Rock, Reggae e Rap brasileiros: Memória e história política de contestação
A música popular brasileira foi, sem dúvida, o exemplo mais marcante que pude observar nos últimos tempos acerca da questão da memória. O cenário era explosivo. Um mega espetáculo na cidade do Recife com uma aparelhagem sonora de fazer tremer os prédios do marco zero. Um grande palco e algumas atrações muito conhecidas da juventude brasileira por serem, inclusive, muito executadas nas rádios e emissoras diversas de divulgação musical. Uma multidão sedenta de diversão, descarregando energias, violência, drogas, libido sexual, emoções e tudo que é inerente às noites frenéticas de uma capital brasileira. Uma conjunção de aspectos presente naquela apresentação fazia a emoção aflorar, a energia perder-se no meio da multidão e muita gente cantar, gritar, berrar em uníssono o que achavam de suas memórias.
“Memórias não são só memórias. São fantasmas que me sopram aos ouvidos coisas que eu nem quero saber”. Esse pequeno refrão é repetido enfaticamente pela grande multidão. Quem tenta ficar parado é levado pela intensidade do som, pelo peso do contra baixo e os solos do guitarrista. “Eu fui matando os meus heróis aos poucos como se já não houvesse nenhuma lição pra aprender”. Esse primeiro verso da canção permite que percebamos o desprezo pelas referências contida na letra e mais ainda na atitude de todos que cantam em coro como se estivessem lançando manifestos, como se protestassem contra suas próprias memórias. “Matando os meus heróis”, gritavam. É nessa esteira que iremos aqui prosseguir com a análise. Das memórias como fantasmas que sopram aos ouvidos, como um jovem historiador que derrubou a História como quem derruba os heróis da adolescência.
Afora esse primeiro exemplo, temos também a postura clara, dentro da música popular atual, de “escovar a história a contrapelo” como teorizou Walter Benjamin. O que dizer então de “palmares 1999”, uma canção no estilo reggae, que se apresenta como expressão legítima da cultura negra? “A cultura e o folclore são meus, mas os livros foi você quem escreveu. Quem garante que palmares se entregou? Quem garante que Zumbi você matou?” Como se fosse um diálogo direto com o historiador tradicional, representante do poder dominante. O intelectual que sempre faz o tipo da história fácil seguindo a linha do “sempre foi assim”. Ora, a contestação das canções de reggae vem do presente, do “aqui” e “agora”, de uma geração que se liga à outra pra cobrar o que não foi pago. Dentre outras coisas, o direito de construir uma memória legítima como diz o verso: “Nossa memória foi contada por você e é julgada verdadeira como a própria lei”.
Outro ponto marcante é que tais canções interferem claramente nos processos políticas da sociedade, não cabendo somente no campo do entretenimento. Nesse sentido o campo do social é privilegiado pela presença de questões históricas raramente levantadas na canção popular. Num terreno bastante conflituoso da sociedade brasileira que é o das políticas públicas de assistência social. Tal política convive entre os programas de compensação social como as cotas universitárias e as bolsas-auxílio do governo federal e uma forte resistência por parte de outros setores da sociedade que são contra. Ainda na canção “palmares 1999” temos os versos “Por isso temos registrado em toda a história uma mísera parte de nossas vitórias. É por isso que não temos sopa na colher e sim anjinhos pra dizer que o lado mal é o candomblé”.
Em outro estilo considerado de origem negra, o “rap”, um grupo proveniente das favelas de São Paulo, constrói uma verdadeira narrativa pra legitimar o que o autor chama de “negro drama”. Como um eterno drama do negro no “aqui” e “agora” dentro da sociedade, mas que tem explicações históricas.
“O drama da cadeia e favela, túmulo, sangue, sirene, choros e vela. [...] Desde o início, por ouro e prata, olha quem morre, então veja você quem mata, recebe o mérito, a farda, que pratica o mal, me vê pobre, preso ou morto já é cultural. Histórias, registros, escritos. Não é conto, nem fábula, lenda ou mito [...] Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai. Ei, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é, sozinho cê num guenta. sozinho, cê num entra a pé”.
É claro que esse tipo de expressão artística não é um trabalho acadêmico, não é um livro munido de fontes legitimadas, de citações relevantes. Mas será que tem menos valor de memória? Diante disso notamos que a história está sempre sendo significada pelo “aqui” e “agora”. Notamos que o lugar ocupado pela canção popular como o da diversão e do entretenimento, do folclórico ou do pictórico contém elementos de contestação social. Elementos que podem ser construtores de memória muito eficazes. Tão relevantes como qualquer outro e até mais, na medida em que é mais publicado, ou mais consumido, mais visto. O que dizer das multidões que ocupam os espaços das festas públicas? Dezenas de milhares pelo menos nas capitais. E aqui caberia até mesmo a questão a ser analisada do papel do Estado na promoção do que hoje está no campo cultural. A promoção da cultura como entretenimento e diversão dos cidadãos.
As produções culturais fazem parte da nossa formação como cidadãos. Com elas, nos identificamos, combatemos, legitimamos certos discursos e certas práticas. Nas canções de Rock brasileiras, por exemplo, - pelo menos nas vertentes mais enxutas – com a formação “bateria, baixo e guitarra” a valorização do elemento sonoro tenso e perturbador é característica marcante. A mãozinha das grandes aparelhagens faz a multidão “surfar na onda” do som pesado. Tanto que nas músicas lentinhas a tendência é que falem de amor. As mais rápidas empolgam mais a multidão com letras de protesto e de incentivo ao espectador. Que acaba tornando-se um interlocutor muito ativo significando o seu “aqui” e “agora”. Vejam um trecho da letra da canção “Todos estão mudos”:
“Não parece haver mais motivos
Ou coragem pra botar a cara pra bater
Um silêncio assim pesado
Nos esmaga cada vez mais
Não espere, levante
Sempre vale a pena bradar
É hora
Alguém tem que falar”
A música popular, portanto, é um elemento que recorre bastante a recursos sonoros, bem como memória afetiva, com o intuito de abandonar aquele lugar do exótico, do entretenimento. Manifestações musicais como o Rock, o Reggae e o Rap são gêneros fortes onde as vozes da revolta e da contestação ressoam através das gerações. Uma verdadeira politização da arte. Não exatamente como teorizou Benjamin, mas uma arte da forma que sabe pra que veio e vem justamente pra intrometer-se onde é chamada.