AMAZÔNIA E SEUS TEXTOS FUNDADORES
Carlos Antônio Magalhães Guedelha
Textos fundadores
Os dois primeiros europeus que puseram os pés na Amazônia foram os espanhóis Vicente Yáñez Pinzón e Diego de Lepe, ambos no ano de 1500, quando Cabral ainda nem pisara nas terras que futuramente viriam a ser chamadas de brasileiras. Pinzón batizou o rio “com o nome de Santa Maria de la Mar Dulce, embora seus companheiros o denominassem de Marañón” (UGARTE, 2003, p. 5). Nesse gesto duplo de contactar e nomear, ele inaugurou “na história da Amazônia, uma cadeia de encontros – seguidos imediatamente de confrontos – com os nativos, já que o primeiro contato resultou na captura de 36 indígenas, embarcados nos navios espanhóis” (UGARTE, 2003, p. 5).
Pinzón introduziu a região no intrincado traçado de conquistas e colonização da Espanha. E apenas alguns dias depois, seria a vez de Diego de Lepe chegar ao mesmo ponto onde estivera a expedição de Pinzón. Os indígenas, movidos pela amarga lembrança dos parentes aprisionados e assombrados ante a possibilidade de serem escravizados, ofereceram-lhe uma acirrada resistência, e do confronto mortal resultaram grande baixas dos dois lados.
Apesar de essas duas expedições apenas terem chegado ao rio Amazonas, sem, contudo, navegá-lo por inteiro, Ugarte (2003, p. 6), entende que elas inauguraram “a percepção europeia sobre o mundo amazônico, em duas vertentes:
a) O encanto pelo imediatamente visível e positivo – as águas doces e a fertilidade da terra;
b) A expectativa, igualmente positiva, da existência de diversas riquezas.
Desde então, a Amazônia passou a ser significada e re-significada em textos e discursos. Desde o século XVI, quando foram lavrados os primeiros escritos a respeito desse território por parte dos cronistas das expedições pioneiras. Para entendermos adequadamente a Amazônia tal como se apresenta mesmo nos discursos de hoje, é necessário revisitar os autores do passado, pois eles são chaves disponíveis para abrir acesso ao mundo amazônico. Pinto (2006, p. 181), estudioso da formação do pensamento social na Amazônia, adverte que para compreender o presente é necessário compreender antes o passado: “a Amazônia se tornou um tema universal desde muito cedo e povoa o imaginário do mundo inteiro graças, sobretudo, à revelação que dela fizeram seus exploradores, seus viajantes, cronistas e cientistas de diferentes épocas”.
Esse pensamento é assumido também por Gondim (1994, p. 9), que desenvolveu um estudo respeitável a respeito da “invenção” da Amazônia por meio dos discursos que a representam: “[...] a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída; na realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes”, diz a pesquisadora.
Bueno (2008, p. 78) também partilha dessa ideia quando afirma que a “invenção da Amazônia” resulta dos muitos discursos que sobre ela foram sendo articulados na linha do tempo:
A região amazônica vem sendo construída desde a chegada do colonizador europeu ao novo mundo. Crônicas, relatos de viagens, relatórios de expedições, contos, romances e reportagens, além da cartografia, da iconografia e mesmo da filmografia, têm contribuído para a formação de uma visão sobre a Amazônia. Embora caracterizada distintamente por grupos sociais diferentes e apesar das características preponderantemente associadas à região terem se transformado bastante no decorrer dos séculos – a Amazônia tem sido definida como “terra da canela e do ouro”, “paraíso terrestre”, “inferno verde”, “vazio demográfico”, “pulmão do mundo” – alguns elementos permanecem em todas essas representações, mesmo sendo por vezes ressemantizados.
Mais do que isso, Bueno (2008, p. 3) considera que os discursos, ao invés de serem pano de fundo dessa invenção, na verdade ocupam o primeiro plano da cena: eles mesmos são a tessitura e a motivação da representação da região:
Há uma representação da Amazônia construída através de discursos. Os discursos sobre a Amazônia não são construídos sobre a realidade, mas sobre outros discursos sobre a Amazônia, sobre a América, sobre o Novo Mundo e, até mesmo, sobre as Índias. [...] Algumas das expressões que estiveram ligadas ao Novo Mundo, permanecem ainda associadas à Amazônia. Denominações como ‘El dorado’ e ‘paraíso’ foram ressemantizadas, mas ainda remetem a essa porção do território.
Obviamente, os textos fundadores da Amazônia estabelecem diálogos parafrásicos com outros textos que nasceram no calor das grandes navegações, por meio das quais Portugal, Espanha e outros países da Europa lançaram seus tentáculos para além dos limites marítimos conhecidos. Retomam temas que, anteriormente, estiveram na pauta de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Pero Vaz de Caminha e tantos outros desbravadores do Novo Mundo, enquanto estes, por sua vez, fazem eco à voz de Marco Polo (GONDIM, 1994; PINTO, 2006; BUENO, 2008).
Entre os assuntos da predileção desses exploradores e aventureiros estão a busca incansável de ouro e outras riquezas cobiçadas das terras desconhecidas, o sonho de encontrar o paraíso terrestre - o novo Éden, a curiosidade ante os exotismos das terras e das gentes, a mediação da expansão política e religiosa dos reinos.
Figueiredo (2010, p. 65) explica que, nessa época de desbravamento e conquista, a figura que mais se destaca é a do aventureiro, pois
Todas essas atividades constituíam uma autêntica aventura nos trópicos: aventureiros, evidentemente, os piratas e corsários que disputam o comércio do pau-brasil; aventureiros, também os capitães e as tripulações portuguesas (estes, muitas vezes, aventureiros forçados) das naus que tentavam impedir e expulsar os “estrangeiros”, reservando para os lusos a exclusividade da exploração e o domínio da terra; aventureiros, enfim, os missionários que se enterravam por esses confins, para empreender a “conversão do gentio”. Dominação política, exploração econômica, missionação, as três vertentes da colonização.
Uma coisa é certa: o conhecimento do chamado Novo Mundo de forma alguma pôde prescindir da atuação dos cronistas e relatores das mais variadas expedições. A quase totalidade desses autores eram realmente aventureiros. Escreviam a partir do contato com a terra e com a gente de que falavam. “Participaram de momentos importantes nas nações e locais inexplorados ou desconhecidos dos europeus” (FIGUEIREDO, 2010, p. 64). Estando em terra estranha, ajudaram a mostrar a Amazônia para o mundo, iniciando uma tradição de transplante do imaginário do Novo Mundo para esta parte da América.
Ugarte (2003, p. 3) comenta que a região amazônica tornou-se, no processo da conquista colonial, uma das “margens” do Novo Mundo. “Porém, uma ‘margem’ que ao contrário do que ocorreu com o Vale Mexicano ou com Andes Centrais – ‘margens’ que se tornariam ‘centros’ do mundo colonial - continuou nessa condição, vindo até os nossos dias”. Ao discursarem sobre a Amazônia, os europeus “não somente revelaram a si mesmos essas ‘margens’ – limites – do mundo, mas também, e principalmente, transformaram tais ‘margens’ em periferia – cultural, econômica e política – de seu universo social” (UGARTE, 2003, p. 3).
Aos poucos a Amazônia foi se tornando alimento para a imaginação coletiva. À medida que a empresa colonial dava seus primeiros passos nessa terra longínqua, uma gama de simbolismos ia sendo forjada na mentalidade europeia. E assim, “a partir dos conceitos, juízos, símbolos, mitos e valores de sua civilização, os conquistadores, através de suas narrativas – escritas e orais –, transmitiam aos leitores e ouvintes determinadas imagens mentais, que tornavam menos estranhas as novidades dos territórios desbravados” (UGARTE, 2003, p. 4).
Os instrumentos utilizados para a elaboração de tais imagens mentais foram primordialmente a literatura dos cronistas e demais viajantes, a iconografia, a cartografia e os posteriores relatórios à viva voz. “Foi graças a esses meios que a Amazônia, juntamente com outras regiões do continente americano, foi sendo introduzida no imaginário europeu ocidental” (UGARTE, 2003, p. 4).
Para Ugarte (2003, p. 4), “o universo mental do europeu sobre o Novo Mundo em geral, e sobre a Amazônia em particular, não separava a realidade material da realidade imaginada. Alguns mitos europeus ganhavam novas expressões com o desbravamento das terras americanas, e alguns deles tiveram lugar no seio da Amazônia”.
Ou seja, uma tradição de transplante cultural.
Referentemente aos textos inaugurais, eles vieram à luz em prol da “construção de uma nova identidade para os povos amazônicos segundo a lógica do colonialismo europeu” (FREIRE, 1991, p. 71). Portanto, eles devem ser lidos e entendidos
como textos vivos, portadores de um projeto político que, consciente ou inconscientemente, colaboram na construção de um modelo de relacionamento entre a realidade indígena da Amazônia e o chamado Velho Mundo. Isto é, ao informarem ao ‘mundo civilizado’ sobre as maravilhas que viram e ouviram nos sertões das amazonas, estavam criando as condições subjetivas necessárias ao avanço das forças colonialistas em espaços amazônicos. (FREIRE, 1991, p. 71)
Com base nessas considerações, é possível concluir que a retomada dos autores que representaram a região no passado contribui decisivamente para enriquecer o exercício de olhar sobre o que veio depois dessa representação, formando elos articulados a essa grande cadeia discursiva. Assim sendo, podemos buscar as chaves de acesso à Amazônia nesses textos que vieram à luz nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, avançando quando necessário até o século XX. Por isso revisito aqui a tradição dos apontamentos de viajantes sobre o vale amazônico, que teve início com os cronistas das expedições de conquista e reconhecimento, tomou impulso com as expedições científicas oficiais e ganhou curso com aventureiros, arrivistas e profissionais liberais que se movimentaram pelo vale amazônico, seja vasculhando, inventariando, pesquisando, interpretando ou simplesmente rapinando. Em conjunto, esses apontamentos formam um painel impressionante sobre a terra e a gente da região.
Amazônia – a origem do nome
Reis (1998) relata que, em meados do século XVI, o Peru era governado por Francisco Pizarro, soldado da fortuna que conquistara aquelas terras na sua faina de aventureiro em busca de ouro. Por volta de 1539, ele tomou conhecimento sobre o País da Canela e o lendário El Dorado que, segundo as informações que circulavam, situavam-se fora do mundo inca, a leste da cidade de Quito, numa terra distante e praticamente inexplorada, mas pertencente ainda à zona sob seu governo. Localizar e explorar o País da Canela e o fabuloso El Dorado passou a ser uma obsessão para o governador aventureiro, tendo em vista que a canela era uma das especiarias mais ambicionadas na Europa, e o ouro era motivo de desejos inconfessáveis. Com esse intuito, encarregou o seu irmão Gonçalo Pizarro de organizar uma expedição e com ela partir em busca daquela cobiçada terra.
Da expedição de Pizarro desmembrou-se uma outra, a partir do rio Coca, cujo comando foi confiado ao capitão Francisco Orellana. E essa expedição de Orellana, na verdade, foi a primeira a percorrer toda a planície que, tempos depois, passaria a ser conhecida como planície amazônica (REIS, 1998). Coube ao religioso dominicano Frei Gaspar de Carvajal o papel de escrivão da expedição de Orellana, estando ao seu encargo, portanto, a tarefa de relatar os acontecimentos da viagem. Consta do relato de Carvajal, entre outros fatos pitorescos, o violento combate que os navegantes travaram, no dia 22 de junho de 1541, nas proximidades da foz do rio Nhamundá, um dos afluentes do Amazonas que banha os atuais estados do Amazonas e Pará, com uma tropa de mulheres guerreiras, as quais o capitão e o seu cronista tomaram como sendo as lendárias amazonas da mitologia grega, mulheres guerreiras sem homens cuja existência incendiou a imaginação de praticamente todos os desbravadores de terras desconhecidas, que invariavelmente alimentavam o sonho de encontrá-las, em qualquer que fosse o continente. Esse foi o caso de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio e Pedro Álvares Cabral, que julgam tê-las visto em suas viagens (GONDIM, 1994; GARCIA, 2005; SOUZA, 2009).
Grimal (1989) afirma que as amazonas eram um povo de mulheres que descendiam do deus da Guerra, Ares (Marte), e da ninfa Harmonia. O seu reino era localizado ao Norte, quer sobre as cordilheiras do Cáucaso, quer na Trácia, quer na Cítia Meridional (nas planícies da margem esquerda do Danúbio). Elas governavam-se a si próprias, independentemente de homens, cuja aproximação nem suportavam, sendo comandadas por uma rainha. Segundo a lenda, elas só se aproximavam dos homens quando sentiam necessidade de procriar, para perpetuar a raça. Mas matavam os filhos do sexo masculino e só conservavam vivas as crianças do sexo feminino, que eram adestradas para a guerra.
Com quem, na verdade, a expedição de Orellana se confrontou nesse ponto da viagem? É possível que as pretensas amazonas fossem, na verdade, uma tribo em fase de matriarcado ou até mesmo um grupo de mulheres indígenas nas atividades de caça e pesca, costume comum em algumas tribos da região. Alguns índios já haviam advertido Orellana sobre o perigo de se envolverem em conflito com as mulheres guerreiras. Um deles, que havia sido aprisionado em um combate anterior, foi interpelado por Orellana a respeito daquelas mulheres, quem eram elas, quais os seus hábitos etc. E o índio passou a repetir uma história que, com ligeiras adaptações às circunstâncias locais, vinha sendo contado pelos mais variados cronistas em praticamente todos os continentes. Souza (2009, p. 76) comenta, a esse respeito, que
A história narrada pelo índio é a mesma que seria contada para sir Walter Raleigh e repetida 200 anos depois ao cientista Charles Marie de la Condamine, bem como para Spruce, 300 anos mais tarde. Mulheres guerreiras comandadas por uma matriarca é um mito comum aos povos do rio Negro, médio Amazonas e Orenoco. Daí talvez a presença constante da história ao longo dos séculos, com uma força capaz de convencer la Condamine, Spruce e o historiador Southey, sem falar da ambiguidade de Humboldt a respeito do assunto.
Carvajal, valendo-se do índio “entrevistado” por Orellana, um velho de nome Apária, transplantou a lenda grega para o vale amazônico, e seu relato se tornou motivo de polêmicas para a posteridade. Assim Carvajal descreve as “Amazonas”, contra as quais a expedição travou uma duríssima batalha:
Estas mulheres são mui alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça. São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade houve uma destas mulheres que meteu um palmo de flecha por um dos bergantins, e as outras um pouco menos de modo que os nossos bergantins pareciam porco-espinho (CARVAJAL, 1941, p. 60-61).
À parte o lado mitológico ou o aspecto fantasioso dessa passagem do texto de Carvajal, foi devido a ela que o grande rio, que fora anteriormente batizado de Rio de Orellana, passou a se chamar Rio das Amazonas. Reis (1998, p. 45) atesta que Orellana
até aquele instante dera àquela massa d’água doce o nome de rio Orellana. Impressionado com as guerreiras, homem de seu século, amante de aventuras, galanteador, mudou-o então para Rio das Amazonas. Prestava-lhes a homenagem de seu respeito pela valentia demonstrada.
E no o nome “Amazônia” para a região onde se situa o rio, e “Amazonas” para um dos Estados decurso do tempo, o rio passaria a ser denominado simplesmente de Rio Amazonas, derivando daí também dessa região. É o que afirma Souza (2009, p. 21):
O nome Amazonas foi dado inicialmente ao poderoso rio que corta a planície, o maior e mais caudaloso do planeta, senhor de uma fantástica bacia hidrográfica que, de certa forma, dita o destino de todo o subcontinente. Tantas são as peculiaridades, diferenças e semelhanças entre as diversas conformações regionais, que o vale banhado pelo rio mar acabou recebendo o nome de Amazônia, território multinacional e pluricultural [...]
E Bueno (2008, p. 79) acrescenta que esse território
já foi nomeado bacia do Rio Amazonas, País das Amazonas, região amazônica, passando a ser chamado “Amazônia” apenas no final do século XIX. A região ganha existência a partir dos olhares lançados sobre ela. Diversos indivíduos e grupos expressaram suas opiniões e, neste processo, a região foi se constituindo. As mudanças ocorridas nas avaliações sobre a região promoveram transformações nas representações da Amazônia bem como na própria região.
Orellana deu nome também ao rio Negro, extasiado que ficou com o negrume de suas águas, “cor de tinta”, em contraposição à amarelidão das águas do Amazonas, especialmente quando a tripulação atingiu o encontro das águas dos dois rios (GONDIM, 1994; REIS, 1998; SOUZA, 2009).
Os primeiros cronistas
A primeira expedição a descer o rio Amazonas, como dito anteriormente, foi a do capitão espanhol Francisco Orellana, desmembrada da expedição de Gonçalo Pizarro, iniciada em 1539. Além de contribuir decisivamente para a origem do nome da região, essa expedição, segundo atestam os pesquisadores, teve o mérito de ser a pioneira das “grandes navegações” de exploração do grande rio. Reis (1998, p. 48) refere-se entusiasticamente ao fato, quando afirma que Orellana pode “figurar na galeria dos criadores do Novo Mundo, como dos mais bravos pioneiros da civilização ocidental nas selvas amazônicas”, porque “cabe-lhe a glória de ter desvendado a maior artéria fluvial do globo”.
É certo que esse grande feito do capitão espanhol, tão logo se tornou conhecido na América e na Europa, provocou “desejos ardentes” de exploração e colonização das terras que ele visitara. Foram organizadas várias expedições em Portugal e no Peru no embalo desse sonho colonial, mas, segundo Reis (1998), todas essas tentativas fracassaram.
Motivavam também esse sonho de conquistas os mitos do El Dorado e do País da Canela, que Orellana não encontrara, mas, com certeza (para a mentalidade da época), abrira o caminho em sua direção. Se ele conseguira a proeza de encontrar as tão procuradas amazonas, certamente um pouco de esforço a mais, e quem tivesse coragem e espírito de conquista, encontraria o País da Canela e o El Dorado, que ficavam na mesma zona do reinado das mulheres guerreiras, a leste de Quito, conforme se acreditava.
El Dorado, segundo as informações de que se dispunha, era um rei
cujas riquezas não era possível medir. Os templos, os palácios, a pavimentação das ruas da cidade de Manoa, onde vivia, tudo nessa região encantada se construíra em ouro, ouro puro, só ouro. O monarca, pelas manhãs, banhava-se num lago de águas perfumadas, sobre as quais lançavam ouro em pó (REIS, 1998, p. 49).
Havia também a lenda do País dos Omáguas, que se confundia com a do El Dorado. Tratava-se de uma nação desejável em que havia uma cidade que
resplandecia pela magnificência dos seus edifícios suntuosos, de seus templos edificantes, onde os ídolos eram de ouro maciço, nação de muitos milhares de indivíduos, governada pelo poderoso cacique Guarica. Um luxo de pormenores, imaginados, arranjados com habilidade pelo ameríndio, dava crescimento à ambição dos conquistadores (REIS, 1998, p. 49).
Todas essas lendas potencializavam a imaginação e a sede de aventuras e de fortuna dos conquistadores, o que foi acentuado pelas notícias das proezas de Orellana. Reis (1998, p. 50) informa que “a jornada ao Dorado e aos Omáguas entrou a preocupar todos os espíritos. Projetaram empreendê-la. Projetaram apenas, porque as autoridades régias não consentiram na realização”.
Somente em fevereiro de 1560 partiria de Quito uma segunda expedição, comandada pelo capitão Pedro de Ursúa, em busca do El Dorado e do País dos Omáguas. Essa viagem foi narrada por três participantes da expedição: Francisco Vasques, Pedrarias de Almesto e Capitão Altamirano (FREIRE, 1991, p. 9).
Era uma expedição que tinha tudo para não dar certo, a despeito do “currículo” invejável do seu comandante, como soldado aguerrido e vitorioso que se mostrara em muitas batalhas. As embarcações eram mal equipadas, ao ponto de apodrecerem sob o efeito da chuva, a tripulação foi escolhida sem critério, assim como todo o pessoal de bordo. Para completar, Ursúa levava consigo uma linda viúva de nome Ignéz Atienza, uma mestiça que despertava paixões e desejos desenfreados entre todos os tripulantes, que a acusavam de influenciar as decisões de Ursúa como comandante da expedição. A presença da mestiça na expedição e sua ascendência sobre o comandante acabou se tornando o estopim de um espetáculo sangrento que assinalou o começo de uma série de tragédias em que se converteria aquela desastrosa viagem:
Descontentes e enamorados, unindo-se para satisfação de seus ímpetos, conspiraram para desfazer-se de Ursúa. A soldadesca, habituada à indisciplina que nos últimos tempos dominava o Peru, facilmente se deixou levar pelas propostas dos conjurados. Chefiava o conluio o vasco Lope d’Aguirre, indivíduo de precedentes sujos, useiro e vezeiro em motins, conhecido, pelas misérias que praticava, pela alcunha de o Louco (REIS, 1998, p. 51).
Lope de Aguirre, diz Garcia (2005, p. 21), “alimentava um desejo ainda não confessado: tomar o Peru e as enormes extensões de terras banhadas pelo rio Amazonas”. Ele assassinou Pedro de Ursúa e mais um sem-número de navegantes, inclusive sua própria filha Elvira, que o acompanhava. Depois de uma rota de viagem banhada a sangue e pontuada de rebeliões, acabou sendo assassinado, e sua memória foi declarada infame. Essa segunda expedição poderia ter dado uma melhor contribuição para ampliar o conhecimento que se tinha então sobre a região, se não fosse o fato de praticamente se reduzir a uma série atos sanguinários de um homem desvairado, o Lope de Aguirre.
Ugarte (2003, p. 27) comenta que, depois da expedição de Ursúa-Aguirre, no último quartel do século XVI,
os espanhóis não singraram mais todo o rio Amazonas nem tentaram colonizar o imenso vale, deixando um vazio de poder colonial na região. Tal fato ocasionou que novos ensaios de conquista fossem tentados, agora, por inimigos dos hispânicos, mormente ingleses e holandeses. O mito do El Dorado continuava muito vivo nesse período, tornando a região setentrional da América do Sul, incluindo a Amazônia, suscetível de novas expedições à sua procura, descoberta e conquista, pois, embora se acumulassem frustrações e malogros para a sua descoberta e conquista, desde que os espanhóis se lançaram à sua procura na década de 1530, El Dorado continuará a exercer fascínio sobre os europeus.
É correto o raciocínio de Ugarte (2003, p. 31) quando argumenta que
na história da Amazônia, o século XVI marca sua entrada no cenário da conquista europeia. Porém, antes da efetiva conquista militar e da implantação colonial, que se deu apenas a partir do século XVII, a região amazônica foi conquistada pelo imaginário colonialista, uma vez que os conquistadores não dispuseram das condições materiais pra realizar de fato o seu intento. Desse modo, no século XVI, à Amazônia – “margem” da “margem do mundo” que era a América – foi atribuído o caráter de palco, onde algumas das fantasias europeias foram encenadas.
Um estudo desenvolvido por Krüger (1982) lembra que o início da colonização europeia no mundo amazônico foi obra dos espanhóis e não dos portugueses. E os relatos dos cronistas do século XVI comprovam isso. Enquanto os espanhóis empreendiam suas primeiras penetrações pelo vale amazônico, Portugal voltava suas preocupações para o litoral. Somente no limiar do século XVII a Amazônia iria conhecer a presença dos portugueses, que a partir daí buscaram consolidar o seu domínio na foz do rio Amazonas.
Souza (2009, p. 127) divide a evolução da colonização portuguesa na Amazônia, que politicamente vai de 1600 a 1823, em 4 períodos distintos:
- de 1600 a 1700, expulsão dos outros europeus e ocupação colonial;
- de 1700 a 1755, estabelecimento do sistema de missões religiosas e organização política da colônia;
- de 1757 a 1798, criação do sistema de Diretoria de Índios e esforço para alcançar o avanço do capitalismo internacional;
- de 1800 a 1823, crise e estagnação do sistema colonial.
Krüger (1982) refere-se à admirável estratégia militar dos portugueses na Amazônia, que consistiu no competente fechamento da Amazônia à penetração estrangeira. Um marco decisivo dessa estratégia foi a fundação do Forte do Presépio por Francisco Caldeira Castelo Branco, em 1616. O forte se transformaria posteriormente na cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará (Belém). Krüger assinala a importância desse forte na foz do rio Amazonas, ponto nevrálgico para a blindagem do território contra a invasão das nações concorrentes. O forte impedia a passagem de barcos estrangeiros (principalmente holandeses e espanhóis) e praticamente impossibilitava o acesso a toda a região. Tratava-se, segundo ele, da projeção de uma concepção que cimentou a construção de novos fortes, que igualmente se transformariam em novas cidades, como é o caso de Manaus, cuja raiz foi o Forte de São José do Rio Negro, levantado em 1669 pelo capitão Francisco da Mota Falcão para garantir a soberania portuguesa naquelas paragens do rio Negro, vedando o acesso dos estrangeiros. Mas as estratégias portuguesas não se reduziram às operações militares:
Além do estabelecimento de postos militares, foram espalhando feitorias e missões. Cada governador de Belém cuidou de organizar bem equipadas expedições de reconhecimento e ocupação, mandou tropas de resgate, moveu guerras justas e incentivou o descimento de índios para os centros coloniais (SOUZA, 2009, p. 129).
Aproximadamente um século depois da tragédia de Ursúa, já em outubro de 1637, foi a vez de o explorador português Pedro Teixeira realizar a primeira expedição de caráter oficial a percorrer o rio Amazonas, em sentido contrário à de Orellana, ou seja, subindo o rio da cidade de Cametá, no Pará, até o Equador. Viajava em nome do governo português numa missão de reconhecimento da terra. Dessa expedição vieram à luz dois relatos, um escrito pelo jesuíta Alonso de Rojas e outro pelo frei Cristóbal de Acuña (FREIRE, 1991).
Rojas deu ao seu texto o título de Descobrimento do Rio das Amazonas. No entendimento de Gondim (1994, p. 87) ele contém “ao lado de observações político-estratégicas, a herança bíblica e medieval da busca do Paraíso Terrestre”, mas chama a atenção no texto a “precisão dos dados técnicos sobre a largura, profundidade e comprimento do grande rio”. Rojas encarece a necessidade de se aproveitar as margens do rio para o cultivo de plantações diversas e para a construção de benfeitorias, assim como o estabelecimento de fortificações em pontos estratégicos ao longo do vale. Gondim (1994, p. 87) considera que estas e outras sugestões dadas pelo cronista
assemelham-se mais ao político de visão que propriamente ao padre preocupado com a salvação de tão grande rebanho [...] As possibilidades comerciais e o lucro correspondente à exploração das madeiras-de-lei são alguns dos tópicos anotados no diário de viagem que sintetiza as visões mercantilista e catequista.
Em tom de absoluto entusiasmo com a grandeza do rio, o texto de Rojas contém comparações entre os grandes rios citados na Bíblia e o Amazonas. Nessas comparações, o Amazonas sempre se sobressai como o mais nobre, o mais abençoado e o mais cristão, por banhar as terras de um reino católico. É o rio que banha o Paraíso Terrestre, suas margens são as mais férteis e sob o seu leito dormem as mais expressivas riquezas minerais. “A crônica enfatiza a densidade populacional às margens do grande rio e tributários, informa sobre a diversidade linguística, habitações asseadas, alimentação farta, feiticeiros temidos e a inexistência de templos, ritos e cerimônias” (GONDIM, 1994, p. 90).
O texto de Rojas é um evidente convite à exploração da terra em nome da Igreja e do Estado. Apresenta uma terra rica em ouro e outros minérios, terra de delícias, obra de Deus à espera da conquista (ROJAS, 1941).
Quanto ao relato de Cristóbal de Acuña, não se pode negar que ele tem, assim como o de Gaspar de Carvajal, um caráter bastante pitoresco e imaginoso, como nas referências que faz à existência de um rio de ouro na Amazônia, mas traz importantes detalhes sobre o homem e a terra. Reis (1998, p. 61) dá conta de que Acuña, “recolhendo, pacientemente, todos os informes que catava, ia organizando os materiais de que se serviria para, num livro famoso, dizer à Europa daquele paraíso”. O referido livro recebeu o nome de Novo Descobrimento do grande Rio das Amazonas, e foi editado em Madri no ano de 1641.
Pinto (2006, p. 130) entende que esses textos inaugurais tinham duas preocupações básicas: inventariar o vale amazônico, revelando os tesouros que poderiam ser explorados pela Europa, e pensar em meios adequados para se explorar esse tesouro. Para ele, Acuña intitula seu texto como “novo” descobrimento porque “considerava que os primeiros testemunhos produzidos sobre o vale amazônico deixaram de fora as revelações principais, e que na verdade não correspondiam à grandeza e ao significado do tesouro”. Na verdade, o relato apresenta “inúmeras informações geográficas, econômicas e etnográficas de primeira mão, que servirão para inspirar a visão de outros notáveis autores do tempo futuro”. (p. 132) Ele apresenta um mundo, tanto natural quanto humano,
que era mal conhecido e que, dessa forma, possuía o valor de verdadeira fonte de revelação. E talvez por este motivo tenha sido recebido com receio pela corte espanhola, que temia pela divulgação de tão preciosas informações, sobretudo que fossem parar nas mãos daqueles que possuíam interesses coincidentes em relação a essa parte não revelada da América (PINTO, 2006, p. 130).
Obtendo testemunho privilegiado de nativos da própria região, com quem mantivera contato, Acuña dá conta da existência de ouro em diversos pontos do território, e isso era suficiente para deixar os espanhóis de olhos arregalados e boca fechada. Portugal vivia à época sob o domínio espanhol, no entanto a divulgação descuidada de uma terra tão valiosa poderia alimentar um espírito de rebelião. De resto, a expedição de Pedro Teixeira pode ser considerada o primeiro passo para o alargamento da posse portuguesa na região, pelo fato de ele ter lutado contra holandeses e ingleses que tentavam dominar a extensão do rio-mar.
De qualquer forma, após a expedição de Pedro Teixeira, a administração colonial portuguesa se efetiva na Amazônia, a partir de 1657, com a fundação da missão dos jesuítas no rio Negro, segundo informa Souza (2009, p. 115), e esse processo de ocupação baseado no trabalho das ordens religiosas “segue intenso até 1750, culminando com a assinatura do Tratado de Madri e a ascensão ao poder do Marquês de Pombal”.
O século XVII receberia ainda um outro relatório de viagem pela Amazônia. O padre jesuíta Samuel Fritz, missionário sabidamente predisposto ao martírio e aos perigos, viveu 37 anos na região, a partir de 1689, em trabalho de catequese, e registrou parte de sua atuação no livro Diário de viagem. Pinto (2006) informa que esse jesuíta alemão, como ávido defensor dos espanhóis, considerava a presença portuguesa altamente nociva aos indígenas, porque os lusos sustentavam seu trabalho na atuação violenta e na escravização dos nativos.
Graças à presença incansável como fundador de vários estabelecimentos missionários na região do Alto Amazonas/Marañon, espaço de fronteira entre os reinos de Espanha e Portugal, se transformou gradativamente em símbolo vivo do movimento de expansão da fé cristã e dos interesses espanhóis em direção às terras pretendidamente sob o domínio luso (Pinto, 2006, p. 135).
Sua permanência na região foi muito atribulada, devido à malária e outras doenças de que foi severamente acometido quando tentava organizar as missões no rio Solimões. Além disso, teve que enfrentar a desconfiança, as tramas e intrigas dos administradores e colonos portugueses que o julgavam um espião espanhol. Chegou, inclusive, a ser preso em Belém quando ali esteve se tratando da doença com os jesuítas (REIS, 1998; SOUZA, 2009). Mas no tempo em que lhe foi possível trabalhar, lidou de perto com os nativos de diversos povoamentos. Elaborou uma carta geográfica do rio em toda a sua extensão conhecida, que o consagrou como grande conhecedor do vale amazônico. “Tomando apontamento dos trechos que visitava, colhendo informações com os outros missionários que corriam paragens fora de sua ação, fora reunido o material com que a organizou” (REIS, 1998, p. 92). Com esse mapa, “realizou um trabalho pioneiro e inovador da técnica cartográfica, que viria a servir de base para as cartas posteriores, entre as quais as de La Condamine” (PINTO, 2006, p. 135). Seus apontamentos, acrescidos de observações posteriores de La Condamine, segundo Pinto (2006), ficou para a posteridade como um dos documentos fundadores da etnografia e da história natural do vale do Amazonas.
Viagens, aventura e ciência
O século XVIII assistiu a uma nova fase de representação da Amazônia, diferente dos séculos anteriores em um aspecto básico: aos poucos, a linguagem do relato mítico-religioso passou a dar lugar à linguagem do inventário científico. Souza (2003) identifica essa fase como um segundo momento colonial. O primeiro foi o tempo da fixação e da conquista. Deixou atrás de si um rastro de fábulas encantadoras construídas por homens ora deslumbrados ora atormentados ante o mundo desconhecido, a respeito do qual, segundo Holanda (2010), os espanhóis desenvolveram uma verdadeira geografia fantástica, por julgarem ter encontrado o paraíso bíblico perdido. Atitude semelhante havia sido demonstrada pelos portugueses, antes da América portuguesa, ao descreveram o continente africano, com seus grandes rios e recursos naturais, como o que mais se aproximava ao paraíso edênico.
No imenso fabulário sobre a Amazônia, há raros lampejos de genialidade, incrustados aqui e ali como que para salvar esses escritos da total ingenuidade e da repetitividade. No limiar desse segundo momento,
por toda parte se desenham as fábulas da região, mas agora sabe-se que são fábulas; é o tempo da necessidade de louvar a própria força e tentar a compreensão da ciência [...] Enfim, é a necessária racionalidade que requer da velha similitude o papel de revelar e também ordenar a Amazônia (SOUZA, 2003, p. 71).
Foi com essa perspectiva que o cientista francês Jean Marie de La Condamine chegou à Amazônia. Ele saiu de seu país em nome da Academia de Ciências de Paris, acompanhado de uma comitiva de cientistas, em direção ao Equador, com a tarefa de testar a teoria newtoniana de que a Terra é achatada nos polos, enquanto outra comitiva faria o mesmo trabalho na Lapônia. Seria uma grande contribuição para as diversas ciências que se viam às voltas com a grande controvérsia em torno da redondeza da Terra. Cumprida essa missão, depois de muitas intrigas e mortes no Peru, parte da comitiva voltou para Paris, enquanto La Condamine seguiu em direção ao rio Amazonas, uma rota de viagem alternativa, com vistas a fugir de uma possível emboscada que os desafetos poderiam lhe armar.
Nessa rota alternativa, aproveitou o ensejo para realizar uma viagem de reconhecimento do Amazonas, do Peru até a sua foz. A respeito dessa viagem, escreveu o Relato abreviado de uma Viagem feita ao interior da América Meridional 1734 – 1745, obra que contém anotações sobre a fauna, a flora e a gente da região (TOCANTINS, 1982). Sua obra é considerada um momento decisivo da história da ciência do século XVIII, um dos capítulos fundadores da ciência moderna. Orientada pelo espírito iluminista, sua mentalidade é etnocêntrica e eurocêntrica. Descreve que as margens do rio, descritas por Acuña como densamente povoadas de indígenas, um século antes, encontram-se quase vazias, ocupadas aleatoriamente por benfeitorias portuguesas. Evidentemente, ele serviu-se dos relatos dos viajantes anteriores (Carvajal, Rojas, Acuña). E a partir dessas leituras e das observações feitas, “La Condamine realiza o primeiro grande empreendimento científico na Amazônia através de suas viagens de exploração e estudos na região” (PINTO, 2006, p. 182).
Assim, vale dizer que ele inaugura as expedições científicas na Amazônia. Trouxe o racionalismo e a ciência para este lado da América, averiguou a veracidade de muitos pontos dos relatos anteriores considerados inverossímeis, como um rio de ouro existente na região. A respeito das amazonas citadas pelos cronistas, fez uma investigação acurada a respeito da possibilidade de sua existência, comprovando que era inconsistente. Em suas andanças pela região, anotava meticulosamente tudo que achava interessante para a investigação científica. Teve o mérito de ser o primeiro cientista a descrever as propriedades da seringueira, um produto oriundo da selva que os índios Omáguas utilizavam para fabricar utensílios da vida diária, como sapatos, bolas, vasilhas etc. A partir dessa descrição, a borracha passou a ser explorada fora do mundo indígena, inicialmente de modo artesanal, uma vez que a demanda era pequena. Mas com o tempo o interesse pelo produto iria aumentar até chegar a uma altíssima escala industrial, gerando um grande ciclo na Amazônia (SOUSA, 2009; PINTO, 2006; TOCANTINS, 2000; LOUREIRO, 1985; REIS, 1998).
A partir da segunda metade do século XIX, a Amazônia começou a viver sob o ciclo da borracha. Contribuíram decisivamente para esse fato as investigações iniciais de La Condamine e, posteriormente, a descoberta do processo de vulcanização por Charles Goodyear (TOCANTINS, 1982).
O padre João Daniel (1722 – 1776) foi outro pesquisador que deu grande contribuição para a formação do pensamento social na Amazônia. No livro Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, Aliou de forma admirável a ciência e a imaginação. O real e o imaginário convivem harmoniosamente em seus textos, e isso, no entendimento de Pinto (2006, p. 148) não compromete seu valor como
grande inventário das riquezas da Amazônia e como um dos projetos políticos mais avançados que se registraram no pensamento social produzido sobre a região, envolvendo uma reforma de padrões culturais, uma reforma agrária, uma reforma urbana e redefinição das relações entre Estado e sociedade, a partir da transição gradual do trabalho escravo para o trabalho livre e da modernização técnica da navegação, da construção das cidades com planejamento e do desenvolvimento da base agroindustrial existente.
João Daniel concebeu, segundo Pinto (2006), três ciclos no desenvolvimento regional. O primeiro foi o ciclo das drogas do sertão, baseado no extrativismo e que tinha base escravocrata. O segundo, foi o ciclo da
expansão da industrialização de matérias-primas regionais ou adaptadas à região, apoiadas em amplo projeto de reformas, que resultaria na definição de uma esfera pública, a partir sobretudo do projeto de urbanização que consistia na implantação de cidades com uma estrutura demográfica bem distribuída espacialmente. Essas cidades teriam espaços para feiras, mercado, oferta de serviços profissionais básicos, vale dizer, todos esses fatores combinados propiciariam a emergência e desenvolvimento de um espaço urbano capaz de assegurar o exercício da cidadania e do estabelecimento de uma cultura urbana moderna e próspera (PINTO, 2006, p. 149).
João Daniel entendia que, mantida a escravidão indígena, seria impossível estabelecer na Amazônia uma sociedade moderna e democrática. Aliás, advogava que a construção de uma sociedade desejável demandava a execução de uma reforma agrária que inibisse a formação de latifúndios e estimulasse o trabalho criativo, produtivo e assalariado; o fomento de um mercado regional pela criação de vilas e cidades; a modernização da navegação (PINTO, 2006). É de se notar que esse alvissareiro segundo ciclo foi derrotado pelo terceiro, o ciclo da política pombalina, que fatalmente o atropelou, com a camisa-de-força da obstrução das mudanças pela violência política.
Alexandre Rodrigues Ferreira inegavelmente é outro nome de vulto no século XVIII. Naturalista baiano de formação portuguesa, percorreu o Amazonas no período de 1783 a 1792 a serviço da coroa portuguesa. De suas viagens pela região resultou o livro Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, que é “uma tradução iluminista dos saberes locais, desde o conhecimento indígena até o dos representantes do poder colonial português e brasileiro” (PINTO, 2006, p. 169). Fez levantamento por quase dez anos na região, coletou testemunhos de indígenas, utilizando os métodos das ciências naturais. Seguindo a tradição etnocêntrica, apresenta o indígena mais como um elemento da zoologia que da humanidade, um desdobramento do capítulo dos mamíferos. Trabalhou incansavelmente em três frentes principais: reconhecer e avaliar o potencial econômico das terras que margeavam os grandes rios, descrever a situação dos aldeamentos indígenas (documentando seus usos e costumes) e inventariar meticulosamente a fauna e a flora.
Alexandre Ferreira não apenas descrevia minuciosamente tudo que julgava interessante. Além disso, desenhava objetos, árvores, animais, peixes e índios. Era a iconografia começando a ocupar também o cenário das observações dos naturalistas. Para Souza (2003, p. 82), depois de Alexandre Rodrigues Ferreira,
A Amazônia não será mais uma paisagem sem nome, ela será agora um complexo a serviço das deduções empíricas. Mas o que será classificar e promover deduções se um complexo? Será, evidentemente, aventurar-se nele, encontrar-se no meio de seus mistérios, atravessá-lo para reconhecer gentes e objetos que se tornarão familiares. Mas o cientista saberá que essa familiaridade será sempre aparente. Ferreira, por exemplo, nunca tinha visto aqueles índios, aquelas plantas, aqueles costumes, e as coisas descobertas naquele mundo novo deviam tornar-se peças, converterem-se em dados.
Olhando por esse ângulo, Souza (2003, p. 83) afirma que Alexandre Rodrigues Ferreira foi o “cientista do colonialismo” na Amazônia, cuja missão era adequar este mundo novo às necessidades do mercantilismo, ou seja, catalogá-lo, pois “um mundo catalogado, classificado, fixo e predeterminado deixa de assustar e provocar alucinações”. Foi assim que transportou para Portugal um verdadeiro arsenal de amostras da biodiversidade amazônica e deixou para a posteridade uma obra monumental sobre a região. Mas “esse precioso e monumental trabalho sofreria muitos imprevistos adversos”, como informa Souza (2009, p 184), como a destruição de boa parte do material por ocasião da invasão do país pelas tropas napoleônicas e a pilhagem feita pelo naturalista Saint-Hilaire, que usurpou outra parte considerável do inventário do brasileiro, apossando-se dela (SOUZA, 2009).
No século XIX nasce um novo ramo da ciência, um conjunto de saberes batizado com o nome geral de História Natural. Inclui Geografia e Astronomia, Botânica e Zoologia, Geologia e Mineralogia. A natureza, em seu conjunto, vai ser transformada em objeto de pesquisa. A investigação científica, que teve seus primeiros e ousados lances no século XVIII, sob a inspiração do Iluminismo, no século XIX passa a avançar em passos largos rumo a um verdadeiro surto de cientificismo. Nesse contexto, as terras brasileiras, assim como as de outras partes do mundo, são transformadas em laboratório, etapa empírica das pesquisas científicas (LEITE, 1996; FIGUEIREDO, 2010). E a região continua sendo visitada também por aventureiros de todas as partes do mundo. Entre esses, contam os nomes de:
a) Robert Avé-Lallemant, médico de origem alemã que empreendeu diversas viagens pelo sul e o norte do Brasil. Dessas viagens resultou o livro No Rio Amazonas (1859).
b) Louis e Elizabeth Agassiz, casal que realizou uma expedição na Amazônia em 1865-1866, e escreveram o livro Viagem ao Brasil.
c) Alfred Russel Wallace, zoólogo inglês, viajou para a Amazônia em 1848, junto com o amigo Henry Walter Bates, entomologista. Passou quatro anos na região, realizando pesquisas e coletando espécies, como animais, insetos e pássaros, para enviar à Inglaterra. Com base nas pesquisas que realizou, desenvolveu a teoria da evolução pela seleção natural, juntamente com Charles Darwin. Em 1853, escreveu Viagens pelos rios Amazonas e Negro;
d) Spix e Martius, naturalistas alemães, estiveram na Amazônia entre 1817 e 1820, às voltas com a tarefa de coletar materiais para desenvolver estudos zoológicos, botânicos e etnólogos. publicaram Viagem pelo Brasil (1817 – 1820).
Seringueiro, o “sísifo” amazônico – Limiar do século XX
Estudando o chamado ciclo da borracha, Loureiro (1985) cria a expressão “Período da exclusividade da borracha natural silvestre” para se referir à faixa de tempo que se estende do século XVIII (quando se descobriu o uso da borracha entre os índios omáguas) até 1907 (quando a borracha extraída dos seringais do Oriente passaram a competir pesadamente com a borracha da Amazônia). Com essa expressão, Loureiro (1985, p. 14) pretende mostrar que, do século XVIII até os primeiros anos do século XX, a região amazônica detinha a exclusividade no que diz respeito à produção da borracha natural silvestre, extraída do látex das seringueiras nativas da região. Ele divide esse longo período em três fases:
a) Fase das utilidades: compreende o período do século XVII até a descoberta do telefone, em 1876, e da transmissão da eletricidade (1873/1882). Essa fase corresponde ao uso da goma elástica na fabricação de utensílios como sondas, brinquedos, capas, galochas, borrachas de apagar, sacolas, entre outros. Foi impulsionada com a descoberta da vulcanização (1840) e a utilização do barco a vapor;
b) Fase dos fios condutores: estende-se do ano de 1876 a 1888, quando Dunlop redescobriu o pneumático para bicicletas. Além de continuar sendo utilizada para a fabricação de utensílios diversos, a goma elástica passou a ser usada no isolamento e cabeamento dos fios destinados à corrente elétrica e aos cabos telegráficos e telefônicos. Essas invenções ocasionaram um grande aumento no consumo de borracha, bem como o consequente estímulo à produção. Foi nessa fase que a região virou alvo do tráfico internacional e das grandes migrações nordestinas;
c) Fase dos pneumáticos: iniciada com a utilização da borracha para a fabricação de pneus de bicicleta, e que teve um impulso ainda maior a partir de 1895, quando passou a ser utilizada também na indústria automobilística pelos irmãos Michelin. Houve uma migração em massa de populações nordestinas para o interior do Amazonas e principalmente do Acre, fugindo da seca fustigante e se embrenhando na selva em busca da extração do látex.
Segundo Loureiro (1985, p. 14), nesta terceira fase
Situa-se o verdadeiro tempo áureo da borracha amazônica, sem concorrentes e com uma escassez constante, determinada pelo grande consumo de utilidades, fios e pneus, em que a borracha atingiu preços elevadíssimos, talvez mais altos que os de 1910, se considerarmos o poder aquisitivo da moeda. Os estados amazônicos, enriquecidos, puderam proceder o embelezamento de suas capitais e dotá-las de uma infra-estrutura urbana invejável, em nada inferior às congêneres europeias.
A fase da exclusividade amazônica na produção de borracha chegaria ao seu fim no ano de 1907,
mas a fase dos pneus continuaria a expandir-se, agora com a participação crescente da borracha natural plantada, oriunda de seringais racionalmente planejados, no Oriente, com mudas obtidas na Amazônia, a partir de 1875, predominantemente, definitivamente, após 1912” (LOUREIRO, 1985, p. 14).
A competição dos seringais asiáticos decretaria aos arrivistas da Amazônia a amargura de sucessivas crises que conduziriam a região à irreversível decadência, quando, a partir de 1913, a produção asiática suplantou de vez a brasileira.
Nesse período de apogeu (duas últimas décadas do século XIX e primeira década do século XX, aproximadamente), as cidades de Manaus e Belém sofreram um processo de “embelezamento” sem precedentes. Loureiro (1985, p. 14) lembra que “Manaus e Belém, muito cedo, tiveram luz e bondes elétricos, água encanada, esgotos, portos organizados, comércio florescente, centros de diversões, prédios públicos suntuosos, colocando-se na dianteira das cidades mais desenvolvidas do país”. Lima (2008, p. 25) lembra que o "ciclo da borracha" seria responsável pela montagem do “espetáculo amazônico”:
O surgimento de bancos e novas representações consulares; a criação da Capitania do Porto; a fundação de um cemitério particular para a colônia inglesa (registro da presença marcante do comércio britânico na área); a inauguração da colônia portuguesa em torno da Sociedade Beneficente; substituição do azeite de andiroba pelo de gás líquido (1854/1864), seguida da substituição do sistema de iluminação antigo pelo gás carbônico (1864/1896), etc. demonstravam a posição de Belém como centro econômico e financeiro da Amazônia. A demanda internacional pela goma elástica despertou o espírito cosmopolita da cidade, cujo estilo de vida cada vez mais demandava construções imponentes, importação cultural, vida boêmia, um espírito frenético, consumidor de novidades passageiras, numa palavra: luxo.
Tocantins (1982, p. 122) afirma que, no limiar do século XX, Manaus e Belém “já eram duas cidades dignas de figurar ao lado das melhores do Brasil, sem temer confrontos”. Eram cidades espantosamente fulgurantes e cosmopolitas. “Os estrangeiros que desembarcavam nos portos da Baía do Guajará e do rio Negro não regatearam palavras de louvor ao progresso dos mesmos, pela atividade febricitante de seu povo, pela beleza de seus edifícios e arte nos arranjos de suas praças e jardins”. Sentiam-se como se estivessem em cidades europeias, estando em plena selva amazônica.
Belém, como descreve Tocantins (1982), foi uma cidade que se transformou como num passe de mágica, tornando-se uma cidade próspera, onde se tinha o prazer de passear em ruas largas e limpas, apreciar passeios públicos bem projetados e admirar os prédios de requintados traços arquitetônicos.
Em relação a Manaus, Tocantins (1982) comenta que, apesar de ser menos populosa que Belém, era também uma cidade altamente cosmopolita. Contava com ruas espaçosas e bem alinhadas, fervilhantes de transeuntes vindos de vários pontos do mundo. Os edifícios, a exemplo do suntuoso e imponente Teatro Amazonas, eram elegantes e de rara beleza. Era resultado do sonho do seu jovem governador, Eduardo Ribeiro, em transformar a cidade em uma espécie de “Paris dos Trópicos”.
Mas esse decantado fausto alimentado pela borracha não passou, na verdade, de uma ilusão (DIAS, 1999). As cidades-sensação de Manaus e Belém foram cenários improvisados para o espetáculo do arrivismo europeu. Eram cidades cenário para as quais foram transplantadas miniaturas de cidades europeias, reproduzindo espaços, usos e costumes do Velho Mundo nos trópicos para o maior conforto de seus representantes endinheirados que circulavam pela região. Tanto que, em chegando o auge da crise, o espetáculo teve os seus lances finais e o cenário foi praticamente desmontado, restando para a posteridade apenas alguns estigmas do período.
Falando especificamente sobre a Manaus daqueles idos, Hatoum (1999, p. 11) comenta que conviviam no mesmo espaço duas cidades diferentes: uma era a Manaus das fotografias e dos cartões-postais, muito comentada e elogiada pelo seu embelezamento: “suas praças, seus monumentos, seus edifícios suntuosos, dotados de estilos superpostos, importados da Europa”; a outra era uma cidade que subsistia numa zona de sombra, “soterrada” pela grandiosidade do urbanismo: “trata-se da outra face da urbs. Uma face nada edificante da mesma fisionomia urbana: a Manaus dos excluídos. Ou seja, a dos pobres, miseráveis, imigrantes, enfermos, loucos”. É sobre essa dicotomia entre a Manaus Paris dos Trópicos e a Manaus-quase-aldeia (ou Manaus-porto-de-lenha) dividindo o espaço de uma mesma cidade que se pronuncia o rico estudo desenvolvido por Dias (1999), no sentido de mostrar que, para a expressiva maioria dos amazonenses, o alardeado fausto da borracha não passou de uma ilusão.
Enquanto o cais do porto, em seu esplendor, fervilhava de passantes e de embarcações em Manaus e Belém; enquanto as reuniões sociais, os encontros lítero-musicais, os cafés e os bailes se multiplicavam em clubes e eventos similares; enquanto as companhias líricas lotavam os esfuziantes teatros, no interior da floresta o silêncio envolvia os seringais, de onde saía o látex que sustentava aquele sistema extremamente perverso de expoliação humana. Forjava-se ali um verdadeiro submundo de estupidez, violências extremadas e tragédias humanas. Um sistema de escravização dos nordestinos que, após serem empurrados pela seca invencível em direção à Amazônia e arrastados pelos agenciadores inescrupulosos dos seringais, eram transformados em seringueiros, para sangrar pelo resto da vida enquanto sangravam as seringueiras. A esses seringueiros, isolados e solitários em suas estradas de seringueiras, cortando, colhendo e defumando o látex, coubera a tarefa de carregar nas costas aquele mundo de ostentação, sem participar em nada dos seus fulgores.
Alberto Rangel, no seu antológico livro de contos (ou seria um romance?) Inferno Verde (1917), usa a interessante imagem de Sísifo para representar a faina dos sertanejos nos seringais. Sísifo, na mitologia grega, era o mais astuto de todos os mortais, que enganou até mesmo a morte e, por causa de suas ofensas aos deuses, recebeu como castigo a condenação de, por toda a eternidade, empurrar sem descanso um grande rochedo de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Dessa forma, sua tarefa inglória consistia em subir e descer a vida inteira, empurrando a grande pedra, para nada. Por esse motivo, tarefas que envolvem esforços inúteis passaram a ser chamadas de "trabalhos de Sísifo", ou seja, trabalho inútil e sem esperança. Rangel vê o seringueiro como o “Sísifo amazônico”, às voltas com o seu sacrifício, que nada tem a ver com rochedo ou montanha, mas com seringueiras e látex, que materializavam a perpetuação de sua vida de escravidão e penúria.
Mas essa realidade era cuidadosamente silenciada pela crônica de então, ocupada com os cantares do fausto. Euclides, chegando à região, iria contribuir decisivamente para a quebra desse silêncio.
Euclides aportou em Manaus com uma missão: realizar o levantamento cartográfico das cabeceiras do rio Purus, numa região de acirrados conflitos de fronteira, envolvendo caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros. Tomou conhecimento, in loco, do que acontecia nos seringais, e, não se contendo com os flagrantes de injustiça e perversidade que testemunhou, jogou tudo isso no ar. Evidentemente, a Euclides não interessaram apenas as questões ligadas aos conflitos envolvendo limites na Amazônia. À semelhança do que fez em Os Sertões, ele olhou com muita atenção para a terra, para o homem e para a luta do homem com a terra e do homem com o homem (enfrentamentos de fronteira e conflitos de trabalho).
Em seu preparo para imergir no mundo amazônico, Euclides havia consultado os escritos dos cronistas, dos aventureiros, dos cientistas (numa palavra, dos viajantes – na grande maioria estrangeiros) a respeito da região. Tomara contato com textos marcados pelo assombro (infernismo), pelo deslumbramento (edenismo) e pela geografia do exótico. Essa visão de um mundo fantástico e maravilhoso instalado na região permeava até os textos pretensamente científicos que pretenderam decifrar o espaço amazônico.
Baseando-se nas informações levantadas por esses textos fundadores de invenção da Amazônia (GONDIM, 1994), Euclides produz a sua própria visão da região, colocando o homem no centro de tudo e fugindo, assim, do mero geografismo repetidamente cultivado em textos anteriores. Pode-se dizer que ele lançou as luzes da metáfora sobre as “zonas de sombra” que impediam o olhar de captar a Amazônia em imagens mais próximas da realidade (a despeito de ele também, muitas vezes, afastar-se sensivelmente da realidade). Projetou escreveu um livro revelador sobre a região, para o qual daria o título de “Paraíso perdido”. Não chegou a concluir o projeto por ter morrido prematuramente, assassinado pelo amante de sua esposa. Mas os textos que escreveu sobre a Amazônia – que possivelmente fariam parte do livro planejado – foram organizados postumamente em um outro livro, intitulado de “À margem da história”.
Depois de Euclides, inúmeros outros escritores passaram a expor para o mundo as mazelas escondidas nos recônditos dos seringais, inaugurando-se aí uma caudalosa tradição de narrativas ficcionais sobre o ciclo da borracha.
Considerações finais
Não há como negar que, desde o século XVI, a Amazônia vem sendo “inventada” e “reinventada” semanticamente por meio de textos que sobre ela foram e continuam sendo produzidos. Todavia, é nos textos inaugurais que se encontram as matrizes de todos os discursos que apenas, de certa forma, reproduzem os dizeres já articulados naqueles textos fundadores de uma ideia de Amazônia. Para se entender de verdade essa região tão peculiar, é imprescindível uma imersão nesses textos – de Carvajal a Euclides –, uma vez que há diversas zonas de sombra na História que cada um deles pode ajudar a iluminar. E sobre esses discursos, mais e mais discursos outros continuam e continuarão a ser forjados para, de alguma forma, representar essa porção tão fascinante e intrigante do Planeta.
Referências
BUENO, Magali Franco. O Imaginário brasileiro sobre a Amazônia: uma leitura por meio dos discursos dos viajantes, do Estado, dos livros didáticos de geografia e da mídia impressa. USP, 2002 (Dissertação de Mestrado).
_______.Natureza como representação da Amazônia. Revista Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: UERJ, n. 23, jan./jun. de 2008.
DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999.
FIGUEIREDO, Silvio Lima. Viagens & viajantes. São Paulo: Annablume, 2010.
FREIRE, José Ribamar Bessa (org.). A Amazônia colonial. 4. ed. rev. E ampl. Manaus: Metro Cúbico, 1991.
GARCIA, Etelvina. Amazonas, notícias da história: período colonial. Manaus: Norma Editora, 2005.
GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
GRIMAL, Pierre. A mitologia grega. 2. ed. Apartado: Europa-América, 1989.
HATOUM, Milton. Manaus: o impasse da modernidade. In: DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Valer, 1999.
______. Máscaras da civilização. Estadão de Hoje caderno 2, 23 de agosto de 2009. Disponível em: estadao.com.br/noticias/arteelazer,mascaras-da-civilizacao-por-milton-hatoum. Acesso em 29.08.2009.
KRÜGER, Marcos Frederico. Introdução à poesia no Amazonas, com apresentação de autores e textos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1982. (dissertação de Mestrado)
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LIMA, Eli Napoleão de. Literatura como fonte da História – Euclides da Cunha e a Amazônia. In: COSTA, Luiz Flávio de Carvalho et al (orgs). Mundo Rural Brasileiro, ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica, RJ: EDUR, 2008. p.11/42.
LOUREIRO, Antonio José Souto. A Grande crise. Manaus: T Loureiro & Cia, 1985.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da Literatura Amazonense. 2. ed. Manaus: EDUA, 1998.
PINTO, Renan Freitas. Viagem das idéias. Manaus: Valer/Prefeitura de Manaus, 2006.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998.
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. Manaus: Valer, 2003.
______. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.
TOCANTINS, Leandro. Amazônia: natureza, homem e tempo – uma planificação ecológica. 2. ed. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1982.
______. O Rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia. 9. Ed. rev. Manaus: Valer; Governo do Estado, 2000.
UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens míticas: A Amazônia no imaginário europeu do século XVI. In: PRIORE, Mary Del & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Os Senhores dos rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.