LEITOR EM FORMAÇÃO

LEITOR EM FORMAÇÃO

Como um leitor se forma? Não se forma, ele vai se construindo, e a formação não cessa. Recorro às minhas memórias de quando iniciei no universo da leitura. Espalhado pelo chão, ao lado dos livros, vejo-me encantado pelas fábulas e histórias infantis, especialmente do Patinho Feio, Dumbo, os 101 dálmatas, depois as histórias contadas por Fernando Sabino, Giselda Laporta Nicolelis, Walcyr Carrasco, Marcos Rey, entre outros. É claro que não poderiam faltar as obras da série Vaga-lume. Livros e autores que nos marcam. Livros que nos leem. Moacyr Scliar e “O mistério da Casa Verde”, obra que me guiou para Machado de Assis.

Sempre fui muito afeito às palavras. Sensível a poesia, mesmo que não bem entendesse o que aqueles versos significavam. Aí que compreendi o mais importante da Literatura: sua capacidade de suscitar sensações. Como diria Clarice Lispector, não se deve se preocupar em compreender, porque viver ultrapassa qualquer entendimento. E assim fui vivendo no universo da palavra, sendo atravessado pelos poemas de Cecília Meireles. Recordo-me de estar em um quarto nos fundos da casa de minha infância, aos 11 anos, extasiado com os versos “Não sou alegre nem sou triste/Sou poeta”, que me fizeram entender essa condição de poeta, seu caráter espirituoso – digamos assim – até mesmo inalienável.

Mais à frente, já no curso de Letras, me atentava ao fato de que não fazia Letras, elas é que me faziam, que me fizeram e que me fazem ser quem sou. Devo-lhes o (i)material, o corporificado e o incorpóreo. A ruptura e a manutenção do silêncio. Assimilei o mundo pela 4ª dimensão do verbo. Tornei-me substantivo, adjetivei o que para mim antes era inqualificável.

Ninguém se edifica sozinho. Não fugi à regra. Precisei do auxílio de Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Lya Luft, Machado de Assis, Mia Couto, Viviane Mosé, Ferreira Gullar, Mario de Andrade, Simone de Beauvoir, Philip Roth, Affonso Romano de Sant’Anna, Rubem Fonseca, Rubem Alves, entre tantos outros – até mesmo dos autores teóricos –, pois sou um pragmático-romântico-pragmático. É preciso admitir que todos os livros são de autoajuda para aqueles que estão necessitados do afago das palavras (e também de sua pancada), mas é preciso estar de peito aberto. Ah, mas preciso confessar que ainda devo a tantos que ainda estão por efetivamente chegar, Guimarães Rosa, Victor Hugo, Tolstói, Dostoiévski, Sartre, mais e mais clássicos imprescindíveis a quem deseja mergulhar na alma humana.

Minha sede por significados me levou à sala de aula. Eu precisava compartilhar o quanto os livros são importantes para mim, o quanto eles podem promover mobilidade social para diversas pessoas que estão desiludidas, sem perspectiva, sem sonhos. E assim, ainda que não tanto quanto gostaria, tenho obtido algumas conquistas ao receber alguns comentários dos/das minhas alunos/as que me transmitem suas emoções por terem lido livros em que o amor, a dor, a esperança e os diversos conflitos do mundo fazem a travessia até chegar a eles/as.

Se a Literatura salvará o mundo? Não sei, mas certamente uma vida fica muito menor sem o auxílio dessa e de tantas outras manifestações artísticas. É um desperdício muito grande quando uma pessoa não descobre a beleza contida na criação literária. Não precisa ser escritor. Um bom leitor é aquele que escreve, embora não se dê conta, à medida que envereda pelo discurso do autor. É essa tríade: autor-texto-leitor que desemboca em vida e que a ressignifica, tornando-a maior, dando-nos energia, impulso e pulsão que lateja nosso corpo com um todo e nos convoca a mobilizar o mundo, ainda que individual. Porém, é um grande passo à liberdade, a um sentimentozinho de pertença.

Decidi escrever este texto após ler o livro “Confesso que li”, organizado por Yó Limeira e por Neide Medeiros Santos (Ideia, 2012), belíssimos relatos de leitores sensíveis e dedicados. É muito bom quando um leitor se encontra com depoimentos de outras pessoas que tiveram suas vidas redimensionadas pelos livros, tanto no caráter da escrita quanto no da leitura. Fiquei pensando naquilo que devo confessar que não li, mas está na lista e está contido numa grande ânsia pela próxima leitura. Por ora, me resta apreciar os que estão comigo, mas sei que aparecerão os fura-fila. Preciso ler ou o mundo me devora.

(Texto publicado em A UNIÃO em 26/08/2022)