A NOTA DE BEETHOVEN NA MÚSICA DE VERÍSSIMO

A NOTA DE BEETHOVEN NA MÚSICA DE VERÍSSIMO

Era "Moonlight Sonata" no ar e Clarissa pensava em "Vasco, o Gato do Mato". Seu coração não estava de todo desabrochado... ainda não, mas cada nota de saudade, de inquietação de olhos era sempre anúncio de melodia porque, então, já era moça feita. Ela só precisava esperar o coração amadurecer um pouquinho: a meninice havia passado, mas fazia pouco tempo...

Assim como Beethoven é para os ouvidos, Clarissa é para o coração. Ela é um caminho de lírios, ela é a "lua macia" de Vinícius, a ponta do iceberg de uma pureza infinita que desafia a concepção de humanidade num mundo caótico de preguiça e de vício. Ela caminha entre espinhos deixando seu perfume inconfundível de rosa. As notas de uma música são metáforas de Clarissa e ela mesma é uma conexão de natureza e de cortesia que altera os nossos sentidos a partir do ressignificado de uma delicadeza, não! Não é bem isso! É muito mais que isso, ela é o projeto de uma idealização romântica que amanheceu numa personagem moderna.

Clarissa toma conta das páginas do livro embora haja dor, embora haja enfermidade, embora haja desequilíbrio na família. Ela desbanca o enredo porque é maior que a família, É pura matéria etérea. Via láctea. Ímpar. Sem prazo de validade.

O romance "Música ao Longe", de Érico Veríssimo, publicado em 1935, tem a suavidade do sorriso de menina-moça e a bondade de existir para os nossos olhos. Há pessoas que, de todas as maneiras, correm atrás da felicidade e, por ocasião da procura, a título de orientação: ela pode estar bem atrás da capa de um livro que pinta uma professora tão novinha: "Clarissa risca com giz no quadro-negro a paisagem que os alunos devem copiar. Uma casinha de porta e janela, em cima da coxilha. Um coqueiro do lado (onde nosso amor nasceu - pensa ela no momento mesmo em que risca o tronco longo e fino). Depois, uma estradinha que corre, ondulante como uma cobra, e se perde longe no horizonte". Eis a felicidade, amigo leitor, e para continuar esse deleite é só continuar a leitura. Deleite sim, apesar do romance apresentar a ruína de tradicionais oligarquias com a ditadura Vargas, a beleza da personagem rompe com o quadro de decadência de sua família e, é muito interessante perceber que ela permanece blindada como se não fizesse parte disso. E a sua redoma é, além da descoberta do amor, o seu trabalho. Nesse sentido, há aplicações para entender o cerne do romance: "O amor que ainda não se definiu e como uma melodia de desenho incerto. Deixa o coração a um tempo alegre e perturbado e tem o encanto fugidio e misterioso de uma música ao longe."

Como o susto do primeiro amor: "De repente, Clarissa tem a grande revelação. Encolhe-se transida, contente e ao mesmo (tempo) aflita, vendo pela primeira vez com clareza o que apenas vislumbrava de uma maneira vaga, apagada, tímida".

Momento de grande atenção se anuncia numa véspera de encantamento de sentimentos que se multiplicam e que ela não ousa desconfiar: "Mas, o vulto familiar vai crescendo. Já se ouve o ruído de seus passos. Vasco se aproxima da janela, para, ergue a cabeça:

"-- Alô, Clarissa!

"Ela sorri, baixa os olhos, quer dizer alguma coisa, mas não consegue falar."

Ler "Música ao Longe" ouvindo Beethoven é como achar a "pequena moeda de prata" de Quintana, "perdida para sempre na floresta noturna".

LUZIA ALMEIDA (in O Liberal, Belém, de 21/07/2023, pag. 8)