PERTO DO CORAÇÃO CLARICE
Perto do coração Clarice
Isso não é um ensaio. Uma vida não se ensaia. Quem sabe, talvez, um relato de uma epifania. Olhos oblíquos, visão periférica, como toda mulher tem. Uma língua “presa”, que se libertava quando tocava na máquina de escrever. Maçãs no rosto que, mesmo no escuro, eram de se notar. Clarice Lispector...
- “Procuro viver rapidamente os fatos, porque a meditação profunda me espera!”, disse Clarice. E vivia e viveu. Provavelmente, para não dar espaço para a culpa que carregou a vida inteira – não ter salvado a mãe. Culpava-se, porque era a esperança de que sua mãe se livrasse da sífilis, doença adquirida de um soldado soviético que a estuprou. Clarice nasceu de uma crença: limpar o ventre de sua matriz. “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque nele vivemos”.
Clarice escreveu até o último “Sopro de vida”, até a “Hora da estela” a pôr na cadência inconstante. Como batimentos que se despedem do peito. Era escritora vinte e quatro horas por dia. As ideias lhe saltavam e levavam-na a colocar os sentimentos nos papéis, guardanapos, maços de cigarro. Através dos fragmentos, tornou-se inteira. Inteira no amor aos filhos, animais, entre eles seu inseparável cachorro, o Ulisses, o qual uma vez a mordeu nos lábios, e ela, sem remorsos, passou a amá-lo ainda mais, até dedicou o livro infantil “Quase de verdade”.
Clarice era tão mística que foi convidada para representar o Brasil no Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. E por que não? Afinal, era ela tanto intuitiva quanto supersticiosa, aspecto que fica nítido na figura de Macabéa (protagonista de “A hora da estrela”). O poeta Carlos Drummond de Andrade sabia disso: “Clarice veio de um mistério, partiu para outro/ Ficamos sem saber a essência do mistério/ Ou o mistério não era essencial,/ Era Clarice viajando nele/ Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,/ onde a palavra parece encontrar/ sua razão de ser, e retratar o homem”.
Para sua literatura ser bem apreciada é necessário que esqueçamos o sentido, abdiquemos das nossas vestes, como ela mesma uma vez disse: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Viva a arte Clariceana, que, ao mesmo tempo que nos preenche, esvazia-nos o peito. Nos seus romances, vai organizando a narrativa como quem põe ordem à vida.
Depois que a Lis brotou no meu peito, fiquei sem saber se eu estou perto do coração Clarice, ou se Clarice está perto do coração Leo...