Não consigo ficar sempre assim tão feliz

 

Como acontece em toda a terceira quarta-feira de cada mês (1), nos reunimos ontem no Clube do Livro de Charqueadas para, nesta ocasião, debatermos Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Baita livro, dei nota 10 pra ele. Escrito em 1868, semi autobiográfico, é um clássico da literatura infanto-juvenil feminina.

 

Louisa May não apreciava esse tipo de literatura e, quando seu editor propôs a inovação de um livro escrito especificamente sobre e para mulheres - já que sabia que a maioria dos leitores eram do sexo feminino -, aceitou, sem levar muita fé no projeto (2). Na verdade, o próprio editor, igualmente em dúvida, em vez de dar um cachê à escritora pelos direitos autorais (3), preferiu oferecer 6,6% dos lucros, eis que se não desse em nada, pagaria o referido percentual sobre nada e não teria prejuízo. Só que não: o livro foi um sucesso estrondoso e tornou Alcott uma mulher rica como nunca fora em sua vida de parcos recursos e prementes necessidades.

 

As quatro humildes e inteligentes irmãs March - Meg, Jo, Beth e Amy -, em casa com a mãe e uma empregada, relacionando-se amigavelmente com o vizinho rico e seu neto, compõe a trama básica de Mulherzinhas, que se passa durante a Guerra Civil Americana, no período entre dois natais, quando as meninas vão de adolescentes à mulheres. Alguns acharam o livro monótono (4) - e ele é mesmo -, mas Alcott, baseando-se livremente em suas memórias familiares, escreveu uma obra prima, transformado a monotonia em preciosa riqueza literária, justificando seu sucesso e longevidade. Hipermegasuperultra recomendo a leitura.

 

Mulherzinhas pode ser considerada uma literatura proto feminista, principalmente pela personagem Jo questionar o papel da mulher na sua época, de casar e procriar, tão somente, ficando alheia às questões sociais, culturais e políticas. Essa foi uma escolha de vida da própria autora, que não se casou, sendo que muito de Jo veio da concepção de vida de Louisa. E as pequenas e grandes questões pessoais e familiares do livro dialogam com os leitores de hoje, 155 anos depois...

 

Durante o debate realizado na Biblioteca Municipal Vera Gauss, uma colega de Clube disse que faria um concurso público e que iria passar. Outra colega ficou efusivamente alegre, eu não. Motivo? Pensei: "Tudo ok, que bom, mas ela vai embora e sentirei a falta dela". Jo, na parte em que sua irmã mais velha dá indícios que vai se casar, fica terrivelmente emburrada com a possibilidade de perder a convivência com Meg e se volta contra o seu pretendente em inúmeras birras. Tudo bem, Jo é uma adolescente de 15 anos que ainda não possui maturidade para lidar com as separações e perdas da vida, mas quando é que, mesmo maduros e capazes de as elaborar, não sentimos a falta dos que gostamos quando eles partem?

 

Uma irmã ou irmão que casa, um colega que é transferido ou se aposenta, a separação dos queridos colegas de ensino fundamental, médio, faculdade ou mesmo pós? Quando minha irmã e minhas três primas mais velhas começaram a namorar, eu, assim como Jo, olhava de lado aqueles intrometidos que me separariam daquelas amadas criaturas com as quais dividi minha alegre infância. Depois aprendi a lidar com isso. Quando minha filha tirou a "nossa foto" do quarto dela pra o corredor, era a vida, mas também fiquei inutilmente contrariado. Imagina quando saiu de casa? Mas bah! E se um dia a bebê, ao crescer e ficar moça, for, por exemplo, estudar Sociologia na Sorbonne, ficarei muito contente, claro, mas também sentirei muito sua ausência.

 

Essas - e muitas outras - reflexões Mulherzinhas é capaz de suscitar nas leitoras e leitores de hoje, independente da idade, pois, assim como o coração dos seres humanos pouco mudou através dos tempos, também em qualquer tempo nunca deixamos de ser um pouco como a criança que fomos, descobridora dos prazeres e armadilhas da vida. E, igualmente o livro mostra, para sermos verdadeiramente altruístas é preciso ter consciência do nosso egoísmo a fim de o superar e evoluirmos, mesmo que o dissimulemos exteriormente.

 

 

Notas:

(1) - As reuniões do Clube do Livro de Charqueadas são abertas a todos, basta ler o livro indicado para o mês. Para fevereiro o escolhido é Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, a ser debatido dia 21 das 19h às 20h30, na Biblioteca Pública Municipal Prof Vera Maria Gauss, onde exemplares do mesmo se encontram disponíveis para empréstimo aos interessados.

(2) - " Foi com reticência que Louisa May Alcott aceitou o convite do editor Thomas Niles para escrever um 'livro para garotas'. Em maio de 1868, a autora registra a encomenda em seu diário e hesita: 'Vou tentar'. A literatura para crianças e adolescentes não fazia, a princípio, parte dos planos da jovem autora, que ambicionava voos mais altos. Nascida em 1832, no seio de uma esclarecida família da Nova Inglaterra, Louisa viu-se desde a infânca cercada da vanguarda do pensamento norte-americano de seu tempo" - (2019, p.7).

(3) - Os campos das artes e das invenções estão recheados de histórias de pessoas que venderam os direitos de suas ideias por um dinheiro que julgaram muito bom e, depois, viram os compradores enriquecerem com elas.

(4) - A ótima youtuber literária Isabella Lubrano afirma isso em vídeo, mas a escritora e doutoura em Literatura carioca/charqueadense Cláudia Gelb discorda totalmente: "Eu acho que ela fez uma leitura muito rasa desse livro. O livro é muito mais do que ela apresenta" em seu vídeo.

 

Fontes:

ALCOTT, Louisa May (1832 - 1888). Mulherzinhas - Edição comentada e ilustrada: apresentação, tradução e notas de Bruno Gambarotto. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

LUBRANO, Isabella (Canal Ler antes de morrer). Mulherzinhas, de Louisa May Alcott (#256). YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Hv4vQqqaVoE