A Erotomania na poesia de Raulwreneck
É através de uma erotomania, de uma obsessão paranóide pelo sexo, que a poesia raulwreneck se manifesta. Quando falamos de sexo, de putaria, de orgia, de masturbação, etc não estamos falando de pornografia, estamos falando de erotismo, em termos batailleanos. O que é o erotismo? É o dispêndio inútil de energia, é a inutilidade em si mesma. O erotismo tem esse nome e essa definição diante da antinomia fundamental da prática sexual. Enquanto o sexo reprodutivo vê sua utilidade na reprodução, o sexo erótico não possui utilidade alguma, é uma atividade fundada num fim abiológico, assignificante e artificial. O sexo erótico é por excelência, sexo ciborgue. Os animais só conhecem o sexo reprodutivo porque são criaturas guiadas por um princípio natural e biológico, os homens transgridem seu componente biológico, o subvertem e são capazes de criar outras formas de sexo, inimagináveis e inconcebíveis às demais espécies. O sentido da vida humana são suas atividades inúteis, improdutivas, artificiais e abiológicas. Por isso encontra-se sentido de vida no amor, na religião, no sexo, na poesia, na guerra e na morte. Se o que busca-se é a potência conativa, a intensão, então busca-se o erotismo, o inútil e o improdutivo, pois são nas atividades inúteis que o ser-humano transgride seu componente biológico, seu componente social e consegue criar para si o componente de vida singular, um sentido único de vida. O erotismo é o improdutivo, é o singular, é a inutilidade criativa.
Leminski já sublinhara: a poesia é um inutensílio. A poesia é necessariamente sem utilidade prática, não possui finalidade para a vida social, burocrática, burguesa ou capitalista. Ela é poesia, poesia apenas. A poesia (escrita de maneira erótica, espontânea, genuína) é assim, um corpo-sem-órgãos, como é, por exemplo, o brincar em Winnicott: improdutivo e, dessa forma: singular e singularizante, corporal e corporificante. A poesia é como o brincar que é como o CsO.
O erotismo é esse elogio às formas inúteis, impráticas, subversivas e anti-capitalistas de se viver a vida e de fazer literatura, música, poesia e artes visuais. A poesia se escreve em momentos de ócio, de descanso, para escrever a poesia temos que desperdiçar o tempo que, em tese, deveríamos dedicar à vida produtiva. A poesia se escreve nas brechas da vida produtiva. Escreve-se no banho, na hora de cagar. Escreve-se no ócio. Ela é como a filosofia. As maiores ideias da humanidade foram pensadas enquanto os seres-humanos cagavam ou dormiam, metade da filosofia greco-romana não existiria se os cidadãos romanos não cagassem lado a lado com os filósofos nas latrinas públicas. O corpo-sem-órgão é assim, contrário ao corpo-sem-ócio.
Disso vem a erotomania raulwreneck: busca-se uma poesia erótica, uma vida erótica. Uma poesia que subverta as formas convencionais, sociais e instituídas do fazer-poético, uma vida que subverta as formas convencionais, sociais e instituídas de se viver. Disso não se cria uma estilística, um estilo poético, a poesia raulwreneck não é uma escola, uma igreja, uma instituição. Ela é instituinte, não pode fechar-se em si mesma, é uma constante expansão afirmativa. Ela não tem um modelo, uma estrutura, um programa a ser seguido, ela é um convite a um experimento erótico, ela é uma ética, uma eroética. Constitui-se enquanto esse modo de vida que busca subverter, desterritorializar, criar e experimentar. A poesia é um dos meios de manifestação dessa eroética, desse convite, desse comportamento. A eroética erotomaníaca raulwreneckiana é uma forma de vida, uma forma de viver a poesia e de fazer a poesia tornar-se ser-vivo, ser-vivente, ser-político.
Enquanto os concretos viam a palavra como essa entidade de propriedades psicofísicoquímicas, os wreneckianos vêem a poesia como uma entidade de propriedades bio-político-afetivas. A poesia é um ser-vivente e movente, que coexiste com os seres-humanos e com todas as outras formas de vida. Desta forma, a poesia raulwreneck constitui-se como uma bioestética: vê arte enquanto vida (biológica, política e afetiva), vê as vidas (biológicas, políticas e afetivas) enquanto arte.
A poesia raulwreneck é inevitavelmente e, por acidente, política: Os afetos existem nos corpos e os corpos são inscritos na política. Toda política é biopolítica, todo corpo é um campo de afetos e todo afeto é um afeto político. No governo de um tirano, sentimos a indignação em nossos corpos, isso é um afeto. Todo afeto é movente, é movimento, ele afeta o corpo, ele o inquieta, ele o move. A indignação é só mais um dos afetos que levam à revolução, assim como o ódio, o amor e a justiça. A poesia faz emergir do corpo violado pela política fascista os afetos silenciados. Faz vociferarem os afetos. Ela contamina, contagia. A poesia é uma das armas políticas contra o fascismo, mas não se faz política apenas com poesia. A poesia de Raul Brasil e Wreneck Deus é anarquista e comunista, se posiciona contra toda forma de fascismo, capitalismo, exploração e imperialismo e a favor da organização política da classe trabalhadora contra essas instâncias. A arte não é possível em um mundo capitalista. Para além de um Campo de Bataille há um campo de batalha, a poesia se inscreve e se escreve como uma pinça que atravessa esses dois campos e faz com que eles se interpenetrem. Ela é (ou pode ser) uma engrenagem na máquina de guerra.
en la lucha de clases
todas las armas son buenas
piedras
noches
poemas
(Paulo Leminski)
Em sua erotomania, a poesia raulwreneck é eroética-bioestética-cosmopolítica. No entanto, não é sua intenção ser facilmente representada, definida ou capturada. A poesia raulwreneck pretende-se rizoma. Ela não é “isso ou aquilo” ela é um “isso” e “isso” e “isso” e “isso”... como expressado no seguinte poema:
quem disser que raulwreneck é dadaísta está completamente certo e
quem disser que raulwreneck é dadaísta está completamente enganado e
quem disser que o dadaísmo é wreneckiano está completamente certo e
quem disser que o dadaísmo é wreneckiano está completamente enganado e
dada quem kísmo raul disser compestá engomente e o wrenecque é nada
(raulwreneck)
Nossa poesia é sim, pretensiosa, mas descompromissada. Não existe um compromisso, um contrato ou um pacto raulwreneckiano. Nossa poesia é uma abertura radical a todas as formas possíveis de fazer e viver a poesia. Não é obrigatório conhecer e se utilizar das filosofias de Deleuze, Guattari, Nietzsche, Lacan e Bataille para escrever esse tipo de poesia; não é necessário escutar e se inspirar nas canções de Rogério Skylab, Sophia Chablau, Ana Frango Elétrico, As Lágrimas, Billie Eilish, Caetano Veloso, Tom Zé ou The Cure para ser raulwreneckiano; não é necessário ter como mestres e aprendizes os poetas Leminski, Maiakovski, Baudelaire, Artaud, Rimbaud, Torquato Neto, Augusto e Haroldo de Campos. Não é necessário escrever como Raul Brasil ou Wreneck Deus. Mas é sim, necessário, estar aberto ao seu exercício de crueldade, de inconsolabilidade, de erotismo. É sim, necessário, estar aberto ao seu exercício obsessivo-compulsivo esquizofrênico e neotímico de erotomania.