Chico Buarque: 66 anos de poesia (ou "O Chico é eterno!")
A Arte é um tipo de conhecimento que transita no terreno arenoso das paixões, da sensibilidade, da intuição, do aspecto mais fluídico do Ser. A Filosofia e a Ciência, diferentemente, perquirem os aspectos estáveis da realidade, utilizando um discurso lógico e rigoroso, quase dogmático, movidas pela crença na posse de um conhecimento objetivo (universal e necessário). A Arte tem a seu favor a liberdade de expressão (com contradições e tudo), por isso está mais próximo da vida, tornando o artista um arauto capaz de dizer: ali está o real, sem qualquer necessidade de demonstração.
O poeta e escritor Francisco Buarque de Holanda é, por excelência, a personificação do artista no sentido estrito do termo. É capaz de sintetizar numa frase aquilo que filósofos e cientistas não conseguem em tratados inteiros. Chico é irreverente, ousado, rigorosamente desordeiro. Sabe que a ordem é produto do intelecto humano e a vida – o seu verdadeiro objeto – não tem regras preconcebidas, e que, para capturá-la, é preciso lançar a rede ao desconhecido sem saber o que nela virá.
Chico quando olha para a sociedade sempre a inverte e subverte. Fala do guri e do pivete de forma não institucionalizada. O menor infrator não é somente um delinqüente, mas alguém que vive a vida em suas limitações, fraquezas e ilusões. A meretriz, filha do desprezo, ironicamente precisa conter o asco de dormir com um nobre forasteiro para redimir uma cidade inteira. O que é o justo e o correto? O poeta não diz, apenas nos atormenta com suas insinuações.
Quando fala do sentimento feminino, não o faz buscando definições universais com descrições exatas e idealizadas, mas retrata a mulher individual, imperfeita, que sofre com a submissão; que se desespera e chora baixinho atrás da porta ao ser abandonada. Que espera o marido no portão todo dia, fazendo tudo igual. Fala também de uma mulher forte, que leva o sorriso da gente e é capaz de encontrar outro “mais e melhor”, como quem diz: “não se mirem no exemplo das mulheres de Atenas”.
Chico sabe que não é preciso ser filósofo para ver o que está ao redor dos acontecimentos. Quando se vai contra a correnteza, a roda viva (o sistema) nos leva “para lá”. Que o malandro - na dureza - não é julgado, condenado e culpado pela cachaça consumida indevidamente, mas pela situação, pelo contexto, que como um turbilhão faz o que quer com o nosso destino.
Mas o poeta, ao mesmo tempo, ri e brinca com o próprio destino, culpando-o ironicamente das nossas imperfeições e desditas; das nossas condutas transgressoras, sugerindo que não há um anjo malvado ou um chato de um querubim capaz de nos fazer bons ou ruins; nem um Deus gozador que se compraz em nos colocar em situações embaraçosas, porque a vida é responsabilidade nossa, enquanto seres livres e conscientes.
Chico, mais uma vez, desbanaliza o cotidiano nos dizendo que não é na Lapa que está o verdadeiro malandro, mas em algum lugar do serviço público, com gravata, mulher, tralha e tudo. E que apesar dele, amanhã há de ser outro dia. E se esse dia chegar, não será obra do acaso, mas daqueles que nada tem a perder para ousarem formar um verdadeiro cordão contra os poderosos. Porque a vida tem sempre saída. A vida tem sempre razão.
A palavra é a matéria prima do artista. Ele a toma em suas múltiplas possibilidades para nos dizer simplesmente que elas são apenas palavras, nada mais. Capazes de ser utilizadas nas mais estrambóticas situações, “só por ouvir dizer”. Mas sabe, ao revés, que elas têm o condão de criar a realidade, como o artista cria as metáforas. Cala-se, dizendo. Diz em silêncio, “porque a dor não passa”. Porque a condição humana é simples e cruel.
Quando ele fala de amor, parece querer nos confundir. Desdenha do grande amor mudando de calçada; mas, de repente, sente o peito arder de desejo ao ver Cecília passar. Chico não fala de um amor atemporal – pretensão dos filósofos – mas de um sentimento mundano que nos faz contar segredos lindos e indecentes; ou que nos deixa paralisados ao ver a amada saindo do mar. O poeta denuncia a instabilidade do espírito humano, "que ri e chora, que chora e ri".
O Chico é isso e muito mais, porque com a sua arte nos faz duvidar das crenças do dia a dia, nos provoca, nos deixa inseguro e depois nos conforta com uma linda canção de amor. Porque a verdade não é o seu tema. O seu objeto é, simplesmente, a vida.
Parabéns ao Francisco, porque o Chico é eterno!