovação o estilo musical Bossa Nova, sendo aceito por novas gerações.
Vale destacar a importância de pessoas como o produtor Aloísio de Oliveira e o artista gráfico Cesar G. Villela, que registrou em mais de 1000 capas de discos uma época única da história musical brasileira.
Na época do seu aparecimento, não se pensou que a Bossa Nova viria a ser mais uma das muitas variações do samba. Pois a despeito de tudo isso, o samba não morreu, muito pelo contrário, nas décadas seguintes o Samba tradicional, o Samba de enredo, Pagode1, o Samba-de-roda, o Chorinho, o Partido-alto e até mesmo o Samba de breque, popularizado por Moreira da Silva, tiveram seus momentos de grande repercussão. Grupos musicais com repertórios exclusivamente de samba como Demônios da Garoa e Grupo Fundo de Quintal permanecem há décadas em atividade, com excelente aceitação no mercado . Nos anos 80 houve uma avalanche de sucessos de sambistas como: Almir Guineto, Luiz Airão, Agepê, Martinho da Vila, Clara Nunes, Alcione, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho. Nos anos 90 surgiriam uma série de sucessos de pagode iniciada pelo grupo Raça Negra, batendo todos recordes de execução e venda de discos. Ainda nessa linha, conjuntos como: Grupo Raça,
Só Pra Contrariar, Soweto, Arte Popular, Exaltasamba e muitos outros, demonstravam que a preocupação de americanização do samba era infundada.
Essa pesquisa monográfica retratou um período onde muitos sonhos foram sonhados, muitas conquistas foram alcançadas, assim como muitas polêmicas foram feitas a respeito da Bossa Nova. Falar da música, da arte, da política, enfim de todas as esferas da sociedade é sempre
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PAGODE – O carioca, pois há o pagode mineiro, um estilo regional, que não é derivado do samba.
Um bom contribuinte para a formação da história, contudo, falar da Bossa Nova, foi retomar
não só a realidade do país que visava a modernidade e a possibilidade de ter sua própria “bossa”, que retratasse a beleza do povo e do Brasil.
Mesmo com tanta dificuldade, com um quadro tão elevado de violência, a “Cidade Maravilhosa” – Rio de Janeiro – continua sendo cantada, assim como nos seus “Anos Dourados”. Muita coisa mudou, a cidade se desenvolveu, cresceu ainda mais, muitos cenários da época da Bossa Nova já não existem mais. Permanece, no entanto, o alto astral do carioca, os muitos dos encantos naturais do Rio de Janeiro e a beleza de suas garotas, as garotas de Ipanema.
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