DE JOAQUIM GUILHERME A... JOAQUIM MARIA !

DE JOAQUIM GUILHERME A... JOAQUIM MARIA !

"Bem se diz: mais anda quem tem

bom vento, do que quem muito

rema". - Tia TOMÁSIA (pag. 17 da

obra de Joaquim G. Gomes Coelho,

de 1866, Porto, PORTUGAL.)

Por esses dias veio do "lixão" o meu irmão com dúzia e meia desses livretos que trazem o carimbo "Exemplar do Professor"... são as férias de julho, alguma Escola (?!) "limpou as prateleiras". Irmanados "na mesma desgraça" estavam o livrão seminovo de Chico Buarque "Leite Derramado" -- uns 100 reais em qualquer livraria -- e também o famoso "AS PUPILAS DO SENHOR REITOR", que eu sempre quis ler, após assistir a novela (pelo SBT, eu acho) no início dos anos 90, tendo como padre o genial ator que fez o cientista em "O Clone", como "pai" dos gêmeos vividos pelo "insosso" Murilo Benício. (*1)

Pois bem, o autor lusitano viveu apenas 32 anos e, como escritor, uns 10 anos, se tanto. Formado médico, adotou um pseudônimo, escritores eram mal vistos, sempre foram. Alterquei-me com o mano, o autor da famosa "novela" era outro, aquele "Joaquim Guilherme" me era desconhecido. Tomei-lhe das mãos a brochura, folhas já meio soltas, a costura mecânica foi muito rente à lateral e, mesmo coladas, não resistiram ao manuseio. Lá estava: JÚLIO DINIS !

Ouso dizer que se o futuro "Bruxo do Cosme Velho" teve um "pai literário", este foi Júlio Dinis ! Antes que me estapeiem pelas esquinas, corrijo: talvez um PARÂMETRO ou, melhor ainda, um MODELO, um caminho a seguir. Não sei em que datas nosso Joaquim Maria lançou seus primeiros romances -- me refiro aos que li -- "Helena" (1876) e "A Mão e a Luva" (1874) ou "Esaú e Jacó" (1904). A constatação que fica entre ambos é a de que o ROMANTISMO e o toque de ironia sutil entre os dois autores é muito semelhante... sendo (ou não) coincidência ! Não vou ser a palmatória do Mundo: exponho aqui trechos que os aproximam -- não tanto pelos temas abordados -- e que cada leitor tire suas conclusões. (*2)

"As Pupilas do Senhor Reitor" foi lançado como folhetim em 1866 pelo "Jornal do Porto" e se transformou em livro apenas em 1869... não, leitores, não se trata dos belos olhos do padre que sequer Reitor era, mas de 2 irmãs que ele ensinava. Portanto, alunas, PUPILAS ! Machado lançaria seu primeiro romance, "Ressurreição", somente em 1872... não estou insinuando nada, mas todos seus críticos reconhecem drástica mudança no estilo do mestre, um "desvão" literário separa qual Mar Vermelho a fase inicial da subsequente.

Abaixo, vários trechos da obra de Júlio Dinis nos mostram o estilo do Joaquim galego, além do crítico Ivan Cavalcanti Proença que, em 5 ou 6 páginas de sua "Introdução" nos exibe as SEMELHANÇAS entre os 2 escritores. Como se lê, não estou sozinho nas... "conclusões" !

"O explícito e os traços nítidos na apresentação dos personagens, em Júlio Dinis, nos vêm resultantes do fator observação (intensa) que predomina no livro, e que se reflete em sua gente. Inclusive no CONTORNO MORAL, chegando mesmo à OBSERVAÇÃO PSICOLÓGICA. Características, afinal, de seu romance. E [que] não faltaram a este "As Pupilas do Senhor Reitor" que, embora o primeiro publicado, foi o segundo a ser escrito pelo autor".

(pag. 17, grifos meus)

E continua na pag. 11, chamando a atenção para a permanente CONVERSA com o leitor, relacionando Ivan dez ou doze "recados" apenas nesta obra. O crítico I C. Proença "recupera" dois "recados", como exemplo:

"O leitor deve estar lembrado..." (pag. 142), e

"O leitor, que toma a peito... (pag. 149), além de descrever outras 9 ocorrências. E nos traz o final do livro:

"O leitor concordará por certo que devemos fechar por aqui a narração." (pag. 11 citando a pag. 330)

Chamo a atenção para mais esta passagem, na pag. 94, que nos demonstra a ironia que marcou toda a obra do Joaquim brasileiro: "O leitor concordará comigo, decerto, em que será melhor deixar passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos discretamente, como hóspedes inoportunos sempre, nestas cenas de tanta alegria doméstica". (Esta outra é da pag. 36): "A mulher de Ló por certo não se conservou tão imóvel, depois do fatal momento em que cedeu à sua irresistível curiosidade". Voltemos ao crítico, na pag. 11:

"Os ditados e as citações bíblicas se fazem presente, lado a lado com os milagres e comemorações populares. (...) E já que falamos em recurso, lembremos as interferências (ao gosto machadiano) ao longo da narrativa, às vezes discursivas, doutrinárias narrador-leitor ou narrador sozinho: (...) Perdoem-lhe esta fraqueza..."

AO GOSTO MACHADIANO, assinala o crítico... é preciso dizer mais ?! E continua, na mesma página 11:

"Note-se um outro abrir de capítulo, em que o autor prepara o flashback. EM MACHADO tais comentários marginais, intercalados, seriam -- afinal -- a própria história. E o enredo surgiria dos retardamentos, frutos desses comentários". (grifo meu)

Não faltou em Dinis um "Conselheiro Aires" -- tão comum às páginas Machadianas -- na pessoa do esculápio "João Semana", "músculos de 80 anos" (pag. 95) a cavalgar por todo o interior, cirurgião de confiança do povo, ao contrário do jovem Daniel, o protagonista, recém-chegado de Lisboa. É quem dá o tom de humor ao romance, sempre criticando PADRES. Santa coincidência"!, diria Robin, se lá estivesse.

Atenho-me a dois ou três trechos longos mas significativos da semelhança que "uniu" o início de ambas as carreiras. Vamos a eles:

"José das Dornas esteve por algum tempo impressionado com o que lhe acabara de dizer o reitor. Há notícias de uma digestão demorada e laboriosa, como a de certos alimentos.

Enquanto ela dura, o espírito não se acha à vontade e como que se agita sob a influência de uma incômoda sensação; mas, pouco a pouco, opera-se um íntimo trabalho assimilador, acalma-se a espécie de febre digestiva, que acompanhara aquela elaboração mental, e tudo entra na ordem. A notícia, que nos impressionara, perde enfim quanto se nos havia figurado ter de estranho; sentimo-nos mais livres e em mais felizes disposições para encararmos os fatos." (pag. 41)

*** *** ***

CAPÍTULO 7 (início) - "Mas deixemos as lágrimas e as íntimas e não ostentosas tristezas de Margarida e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem que, contra seus direitos de primogenitura, temos agora deixada oculta na penumbra dos bastidores. Falamos de Pedro" (etc, continua). No trecho final temos:

"...digamos quem é esta Clara que assim de repente pusemos diante do leitor sem prévia apresentação". (pag. 45)

*** *** ***

"Os caracteres concentrados, como o de Margarida, alimentam-se ordinariamente de uma ideia fixa... -- quantas vezes de uma ilusão? -- que forma o segredo inviolável de sua existência inteira. Abre-lhes ela as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos embates do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua delicada sensibilidade. Quando os encontramos sós, estes melancólicos devaneadores, acreditemos que lhes povoam a solidão formas invisíveis, criadas à poderosa evocação da sua fantasia; o silêncio em que o virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É uma singular loucura procurar distraí-los, chamando-os à considerações das coisas reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria daquelas almas, é aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.

Deixem-nos assim. Não queiram erguer-lhes a fronte que involuntariamente se inclina; não tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisionomia, sobre a qual se derrama uma severa gravidade; não se esforcem por lhes tirar dos lábios comprimidos uma palavra qualquer. O fogo da vida, que parece tê-los abandonado, deixou somente a superfície para mais intenso se lhes concentrar no coração". (pags 71-72)

Para não me alongar demais encerro o artigo trazendo à cena o personagem cômico da trama, o cirurgião JOÃO SEMANA... "Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se repositório vivo. Os frades eram ordinariamente seus heróis preferidos; contra eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto para correr caminho". (pag. 95) Eis João Semana contando anedota sobre velho frade, contrito diante da pintura da Santa Ceia.

-- "Mas porque esta pintura, mais do que as outras, vos traz tão santas idéias" ?!, indaga o jovem frei.

-- "(...) olhai que não menor tormento é este de ter doze pessoas à mesa e tão pouco de comer em cima dela" ! (pag. 121)

Em outro momento, ainda falando de frades, reprisou o conselho de um, criticado por fazer sermões suaves, moderados:

-- "...é preciso tento; nem o diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí muitos amigos" ! (pag 98)

*** *** ***

"Em Portugal, terra de lhaneza um pouco rude, mas não afetada, o dono da casa costumava dantes experimentar a imaginação dos seus convivas com enigmas culinários. Não havia cá a usança de dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda. (pag. 126) (...)

Hoje, época de programas, inventaram-se os programas de jantares à imitação dos dos concertos, (sic) dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como se come." (pag. 127)

*** *** ***

Fiquemos com breve passagem de outro João, o "da Esquina" que lhe deu o nome, interessado em casar a filha com o doutor Daniel, por conta apenas de uns versinhos deste. Sai furioso porta a fora, irritado ante a recusa do pai do desmiolado:

-- "Bem, retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de que fiz o meu dever. Mas, o Mundo saberá...!

O resto da oração pronunciou-o fora da porta. Esta circunstância impossibilita-me DE INFORMAR AO LEITOR o que o Mundo tem de vir a saber a respeito do tendeiro." (pag. 164 - grifo meu)

Creio ser mais do que suficiente para demonstrar as similitudes -- até dos rostos, a mesma barba cerrada, igual olhar severo -- dos homônimos, "xarás" segundo o povo. Morreram de doença severa, um de tuberculose (o "mal do século", na época) e o "pai da ABL" de inflamação na garganta. Encerro esta longa argumentação exibindo trecho do capítulo 20 dedicado inteiramente a Clara, musa dos 2 irmãos... qualquer semelhança com romances de Machado é sobrenatural coincidência. Dinis compara nele a mulher que se faz enfermeira às mães ! Este capítulo caberia inteiro em "Helena" ou "Esaú e Jacó" sem que estranhassem a autoria. Finalizo, pois, com breve trecho das 5 páginas de vivo colorido:

"Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e naturalmente se estabelece entre duas pessoas um trato familiar. A etiqueta e as reservas de costume sentem-se mal colocadas e intempestivas ali. Se é sincera a compaixão por que o padece, (sic) perde-se a frieza necessária à estrita observância das insignificantes convenções sociais. Não são possíveis as afetações nem os constrangimentos, quando a mesma generosa simpatia domina o pulsar de dois corações. Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira, cresceu, rapidamente, certa familiaridade. (...)" (pag. 138, cap. 20)

"Clara desviou a vista diante desse olhar de Daniel.

-- Ouça -- disse ela , mais séria já do que até ali.

-- A gente tem sempre no coração duas afeições diferentes, penso eu: uma, que se dá toda a uma pessoas, e julgo que uma só vez na vida; outra que se dá às porções, mais a uns menos a outros, mas que nunca se acaba". (etc, pag 141)

Que cada um tire as suas CONCLUSÕES... eu já tenho as minhas" !

"NATO" AZEVEDO (em 12-13 de julho 2024)

OBS: (*1) - novela transmitida entre meados de 1994 e 95 pelo SBT, tendo o genial JUCA DE OLIVEIRA como o Reitor.

(*2) - Por estranha coincidência, veio "no pacote" achado no "lixão" o "conto longo" "A VIUVINHA", de José de Alencar, "um romance tipicamente urbano" (comentam no final da obra), retratando o ano de 1844 ou 1847. O futuro grande escritor começa publicando seus romances como FOLHETINS, pelos jornais do Rio, que logo depois se transformam em livros.

Embora não faça perfis psicológicos tão completos como Júlio Dinis, José de Alencar "se antecipa", inicia 10 ANOS antes de Dinis e uns 15 antes do futuro "Bruxo". Eis a data de seus primeiros escritos, onde o ROMANTISMO e as figuras femininas imperam:

"Cinco Minutos" (1856); "A Viuvinha" (1857); "Lucíola" e "As Minas de Prata" (1862); "Diva" (1864); "Iracema" (1865); "A Pata da Gazela" e "O Gaúcho" (1870). Os que mais gostei (entre os lidos), "Guerra dos Mascates" (1871) e "Senhora" (1875) foram publicados bem mais tarde. Portanto, o "precursor" do Romantismo seria ALENCAR, pelo menos no Brasil.