Interpretação do texto bíblico
Introdução do texto
Somente a pessoa que foi lavada no sangue do Cordeiro, pendurado no madeiro, tem a Bíblia Sagrada como regra de fé e prática. Não é suficiente para alguém, apenas, aceitar a autoridade do texto sagrado, mas, torna-se necessário que seu conteúdo seja guardado, posto em prática e saber interpretá-lo em seu viver diário.
Quanto à interpretação adequada do texto sagrado, conforme John P. Newport, é preciso saber encontrar o devido significado que o autor quis dar a seus escritos. De maneira que o intérprete deve expressar o significado real que o escritor transmitiu por meio de seus registros literários.
O cristão tem a obrigação de transmitir a interpretação adequada do texto bíblico a seus contemporâneos, haja vista que os escritos datam de uns dois mil anos.
Às vezes, o intérprete precisa recorrer à alegoria para decifrar o verdadeiro significado que porventura esteja oculto. Esse método foi muito bem usado por cristãos da Reforma Protestante do Século XVI.
De acordo com o reformador Mickelson, a palavra “Jerusalém” podia ter vários significados para o intérprete lançar mão para explicá-la. Nesse período histórico, podia ser interpretada de forma literal como a capital do Estado de Israel. E, numa interpretação alegórica, podia significar a Igreja Cristã, como ainda, segundo uma perspectiva moral, se referir à alma humana, além, também, ainda podia ser interpretada como a futura cidade celestial, biblicamente conhecida como Jerusalém Celestial.
Assim, o intérprete precisa estar revestido de uma aura espiritual para desvendar tudo aquilo que o texto bíblico não expressa abertamente, ou seja, pelo fato de a Bíblia Sagrada ser “uma caixa de mágica”; e assim sendo, é preciso mergulhar em águas profundas de valores divinos, para coletar verdades que emanam do Trono da Graça.
Nesse oceano de pérolas invisíveis ao olho nu do não-cristão, Agostinho de Hipona, que viveu no Século V, costumava mergulhar nessas águas auríferas para interpretar que a Arca da Aliança, de Êxodo 40.3, é uma figura da Igreja Cristã, o móvel sagrado onde Iavé continua se revelando, no presente, a seu povo.
Como nem tudo são flores a exalar aquele odor suave e aromático, protestantes do Século XVII se extraviaram do foco, ao abandonarem valores históricos e literários que o texto bíblico contém, ao abraçarem o hiperliteralismo. Enfim, esses intérpretes não se ativeram ao princípio gramatical, histórico, literário, teológico e prático que o texto sagrado encerra.
Para se opor à Reforma Protestante do Século XVI, surgiu o Concílio Católico Romano de Trento, que ocorreu entre os anos de 1545 e 1563. Nessa guerra religiosa sem quartel, a Vulgata Latina, uma versão da Bíblia Sagrada, foi declarada a versão oficial, e sua interpretação devia estar de acordo com os ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Romana, e quem não se ativesse a essa determinação, era condenado a morrer queimado na fogueira.
Apesar dessa mordaça do Vaticano, mesmo assim, o reformador suíço João Calvino (1509-1564) se debruçou a uma interpretação de passagens bíblicas difíceis para eruditos cristãos de sua época.
O Princípio Gramatical, Histórico e Teológico é um legado da Reforma Protestante. Esses princípios enfatizam que o texto bíblico “devia ter prioridade sobre a tradição e... ser o juiz da tradição, em vez de ser sua serva.”
Para o reformador alemão Martinho Lutero (1483-1546), o intérprete do texto sagrado deve obedecer a uma interpretação clara, estar atento a seu contexto, se ater ao princípio gramatical, de ter conhecimento de História, além do idioma hebraico e grego.
No Século XVIII, os cristãos Herder e Semler passaram a se ater a uma interpretação literária do texto bíblico.
O intérprete deve recorrer à Hermenêutica, por esta ser a arte da interpretação ou exegese do texto sagrado, como precisa se ater ao Princípio Gramatical, Histórico, Teológico e Prático
Princípio Gramatical ou Linguístico
Apesar de seu conteúdo essencial e de sua origem divina, o texto sagrado foi escrito por seres humanos divinamente inspirados, que usaram idiomas e condições humanas.
Calvino ajudou a restaurar o Princípio Gramatical, e cerca de dois séculos depois o erudito alemão, Ernesti, fez uso desse princípio em suas interpretações do texto bíblico.
A Etimologia é uma ferramenta do Princípio Gramatical, e muitos intérpretes dela fazem uso em seus estudos. Por exemplo, segundo a Versão King James, na passagem bíblica contida em Gálatas 3.24: “De maneira que a Lei nos serviu de aio...”, essa versão diz que “a Lei foi o nosso mestre-escola para nos levar a Cristo”. E se colocarmos essa Versão à luz da Etimologia, a tradução bíblica fica a desejar. Isso porque, mestre-escola era o servo que levava e trazia a criança da escola para sua casa. Sua função não era a de educar a criança de seu amo, mas a de discipliná-la. Já a tradução da Imprensa Bíblica Brasileira diz: “A lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo.” Ou seja, a Lei Mosaica não é o nosso Mestre-Escola, mas, o aio que nos levou ao Homem de Nazaré.
Em Lucas 15.13: “E, poucos dias depois, o filho mais moço, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua...”; o estudioso Stibbs fez uso de expressões idiomáticas para interpretar que o moço rebelde fez o cálculo dos bens de seu velho pai para extrair o valor correspondente à herança que lhe tocava, e assim a transformou em dinheiro.
Considerando-se que em uma sentença o Princípio Gramatical ou Linguístico “é a sintaxe ou relação ou ordem das palavras” de um texto, em João 1.1 está citado que “o Verbo era Deus”. Assim, a sintaxe jamais permite que se traduza “Deus para o Verbo”. De maneira que o significado do texto está “esclarecido pelo artigo[o] que antecede” o Verbo.
O Método do Pensamento é um elemento parte do Princípio Gramatical. E fazendo-se uso desse elemento, Stibbs lançou mão do texto bíblico de Malaquias 1.2,3: “todavia amei a Jacó. E aborreci a Esaú”, para dar a interpretação correta do texto: “Amei a Jacó mais do que a Esaú.”
Lançando mão de que todo texto sagrado deve se ater “à luz de seu próprio estilo literário”, o Senhor Jesus de Nazaré, em Mateus 5.29: “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o”, por se tratar de uma figura de linguagem, e não de uma linguagem literal, o Nazareno não está afirmando que o indivíduo deve arrancar o seu olho ou parte alguma de seu corpo físico, mas que precisa mudar de comportamento leviano que cultiva.
E um caso interessante, semelhante a esse, aconteceu literalmente em Florianópolis, creio, no ano de 1980, que deixou perplexa a comunidade florianopolitana. Com o auxílio Celina Pires da Silva, de 40 anos, José Claudeni Machado, de 25 anos, popularmente conhecido como “Zezé”, residente à Rua Vital, bairro Costeira do Pirajubaé, extirpou seus testículos em um ritual religioso ocultista.
Sua companheira Celina costumava se vestir de roupas brancas como precursora da seita espiritualista “Verdade e luz de Cristo”, apesar de haver negado ter participação no ato louco de seu companheiro, todavia, salientou que “na Bíblia está escrito que qualquer um pode fazer isso”, ou seja, pode extirpar os testículos.
Para executar o ato que, de uma interpretação literal devia haver extraído da passagem bíblica de Mateus 5.29, Zezé comprou uma faca e material de sutura cirúrgica para automedicar-se. Mas, algum tempo após abrir a bolsa escrotal e retirar os testículos, o paciente louco, ao passar muito mal, foi levado às pressas para o Pronto Socorro do Hospital Universitário, deixando chocado os plantonistas, foi atendido pelo médico Pedro de Almeida.
O caso foi registrado na Segunda Delegacia de Polícia do bairro Saco dos Limões para as investigações se Zezé praticou o ato voluntariamente ou não.
Segundo um colega de trabalho, de nome V. Gonçalves, cujo pai residia no bairro Costeira do Pirajubaé, pouco tempo depois, o Zezé ficou tão gordo, que, para evitar ser comparado a porco castrado para engordar, mudou-se de bairro.
Em Lucas 13.32, o rei judeu Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, foi chamado de “Raposa” por Jesus de Nazaré. Aqui, não cabe, ao interprete, uma linguagem literal. A linguagem figurada foi usada para expressar que o monarca nascido em Israel era uma pessoa esperta, astuta, inteligente, pensamento rápido e agilidade.
No livro de Gálatas 2.9, o apóstolo Paulo de Tarso se referiu a Tiago, Pedro e João como “colunas” da igreja cristã que funcionava em Jerusalém. Esses líderes eclesiásticos, na verdade, não eram colunas de concreto armado ou elemento construtivo outro, mas pessoas atuantes na propagação do Evangelho em meio à perseguição que a Maçonaria Mãe, a sociedade secreta A Força Misteriosa, criada no ano 43 pelo rei judeu, Herodes Agripa I, neto de Herodes, o Grande, havia empreendido, nesses dias de chumbo grosso, para matar a todo judeu seguidor de Jesus de Nazaré, o Messias prometido pela afirmação mosaica de Deuteronômio 18.15-18.
Quando Simão Pedro descreveu o Diabo como um leão que ruge, em I Pedro 5.8, o discípulo destemido fez uso de uma linguagem metafórica para externar a natureza diabólica do Anjo Decaído da graça divina.
E em sua declaração “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, em Gênesis 1.26, o Senhor Deus, o Eterno, não está descrevendo as diferentes partes do ser humano, mas, dando ênfase do texto, pois, imagem e semelhança têm o mesmo significado.
Princípio Histórico
Esse princípio da exegese bíblica que vem sendo usado desde meados do Século XIX na interpretação do texto bíblico, leva em consideração elementos geográficos, históricos e culturais da sociedade em que os registros foram compilados. Sendo assim, o interprete precisa se colocar no lugar do personagem da época. Então, é de vital importância que levemos em consideração antecedentes históricos e elementos culturais de então.
Em Lucas 9.62 está registrado que “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás, é apto para o reino de Deus.” Esse instrumento agrícola do primeiro século da Era Cristã costumava ser manejado com a utilização de uma das mãos do agricultor que preparava o solo para a semeadura. E caso o indivíduo que estivesse manejando o arado olhasse para trás, ou se distraísse por outro motivo, o terreno não ficava devidamente preparado para o lançamento de sementes.
Esse registro histórico se presta como ensino para todo aquele personagem que toma a vida cristã como o arado que precisa ser usado para preparar o solo do reino celestial.
No livro de I Coríntios 9.27 está escrito: “Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão”; nele, o apóstolo Paulo de Tarso, escrevendo à comunidade cristã da cidade grega de Corinto, onde a prostituição era tida como arte sagrada, a recomendou manter comportamento puro em meio a um bolsão de devassidão carnal, e demonstrou que ele, Paulo, costumava esmurrar a seu corpo físico a ponto de subjugá-lo, isso, para controlar seus instintos pecaminosos.
Ao externar esse seu registro de renúncia a um comportamento contrário ao cultivado por membros dessa comunidade pecaminosa, o apóstolo Paulo se ateve a um costume grego em que lutadores faziam uso de luvas de boxe, confeccionadas em madeira ou em metal, pata atingir o adversário debaixo do olho, e assim levá-lo a nocaute. Era assim que o apóstolo esmurrava seu corpo físico, como se seu corpo fosse seu oponente a ser nocauteado.
Ainda, em I Coríntios 11.5, o apóstolo registrou que “toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça”.
Na comunidade coríntia, a então capital da Acaia, o mesmo que Grécia, segundo registro do escritor, historiador, geógrafo e filósofo Estrabão (63 a.C. a 23 d.C.), o suntuoso Templo de Afrodite, a deusa do amor, era administrado por cerca de mil donzelas, as mais dengosas, manhosas e cheirosas escolhidas pela beleza, riqueza e posição social, as quais costumavam se apresentar totalmente nuas para manterem relações amorosas com qualquer homem que se apresentasse no ambiente religioso de adoração aos deuses do mundo greco-romano.
Informado a respeito da elevada quantia de dinheiro exigida pelas sacerdotisas sagradas para o cliente que se dirigia ao templo da deusa Afrodite, certo imperador romano declarou: “Nem todos podem ir a Corinto”.
Corinto era um lugar à parte no mundo das cidades gregas, onde o prazer carnal, a idolatria e o luxo alimentavam a prostituição sagrada no templo da deusa do amor. O elevado cachê cobrado pelas ninfas desnudas levou à ruína muitos empresários de sucesso, donos de navios de cabotagem que aportavam com suas mercadorias.
As mulheres de caráter casto dessa antiga cidade grega costumavam usar véus sobre a cabeça quando se apresentavam em ambiente público. E o apóstolo Paulo de Tarso, quando esteve nessa comunidade, observou que muitas mulheres cristãs da localidade se apresentavam em público sem o uso do véu. Então, as orientou a que passassem a usar véu em público para não serem tomadas com prostitutas cultuais.
Princípio Teológico
Apesar de a Bíblia Sagrada ser uma biblioteca de fé no Deus o Todo-Poderoso que age na História, sua interpretação deve se ater, também, a critérios teológicos. Seus registros bíblicos expressam fatos históricos que apontam para o Messias que haveria de vir para formar um povo para si mesmo. E no tempo devido se manifestou a seu povo, exerceu atividades terrenas, foi crucificado para pagar o resgate de seu povo, como ressuscitou da tumba úmida pelo seu próprio poder, e o fez para demonstrar, a todos, que a morte está sob seu controle. Enfim, o Messias é o cumprimento das promessas enunciadas pelos profetas do Antigo Testamento.
Assim como o Eterno agiu na História ao resgatar cerca de 3 milhões de israelitas que nos últimos 80 anos viviam como escravos no antigo Egito dos faraós, ao rasgar as águas e secar o leito lodacento do Mar Vermelho, assim também o fez ao rasgar a tumba úmida com a ressurreição Daquele que vive para todo o sempre.
Os reformadores entendiam que havia uma verdade central no texto bíblico, à qual chamaram de “pedra de toque” para chegarem à interpretação da mensagem sagrada. A justificação pela fé, extraída pelo apóstolo Paulo, era a tal pedra de toque encontrada por Martinho Lutero no livro de Romanos 5.1 e Gálatas 2.16.
No entanto, para Albert Schweitzer, o tema mais fascinante da Bíblia Sagrada é a escatologia, o mesmo que “últimas coisas”. Enquanto o conteúdo do Antigo Testamento descreve a “contínua atividade” do Eterno na História, a plenitude do tempo de seus propósitos se encontrava no futuro, ou seja, na pessoa do Messias que viria e que veio ao nascer numa manjedoura em Belém da Judeia, conforme registrado está no Novo Testamento (Lucas 2.16).
O intérprete do texto sagrado precisa se colocar além do significado verbal e dos registros históricos, para alcançar o conteúdo teológico da passagem bíblica.
A saudável interpretação, além da pedra de toque teológica central mencionada por reformadores do Século XVI, torna-se necessário também dar valor a textos enfáticos.
O Novo Testamento é a chave para a interpretação do Antigo Testamento. E apesar de não ser auto-interpretável a mensagem profética, ela não deve ser ignorada, como também, as passagens sistemáticas devem preceder às passagens incidentais, como é o caso da justificação pela fé em Cristo Jesus.
Ao tomar uma bacia com água e uma toalha para lavar os pés de seus discípulos, conforme está registrado no Evangelho de João 13.5: “Depois de deitar água numa bacia, e começar a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhes com a tolha”, o Mestre da Galileia assim procedeu para ensinar-lhes o princípio do amor e da humildade que deveriam cultivar no dia a dia.
E quando o apóstolo Paulo orientou seus seguidores a saudarem uns aos outros com ósculo santo, o fez para ensiná-los o princípio da fraternidade cristã, uma forma de tratamento comum de então entre os povos orientais, e que consta no livro de Romanos 16.16: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo”. Esse é um comportamento que, até nossos dias, vigora entre os povos muçulmanos.
Princípio Prático
Na exegese bíblica, o Princípio Prático aponta para o auge da interpretação do texto sagrado, que é a conduta do cristão em seu meio ambiente. Em Gênesis 1.1,2-4 está registrado que “No princípio criou Deus os céus e a terra”; a narrativa da Criação apresenta uma visão da obra esplendorosa de Iavé, entretanto, não cabe ao ser humano entrar em detalhes a respeito do Universo em sua plenitude, pois, tais elementos não são relevantes para a redenção da humanidade decaída da graça divina.
E em Isaías 6.1 consta que “No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e o seu séquito enchia o templo.” Para o intérprete, essa visão descreve a aparência corporal do ser divino sentado em um trono, devidamente vestido e acompanhado de seus súditos celestiais.
Finalmente, enquanto que, a ressurreição do Senhor Jesus Cristo dentre os mortos, constante em Atos 2.32, “Deus ressuscitou a este Jesus, do que todo nós somos testemunhas”, é a aplicação prática de que, assim como Ele ressuscitou, ascendeu ao céu e vivo está, nós também ressuscitaremos e com Ele reinaremos pelos séculos do séculos, como em Romanos 8.17 consta: “E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo: se é certo que, como ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados.”
Interpretação do texto bíblico
pr. Raimundo Nonato Freitas de Cerqueira
Florianópolis, Santa Catarina, 13 de março de 2024.