Tião carreiro: O Pelé dos violeiros
Todos os setores da vida humana, seja ele qual for, possui os talentos medianos, os medíocres e aqueles que ficam acima de toda e qualquer comparação, e que são os chamados gênios, cuja obra os estudiosos tentam, sempre sem sucesso, explicar e entender. Isso ocorre frequentemente em relação à música popular na qual, muitas vezes, temos a repetição e o lugar comum e por outras ficamos extasiados com a eloqüência genial de um cantor ou cantora, de um compositor ou de um intérprete. É esse o caso de Tião Carreiro, nome artístico de José Dias Nunes, nascido em 13/12/1934 na localidade de Monte Azul, próximo da cidade de Montes Claros, no norte de Minas Gerais, conhecido nos ciclos sertanejos como o “Pelé dos violeiros”.
Como é do conhecimento, mesmo dos não aficionados por futebol, Pelé foi o maior jogador de todos os tempos, recordista de gols assinalados na era do profissionalismo, vencedor de três Copas do Mundo e escolhido como o “Atleta do século”, em eleição realizada na década de 1990. Assim, chamar Tião Carreiro de “Pelé dos violeiros” é reconhecer nele a excelência de executor da viola, esse instrumento que é quase a essência de nossa musicalidade, trazido que foi pelos colonizadores portugueses e aqui aclimatada de tal forma, que ganhou sonoridade e jeito próprios.
Na história de nossa música sertaneja, já houve e ainda há muitos e muitos violeiros da mais extrema qualidade. Constantemente continuam a surgir novos e excelentes violeiros, mas Tião Carreiro conseguiu ser a síntese da arte popular da viola, instrumento que começou a aprender quando ainda tinha apenas 8 anos, na cidade paulista de Araçatuba, onde ajudava o pai na lavoura. Após o serviço, ia começando a dedilhar a sua viola. A infância difícil não o afastou da arte da cantoria, pelo contrário. Depois de tentar a sorte no garimpo, mudou-se para a cidade de Valparaíso e foi trabalhar como garçom. Aos 16 anos, começou a atuar artisticamente, utilizando o nome de Palmeirinha e formando dupla com Coqueirinho, com quem se apresentou no Circo Giglio. Iniciava-se ali, em 1951, uma das mais eloqüentes carreiras artísticas da música popular no Brasil. Consta quase como uma lenda que, naquele ano, a dupla Tonico e Tinoco foi se apresentar em Araçatuba e Tião pegou escondido a viola que Tonico deixara em cima de uma cadeira num hotel e aprendeu a afinação dela. Depois ganhou uma viola pintada à mão de presente e passou a escutar as apresentações do violeiro Florêncio, da dupla Torre e Florêncio e foi aprendendo mais e mais. Em seguida, trocou o nome para Zezinho e formou uma dupla com Lenço Verde. Com e ele e o jovem acordeonista Robertinho do Acordeom passou a se apresentar em um sem número de pequenos circos, em cidades como Aguapeí, Alto Pimenta, Guararapes, e Bento de Abreu, isso, sem contar as apresentações em sítios e fazendas. Ia tocando a viola e se aprimorando. Tocou no programa de Rádio “Assim canta o sertão” e, de tantas andanças, chegou ao Mato Grosso.
Em 1955, já separado de Lenço Verde, foi tentar a sorte na cidade de São Paulo, o grande centro da música sertaneja que na época entrava em novos rumos, modernizando ritmos e instrumentos. Utilizava então o nome artístico de Zé Mineiro e conheceu o cantor Pardinho, com quem formou sua dupla de maior sucesso e com quem passou a cantar na Rádio Cultura, quando conheceu então o compositor Teddy Vieira, que sugeriu a mudança para o nome que o consagraria: Tião Carreiro. Entre idas e vindas, juntou-se e separou-se de Pardinho por quatro vezes e, nos intervalos, formou duplas com Carreirinho, Paraíso e Praiano, sempre conseguindo sucesso. È certo que seus companheiros de duplas, em especial Pardinho, muito contribuíram para o seu sucesso. Mas Tião Carreiro sempre foi o artista por excelência, pois sempre colocou a sua arte acima de qualquer outra questão. Sua atuação artística decorreu entre o início da década de 1950 e 15/10/1993, quando faleceu em São Paulo. Nesses mais de 40 anos de vida artística, o ato de tocar a viola sempre foi seu maior prazer. Foi um período no qual a música popular no Brasil passou por um processo de profissionalização que enriqueceu muitas pessoas, produtores, gravadoras e alguns artistas, e Tião não foi um deles, pois aceitava tocar em qualquer lugar, em festas de amigos, em sítios, fazendas, eventos particulares, bares, onde houvesse gente interessada em ouvir e louvar suas modas e sua sonoridade sem igual.
Além de fantástico instrumentista, Tião Carreiro foi também o inventor de um novo gênero musical, o pagode sertanejo que, segundo o também violeiro Téo Azevedo, nascido em Alto Belo, também distrito de Montes Claros, surgiu quando "O Tião chegou com aquele batidão de viola, misturando o ritmo do coco com o do calango de roda, um tipo de calango que tem lá na nossa região. Aí fundiu os dois estilos. Botou o violão fazendo a batida do coco, e a viola, a do calango de roda. Isso é que virou o pagode sertanejo, um dos ritmos mais tradicionais da cultura sertaneja-raiz".
Com o pagode sertanejo, Tião tornou-se definitivamente uma lenda cantando pagodes como “Pagode em Brasília”, de Teddy Vieira e Lourival dos Santos; “Chora viola” e “Em tempo de avanço”, dele e Lourival dos Santos; “Nove e nove”, dele Lourival dos Santos e Teddy Vieira, e outros. Cantou também com sua voz grave inúmeras modas de viola como “Terra roxa” e “Rei do gado”, ambas de Teddy Vieira, sem contar aquele que foi certamente seu maior sucesso, e um dos grandes clássicos da música sertaneja, em particular, e da brasileira, em geral, o cururu “Rio de lágrimas”, de sua autoria, Lourival dos Santos e Piraci, também conhecido como “Rio de Piracicaba”.
Passados dezessete anos de sua morte, todos os seus LPs com Pardinho continuam em catálogo e já venderam mais de um milhão de cópias, isso, registre-se bem, apenas depois de sua morte. Assim como Luiz Gonzaga é tido por todos os seguidores do forró não apenas como o “Rei do baião”, mas uma referência da música nordestina, Tião Carreiro possui para a música sertaneja o mesmo referencial fundador e norteador.
Constantemente suas obras são regravadas e os violeiros jovens em começo de carreira o citam como sendo exemplo e ícone da viola. Não por acaso foi criado em 2003, o "Prêmio Nacional Tião Carreiro de Excelência da Viola Caipira”.
Estranho esse país a que damos o nome de Brasil, criado a ferro e fogo a partir da invasão portuguesa. Em seu solo sucumbiram milhões de índios, vítimas de combates com os invasores ou de doenças por eles trazidas. Em suas terras está escrito com sangue o esforço e a labuta dos escravos negros, a plantarem e extraírem riquezas das terras, mas as elites dominantes, depois da independência política, sempre fizeram questão de espelhar-se no exterior, em busca de modelos civilizatórios e, assim, o caipira logo virou um sinônimo daquilo que deveria ser superado e ultrapassado. Dessa forma, nossa música popular, que ao longo do século XX, foi sendo mais e mais reverenciada no exterior como imaginativa e de alta qualidade, encontrou e ainda encontra aqui dentro resistências injustificáveis. É por isso que, para parte dos estudiosos, a música caipira e sertaneja é algo tão distante e longínquo. Tião Carreiro ainda não recebe, fora das lides sertanejas, onde como já dissemos é um ícone e uma lenda, as devidas reverências, pois se assim fosse, seu nome deveria ser sempre e constantemente relembrado, como o de Luiz Gonzaga é para o forró, Pixinguinha para o choro, Tom Jobim para a bossa nova ou Donga para o samba.
Mas a arte verdadeira tem vida própria e, a lenda de Tião Carreiro vai se alastrando e, em cada canto onde se dedilhe as cordas de uma viola, seu nome é louvado e aclamado como o maior de todos os violeiros desse país, aquele que, como a cigarra da fábula, viveu para cantar e encantar.
Que a memória de sua arte nunca se apague e que chegue o dia em que, nas escolas de todo o país, seu nome seja lembrado e suas músicas tocadas para as crianças. E seja lembrado como um dos grandes brasileiros que, se não enveredou por lutas políticas ou de libertação, brilhou e fez alegrar com sua arte a gente simples do Brasil, que teve amenizado seu duro labor, por esse “Pelé da Viola”, Tião Carreiro, o maior dos violeiros.