A Serpente Localizando a Vítima
Quanto mais lemos a respeito da Saga Cangaço, onde encontramos diversos relatos, descobrimos acontecimentos mais que marcantes, que travestem-se de marcos significantes na vida e na morte do maior cangaceiro caudilho que já existiu no nordeste brasileiro. Comandante de forças irregulares que lhe eram fiéis e que possuía nessa força para-militar guerrilheira, sua sobrevivência.
Foto da Revista A Noite Ilustrada 09.08.1938
Começou a decair seu semblante, quando depois de quase duas décadas combatendo forças legais nas caatingas, passou a relevar suas desconfianças e estratégias, isso aliado à sua auto-confiança, o que gera descaso, também ao cansaço e seu potencial bélico ultrapassado, perdeu a última batalha.
Detalhes Foto da Revista A Noite Ilustrada 09.08.1938
Em sua obra-testemunho "Lampião, o Último Cangaceiro", 1966. pp. 239-242, Joaquim Góis lembra-se muitos anos depois, de sua chegada ao local do drama e pouco tempo depois da batalha.
Fora encarregado para identificar o que restara dos cadáveres decapitados dos cangaceiros.
Góis evoca o horror que lhe inspirou o espetáculo de Angico: "Um vendaval parecia haver destroçado Angicos. Lascas de pedras, cápsulas de balas, cartas de baralho, peças de vestuários, páginas de livros, escritas em latim, o que nos deixou admirados, lenços e tantos outros pertences do uso dos cangaceiros. Tudo do revolvido, tão escalavrado como se uma chuva de raios tivesse fulminado aquele pedaço solitário do São Francisco. Corpos sem cabeças, espalhados em várias posições, poças
de sangue coalhado, como se as veias de granito das pedras tivessem se rompido numa hemorragia em borbotões. Pedro de Cândida inicia a identificação fúnebre, o reconhecimento de cada um dos cadáveres. Lívido, o medo ascendendo-lhe nas pupilas a covardia, assustado, nervoso. incontrolado nos gestos, o coiteiro era um feixe de fibras prestes a se romperem numa crise de pranto ou de remorso. O menor ruido o espantava na rapidez reflexa dos arrancos de quem quer fugir de um fantasma invisível, mas que existe na sua imaginação. Aquele é Lampião, ou melhor é a sobra do que foi a majestade do Rei das caatingas. Nu da cintura para baixo, as pernas picadas pelos urubus, a pele era de um roxo negro e pelos cantos das unhas escorria um liquido viscoso da cor de cobre. O tronco sem cabeça, vestido numa túnica de mescla azul com três ligas de sutache branco nas ombreiras. Três galões que o ridículo decreto do maior coiteiro de batina deste país com função impune em Juazeiro do Ceará, o promoveu ao posto de capitão do crime e do roubo. Ali estava ele enrodilhado na sua própria carniça, exposta ao tempo como uma gangrena na infecção da paisagem. O dedo trêmulo de Pedro de Cândida o espeta num reconhecimento pronto:
— Este é o Capitão.
A serpente localizando a vítima que mordeu.
Joaquim Góis - Lampião, o Último Cangaceiro", 1966. pp. 239-242
Feito o reconhecimento dos cadáveres, o médico-legista que acompanhava a expedição ordenou que se abrisse uma fossa para enterrar o que restava dos corpos decapitados de Lampião, Maria Bonita e três outros dos seus companheiros. Os demais foram deixados insepultos, à mercê dos urubus e de outras aves de rapina... como fundo do quadro trágico, na moldura de pedras do grotão fatídico. Ás tontas, enjoados, deixamos o palco enlameado de podridão em que ficaram para nunca mais sair Virgulino Ferreira e seus comparsas.
Um fato esporádico merece registro pelo sentido do nada a que se reduz o homem quando arrebatado pela morte. Em cima do montão fofo de terra que cobria os cadáveres, um dos soldados escreveu com a ponta do dedo, na terra ensanguentada, este epitáfio cruelmente verdadeiro:
"Aqui jaz Virgulino Ferreira da Silva Lampião o ultimo Cangaceiro".
Uma legenda de morte que o vento varreu e espalhou no vazio da caatinga, no nada da vida, na contingência do tempo e na passagem da história por uma das pedreiras das margens do velho São Francisco.
"Que os afeiçoados ao cangaço não esqueçam a lição brutal de Angicos." - Joaquim Góis
Em seu livro Lampião, senhor do sertão : vidas e mortes de um cangaceiro, Elise Grunspan-Jasmin citando a reportagem de Melchiades da Rocha, sobre a batalha de Angico para a revista A Noite Ilustrada e que tinha chegado ao local pouco depois de Joaquim Góis, achava que "os cadáveres decapitados de Lampião e Maria Bonita foram atados um ao outro em Angico para expressar que o amor os unira e reunira até na morte e que era preciso levar isso em conta. Doravante, Lampião e Maria Bonita tornavam-se heróis lendários, entrando definitivamente no imaginário coletivo: Foi-nos difícil descobrir os corpos de Virgulino Ferreira e Maria Bonita. Onde estarão eles? Perguntei ao Tenente Ferreira de Melo, oficial que nos acompanhava e nos prestara excelente e inestimável serviço. Amável, solícito, o bravo oficial da Policia alagoana esforçou-se quanto pôde por atender á nossa curiosidade. Conhecedor que era do local, pois foi a sua volante a que primeiro ali penetrou na manhã do dia 28, o Tenente Ferreira, entretanto, só após investigar conosco o leito do riacho, desencantou os cadáveres de Lampião e Maria Déa. Ambos estavam semi-cobertos de uma ligeira camada de areia. E que, antes, alguém que nos precedera — soubemos depois por um morador da vizinhança que haviam estado lá autoridades sergipanas — compadecido do trágico destino do terror das catingas, pusera, em gesto louvável e piedoso, um pouco de areia sobre os cadáveres do "Rei do Cangaço" e de sua amante, tendo tido também a lembrança de juntar-lhes os corpos. Unidos na vida e na morte como estiveram era justo que depois desta, unidos continuassem. Por bastante tempo estivemos contemplando em silêncio os restos mortais daquele bandoleiro que durante tantos anos trouxera o sertão em polvorosa. Dormia ele ali, ao lado de sua enfeitiçada companheira. o sono eterno."
Melchiades da Rocha - Bandoleiros das Caatingas - 1940 pg 89