LIVROS & LIVROS

Livros & livros

Uma biblioteca, mesmo que seja pública, é um universo particular. Isso porque se vincula a leituras eletivas, a uma subjetividade que é capturada pelos olhos de um leitor ansioso por descobertas. Como diz Alberto Manguel em sua mais recente obra “Encaixotando a minha biblioteca – uma elegia e dez digressões”: minhas bibliotecas foram uma espécie de autobiografia em múltiplas camadas, todos os livros sustentando o momento em que os li pela primeira vez.

Diante do que li, não consigo mais mensurar quais são estas obras que me sustentam, que me tornaram o ser humano que sou e ainda posso ser. Entendo que, mesmo as leituras que não me marcaram tanto, têm sua importância. Aprendi com elas a como não escrever e no que não pensar. O acesso aos livros se dá na materialidade física e também na virtual. Embora eu possua aquele famoso leitor de e-books e goste dele bastante, prefiro ler os impressos. E estes estão cada vez mais atraentes, com capas duras, lombadas coloridas, fortunas críticas inseridas, tradutores de excelência e um acabamento impecável. Mas há um porém: começa-me a faltar espaço. E os livros amontoados estão me dando angústia. O sentimento que me ocorre por, infelizmente, não ter tempo de usufruir de todos que hoje coleciono e daqueles que estão por vir. Talvez seja um indício da maturidade: a preferência à qualidade em detrimento da quantidade.

Por isso, estou praticando o desapego à medida do possível. Leio um livro e penso: pretendo relê-lo? É uma obra que precisarei consultar muitas vezes? Farei algum trabalho com ele? Tem valor sentimental? Se as respostas forem negativas, então repasso com tranquilidade. Os clássicos e a maioria das gramáticas ficam comigo. E, embora eu faça esse exercício de desapego, evidentemente que tenho ciúme como um namorado tem duma namorada. Muitas vezes, não quero nem que olhem para o exemplar do qual disponho. Sou aquele tipo de pessoa que diz “prefiro dar dois livros a emprestar um”. Porque sabemos que, dificilmente, o indivíduo para o qual emprestaremos o volume terá o mesmo zelo (ou mais) que temos.

Por vezes, a leitura integral dos fascículos é algo secundário. O escritor Umberto Eco era detinha mais de 50 mil livros. Ao ser questionado se havia lido todas aquelas obras, respondeu que não, mas que o importante era ter todo aquele conhecimento à sua disposição. Sim, e sabemos que há livros que ficam conosco para consultas, a exemplo de algumas gramáticas e dicionários. Um bom dicionário não pode faltar na casa de um professor de Língua Portuguesa, de um escritor: dos tradicionais, aos analógicos, passando pelos de sinônimos. Afinal, antes de se aventurar a escrever, um escritor deve ser, sobretudo um leitor. É preciso aprender a interpretar situações, cenários e pessoas. Como criar tramas sem conhecer os dramas da psique humana?

Com o tempo, o espírito glutão dos livros cessa um pouco. Não necessariamente a vontade de pesquisar, mas o anseio desenfreado. Abdica-se da extensão, ganha-se na profundidade. Tristão de Ataíde, em seu livro “Idade, Sexo e Tempo” trata acerca disso: “Tornamo-nos então muito mais difíceis de contentar. Já não queremos livros pelo livro, e sim o livro pelo seu conteúdo, pelo que de ‘bom’ ou de ‘belo’ ou de ‘útil’ nos possa trazer. Aguça-se em nós o espírito crítico e facilmente nos impacientamos, como na adolescência, mas por outros motivos”. Sim, todas as fases têm as suas angústias, o seu peso. Quando jovem, a busca pela afirmação. Quando velho, a espera por uma trégua. O não querer dizer mais nada. O descanso e a liberdade de ser.

E alguns livros serão melhor lidos na senilidade, momento em que o espírito se prepara para receber melhor algumas ideias e vivências. Ainda que seja uma revisita, é importante frisar que não se lê duas vezes o mesmo livro. A obra, embora seja a mesma, o leitor já não o é – parafraseando Heráclito. A aventura da palavra proporciona viver muitas vidas em uma só. Não ser amigo dos livros é perder uma grande oportunidade de dialogar com diversas histórias e de conhecer a si mesmo, condição essencial do ser pessoa.

Texto publicado em A UNIÃO em 11/03/2022