NARRATIVAS QUE TRADUZEM AS VOZES DA CIDADE
"A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu
A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu..."
(Tote Gira)
1 INTRODUÇÃO
O canto dessa cidade é meu diz a crônica – narrativas que traduzem as vozes da cidade. Falar da crônica é pensar um gênero literário que se põe em diálogo constante com os assuntos que emanam da cidade. Neste ensaio, pois, falaremos da crônica, enquanto gênero literário que percebe certas sutilezas do cotidiano urbanístico e discutiremos os temas apresentados por elas. Por extensão, apresentaremos, também, alguns cronistas, uma vez que, em seus textos de indiscutível qualidade estética, revelam sentimentos, problemas e conjunturas do cotidiano citadino de São Luís, ou seja, falaremos dos cronistas como intérpretes dessa cidade.
São Luís, como qualquer outra cidade, cresce com velocidade assustadora e, por isso, se percebe mergulhada no caos que o sistema capitalista produz. O acelerado processo desenvolvimentista causa degradação ambiental e crescimento desordenado. Ademais, esse processo traz problemas como a violência, o alto índice de acidentes, a ineficiência do transporte público, poluição do meio ambiente, o desaparecimento dos rios, a contaminação das praias entre outros. Tal quadro gera fome, miséria e desemprego, alheando-a da dimensão humana que ainda lhe resta.
Em a Imagem da Cidade, Kevin Lynch (1998) lembra que “contemplar as cidades pode ser extremamente agradável, por mais vulgar que a passagem possa vir a ser”. Essa ideia parece pertinente, na medida em que diversos e diferentes temas surgem na literatura, a partir de uma profunda relação do autor com a cidade que o acolhe e o convida a espreitá-la. São Luís, ao atravessar o tempo e as mudanças, permanece com seus traços distintivos, sinalizando que seu caráter não reside em seu aspecto físico somente.
Ao reunir vários mundos e tempos em seus casarões, becos, praças e outros locais da Cidade Histórica que encanta pelas curvas sinuosas e ladeiras, São Luís se oferece ao escritor nascido, criado ou de passagem, como fonte de inspiração. Por isso, é longa a lista de poetas que cantam a cidade, incluindo os não maranhenses, como José Chagas que fez de São Luís seu chão de escritura e motivo poético. Nos anos cinquenta, quando esse paraibano aqui chegou encantou-se pela cidade, transformando-a em musa inspiradora: “a cidade que se fez minha, / como também me fiz dela, / por seu porte de rainha, / por ser cultural e bela. / Cantarei a vida inteira, / mas com alma e coração/esta terra sobranceira, toda glorificação” (in Caderno Cultural, JM 8/12/2012).
Esta capital – Ilha do Amor para o seu povo, Jamaica Brasileira – para os que gostam do reggae, um ritmo que aqui faz festa. Esse título de Capital do reggae, entretanto, não é unanimemente aceito. Para seus artistas, ela é a Ilha Magnética, palco de muita cultura e de artes plurais. Das etnias que povoaram a cidade, algumas heranças se destacam: dos portugueses, além da língua, os festejos juninos, os folguedos de bumba meu boi; dos índios, partícipes no processo de colonização, o uso da rede para o descanso do corpo, o pirão da farinha de mandioca e o beiju. Dos negros, cuja força foi de grande contribuição para construir as cidades, a cidade herdou, inumeráveis bens culturais, essencialmente, as religiões de matrizes africanas: brasileiras, como a umbanda, afro-brasileiras, como o candomblé de caboclo, a afrodescendente, expressões embaladas pelos tambores de crioula e de mina.
Esses sons foram transformados por Josué Montello em Os tambores de São Luís. Buscando na cidade, o leitmotiv para a maioria dos seus escritos – ele romanceia ruas, sobrados, cais, igrejas e praças, narrando sobre o cotidiano maranhense de sua história e de sua gente. Segundo Santos Neto (2007, p. 127), apesar de comedido, “Montello eventualmente se derrama se o assunto é São Luís, tema obsessivo de uma boa parte de seus livros. Paixão comparável, talvez, só à que revela, também, por Alcântara”.
Outro ilustre filho dessa Cidade dos Azulejos, também a eternizou em poesia: “ó minha cidade/ deixa-me viver/ que eu quero aprender/ tua poesia/ sol e maresia/ lendas e mistérios/ luar das serestas/ e o azul dos teus dias”. Esse poema de Bandeira Tribuzi se tornou, oficialmente, o hino da cidade de São Luís, cuja história oficial começa em 1612, na França. Do porto de Cancale a expedição chefiada por Daniel de La Touche, o Senhor de La Ravardière, partiu rumo ao Brasil e teve São Luís como chegada, na tentativa de aqui estabelecer a França Equinocial.
O nosso poeta, Ferreira Gullar (2010, p. 99) diz que “o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade”. Apesar de distante de sua terra, motivos não lhe faltaram para dizer da saudade que o exílio arrancava de sua alma poética. A partir de ruas e becos, ele gestou o Poema Sujo, onde além de São Luís, ele se faz tema. Falando de tábuas, formigas, casarios, botecos e ruas de sua meninice, Gullar fala de si, da condição humana e de sua terra natal. Para Santos Neto (2007, p. 136), ele “parte do homem mesmo, deste ‘ser que responde’ a situações historicamente dadas, parte de suas experiências vitais, das contradições sociais que o determinam e são por ele determinadas”.
Além desses já referidos, outros fizeram e fazem, ainda, um desenho poético geográfico de São Luís: Bernardo de Almeida, Nauro Machado, Joaquim Itapary, Ivan Sarney, Azevedo Neto etc. Ao elegeram a crônica como literatura que dialoga com a cidade, esses cronistas tornaram-se confidentes das inquietações que emanam dela e disferem, também, suas críticas sobre as problemáticas urbanas. Logo, essas crônicas não falam somente sobre São Luís física, ruas e casarões do centro histórico, mas de sua humanidade – patrimônio caro, não somente pela beleza da arquitetura colonial, que guarda, ainda, o cheiro nostálgico de um passado, não tão glorioso de sua colonização, das muitas histórias e lutas de seu povo.
Para Joaquim Haickel (2012), São Luís é “um lugar... Três nomes... Uma cidade nascida em meio a flechas e chumbo, pedras e cal, papéis e tintas, lutas e sonhos”. As crônicas que elencam o ensaio falam dessas lutas, sonhos e ideais da cidade, logo, elas se alimentam da urbe. Neste sentido, questionamos: que função as crônicas assumem para a cidade de São Luís? Enquanto literatura, servem como vetores de reflexão, de ação social e de intervenção? Em que medida os autores e suas crônicas se aproximam e se distanciam da cidade? Como eles discutem as questões que a cidade lhes apresenta? Essas narrativas lançarão um foco de luz sobre a cidade, enquanto um corpo orgânico? Nelas, o que observaremos?
Algumas variantes “determinadas” pelo espaço/lugar literário, a um só tempo, social, geográfico e histórico, emanam perguntas que não querem calar. Como entender a tensão entre a representação que os cronistas fazem do lugar e ao mesmo tempo o lugar que eles representam? Talvez, a senha para compreender a noção de lugar, seja pela representação mental do concreto, metáfora que se mostra fundamental, não sentimentalmente somente, mas pela linguagem literária, essencialmente. À luz dessa representação, o tripé – homem, tempo, espaço serão contemplados.
Logo, não propomos aqui um olhar visando à estilística ou a forma textual, mas a função histórica e social da crônica, enquanto narrativas que traduzem as vozes urbanas. Nesse sentido, apresentaremos o cronista como um narrador confidente das coisas da cidade. O que se objetiva, pois, é apresentar como a cidade se faz presente na crônica – por excelência, uma narrativa urbana. Para compreender essas relações contextualizadas no século XX, nos auxiliarão, além dos próprios cronistas, alguns teóricos e estudiosos do gênero, portanto, uma abordagem puramente bibliográfica, ancorada no depoimento de críticos, estudiosos e teóricos da literatura.
2 A CRÔNICA É O LUGAR DESSAS VOZES
Henri Lefebvre, em O Direito à cidade, defende que durante muito tempo e por longos anos, a Terra foi o grande laboratório do homem. Diz ele (1991, p. 2): “há pouco tempo é que a cidade assumiu esse papel. O fenômeno urbano manifesta, hoje, sua enormidade desconcertante para a reflexão teórica, para a ação prática e mesmo para a imaginação”. Nessa concepção, a cidade, enquanto finalidade e sentido para o homem, ela se forma ao mesmo tempo em que se apresenta e se procura em narrativas do dia a dia: as crônicas. Lefebvre acrescenta que: “a arte, reconhecendo suas condições iniciais, dirige-se para um novo destino, o de servir à sociedade urbana e à vida cotidiana nessa sociedade” (id., ibid.)
Nesse sentido, arte, ciência e sociedade se solidarizam e mantêm estreitas relações. Cabe à literatura, enquanto instância da linguagem transgressora, observar, expressar e comunicar o que lhe dita o contexto, fonte na qual ela e os seus artesãos se alimentam. Desse modo, a literatura se “sujeita” às mudanças e variáveis espaciotemporais, logo, os fragmentos das crônicas aqui eleitas perfazem um painel de vivências, episódios e fatos narrados nos idos anos do século XX e início do século XXI. São, pois, recortes que falam da cidade, sob o olhar atento do cronista que capta as vozes cotidianas que a cidade emite e transforma-as em narrativas.
O fazer artístico questiona as instituições, nas quais o escritor se debate no alcance de seus discursos e manifestos de sua produtividade. Tanto os estilos quanto os gêneros devem ser entendidos como uma consciência literária que, de algum modo, revela a história do ser humano em diálogo com o tempo e o seu lugar no mundo. Assim, as crônicas se constituem composições literárias, quando se dão à leitura, espaço onde se verificam as tensões dos círculos de produção e reprodução. Manuel Castro diz que: sob essa perspectiva, cremos que alguma luz pode ser lançada sobre o entendimento da crônica. Como nem toda ficção é literária, também nem toda crônica é literária; sua literariedade pode ser explicada como um acontecimento (CASTRO, 1992, p.139)
Foi exatamente assim que aconteceu com a crônica-folhetim: ela era nota de rodapé nos jornais impressos do século XIX e falava sobre vários assuntos, transformando-os em acontecimentos. Essa crônica não romance abrigava-se no jornal e assumia funções plurais: entretenimento e assuntos que iam da política ao teatro, eventos sociais, esportivos, acontecimentos do dia a dia e reflexões do autor. Enquanto literatura, ela consolidou-se nesse século, e, a partir de então, tornou-se leitura obrigatória nos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro, quando a capital brasileira precisou atender aos modelos editados por Paris, Berlim e Viena, sofrendo pressões para se modernizar. A crônica serviu a esses tempos e, também, se modernizou.
Ainda hoje, as cidades inspiram essa arte que alimenta muitos escritores e leitores. Para Beatriz Rezende (1995, p. 35), “não resta dúvida de que a crônica é modalidade de literatura urbana, e, no caso brasileiro, esta particularidade é do Rio, onde o gênero nasceu, cresceu e se fixou”. Em diálogo constante e direto, a crônica aborda ficção, política e sociedade, deitando um olhar crítico, essencialmente, sobre a vida da cidade. Como literatura, ela é um texto curto, simples e poético que capta o instante, por isso se diferencia da História que se vale de eventos complexos. Machado de Assis (1990, p.176) assim expressa: “nessa simplicidade posso achar explicações fáceis e naturais, porque a história tem outra profundeza, não se contenta de coisas próximas e simples”.
Lembrando Lígia Saramago (2008), a ideia de espaço pode ser compreendida como espacialidade do mundo, atrelada ao que há de imediato e utilitário na existência humana – o narrar. Nessa concepção, expressa Walter Benjamin (1994, p. 197): “o cronista que se põe a contar os acontecimentos sem distinguir pequenos e grandes presta tributo à verdade de que nada do que alguma vez tenha acontecido pode ser considerado perdido para a história”. É dele a seguinte afirmação: a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história (BENJAMIN, 1994, p. 209)
Nessa teia significativa, questionamos: de que modo compreender essa literatura sem discutir que o ser literário se faz nesse espaço? Nesse sentido, o saber deve andar na direção e na prática de um o direito – o direito à cidade, isto é, à vida urbana, a um só tempo, condição humanista e democrática. Nas palavras de Saramago (2008, p. 45): “a ideia de espaço – sempre é compreendida como espacialidade do mundo – e está atrelada ao que há de mais imediato e utilitário na existência, ou seja, aos objetos que a tornam ‘perceptível’ como localidade familiar e habitável”. Essa afirmação nos leva a pensar que os cronistas percebem e habitam São Luís – lugar de existência, não só humana, mas poética. Neste sentido, à voz dos cronistas, somam-se outras, bem como a de alguns historiadores, como Domingos Vieira Filho que estuda a São Luís física e histórica, essencialmente. Na introdução de Breve história das ruas e praças de São Luís, ele informa.
Embora a cidade tenha uma história que emociona, e seja celebrada por seus poetas em versos tão doces, formosa não só pelos sobrados de mirantes graciosos alteando-se para o céu e de soberbos azulejos portugueses, belgas, alemães e franceses de Desvres, Calais, como pela irreverência e espírito de seus habitantes, esse burgo nobre não teve ainda quem lhe historiasse detidamente (VIEIRA FILHO, 1971, p. 9).
O historiador reclama a falta de uma história local, as dificuldades de um pesquisador e às omissões das quais a cidade tem sido vitimada, apesar de suas tantas histórias de lutas. Atualmente, ainda que discursos eufóricos falem de uma nova São Luís, a recuperação de casarios da Cidade Histórica ficou pelo caminho. Em decorrência do acelerado crescimento, São Luís experimenta uma expansão jamais pensada, em contrapartida, seu centro histórico experimenta abandono e degradação. É Rogério Lima quem fala
da impossibilidade de apreender a cidade na sua totalidade e com um único centro, pois já não há mais cidade com um único centro, um centro que representava um lugar geográfico específico, marcado por monumentos, cruzamento de certas ruas e avenidas, casas de espetáculos (teatros, cinemas), restaurantes, ruas de pedestres. (LIMA; FERNANDES, 2000, p.15)
A cidade de São Luís com o seu centro histórico, seus casarões de traços portugueses, fachadas de azulejos e calçadas de pedras de cantaria dizem do seu passado. Esse conjunto arquitetônico, pela sua riqueza histórica e cultural desperta interesses, curiosidades e conquistou da UNESCO, o título de Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1997. Por conta desse evento, diz Lourdes Lacroix (2012, p. 13): “a cidade ver-se-ia, a partir de então, na emergência de combinar conservação do passado e construção do futuro”. O centro histórico de São Luís é um legado que melhor ajudaria na construção e manutenção da história presente e futura da cidade, mas, conforme José Chagas (1998, p. 160), “a cidade foi possuída/ pelo tempo/ está grávida/ de seu passado/ e dependendo de nós/ poderá parir um demônio/ ou um anjo”.
Esse desabafo poético aponta um paradoxal caminho: o fruto gestado pode ser diabólico ou divino, e, indubitavelmente, nos impele à reflexão: São Luís ostenta, atualmente, e com certa velocidade, novas tramas em sua arquitetura e engenharia que a levarão para onde? Chagas reclama que a Cidade nova suplanta o patrimônio que justifica a história de São Luís e sua inserção no mundo cultural. A matéria base, portanto, não é literária somente, mas social, histórica e geográfica, pois ao falar da cidade, o cronista a fragmenta e constrói espécies de mapas poéticos. Estes carregam o desejo de compreender as tensões retratadas nessas narrativas – lugar em que os narradores constroem seu lugar poético. Para Rogério Lima, os narradores da cidade vivem em constante tensão com o espaço narrado, algumas vezes, chegam mesmo a não compreender o que se passa ao seu lado, pois as transformações são de tal forma vertiginosas, velozes e brutais que mal há tempo para as acompanhar. (LIMA; FERNANDES, 2000, p.15)
Sobre a cidade de São Luís pesam mais de quatrocentos anos. Em face disso, questionamos: o passado histórico colonial de São Luís tem sido de fato, um patrimônio de cultura para a humanidade, para os maranhenses? Parece que não. Em toda a extensão do centro histórico, seus centenários sobrados contam sobre tempos gloriosos, mas são esquecidos e abandonados, traduzindo a decadência da beleza destroçada pelo tempo e pelo homem. Diz Calvino que: a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das suas ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 2002, p. 15)
Calvino lembra que a cidade é feita das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado. Pois bem. São Luís implora dos maranhenses que não a deixe à margem de assistência e cuidados. Nesse sentido, Chagas atribui ao homem, não só o título de “roedor humano”, mas, culpa-o pelo abandono e desamparo à cidade e ao seu passado. “Aqui o tempo é a ratoeira/ que os ratos desarmaram/e atrai agora o homem/ roedor maior de pedras e glórias/ e que não ingere senão/ o raro veneno do seu suicídio” (2002, p. 133). Essas narrativas poéticas são nascidas das pedras, dos azulejos, dos mirantes dos sobrados, dos nomes de ruas, das praças, das igrejas, das pontes, das praias, dos espaços históricos. Elas levantam sua voz em favor de uma cidade decadente e ameaçada de extinção.
Sobre esse tema, também, A Litania da velha, de Arlete Nogueira reza, conforme expressa Nelly Novaes, ao prefaciar o texto: “o poema todo é uma ‘ferida aberta’, é uma ladainha profana que, em lugar de louvar a Deus, à Virgem ou aos Santos, segue, passo a passo (como os passos da Cruz na Via Crucis) a velha mendiga em sua peregrinação diária pela cidade corroída pelo tempo e pelo descaso dos homens” (In NOGUEIRA DA CRUZ, 1999, p. 5). Real e metaforicamente abandonada, a senhora do poema é a “velha cidade histórica” que igualmente abandonada, sofre as mazelas deixadas pelo progresso, pelo capital inescrupuloso e pelas mãos do homem. Desse descaso e abandono, também fala Jock Dean, em matéria publicada no jornal O Estado do Maranhão.
Aumenta a preocupação da Defesa Civil Municipal com os casarões do Centro Histórico da capital, pois a maioria está abandonada e corre o risco de desabamento. Um levantamento da Defesa Civil identificou dez imóveis com alto risco de desabamento. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em São Luís 90% dos imóveis pertencem a proprietários particulares que não investem na conservação dos prédios. Atualmente o órgão realiza obras emergenciais em 40 casarões (19/02/2013)
A cidade que celebrou, entre discursos e mega shows, seus quatro séculos vê desmoronar seus edifícios arruinados pelos reveses do tempo e, por que não dizer, do homem. Como feridas, alguns deles foram feiamente remendados por escuros tampões de argamassa e quase nada lembram o que foram. O conjunto arquitetônico da Praça João Lisboa – Largo do Carmo onde havia fontes, praças, bares e casarões que falavam da Atenas Brasileira, hoje, existem apenas em fotografias.
Sobre a situação de abandono e de queda desse patrimônio histórico-arquitetônico, Itapary (2000, p.138) fala: “cada um que tomba leva consigo um pouco da nossa alma, corta uma irreparável fatia da nossa memória, desfalca a nossa personalidade”. Esse desfalque, essas perdas se fazem sentir nas palavras de vários cronistas e nestas de Ubiratan Teixeira ao lamentar que houvesse ali, na Praça João Lisboa – Largo do Carmo, o mais famoso espaço de encontros entre intelectuais e poetas – O Moto Bar que de repente desapareceu.
Hoje, o sobrado que abrigava, nos baixos, aquele estabelecimento impecável no zelo, na ordem e no trato, em frente à Igreja dos Capuchinhos do Carmo, no Largo do mesmo nome (...) a enfear a paisagem do centro da cidade e a machucar de saudades todos que ali viveram momentos inesquecíveis de alegria, porque, afinal de contas o Moto Bar não era somente e apenas o bar charmoso e europeu de São Luís, por toda a segunda metade do século passado, mas, sobretudo, um ponto de referência. (O Estado do Maranhão, 18/01/2013)
São muitos os textos que versam sobre a cidade, costumes, hábitos e lutas, essencialmente da Cidade Velha, frente ao seu atual estado de abandono. Alguns desses espaços são retratos do descaso de intervenções administrativas e coordenadoras de um bem maior – o coletivo. Cantos como os de Bernardo de Almeida (1996, p. 105) são ouvidos. Não se consegue viver em São Luís, diz o poeta “sem esse apego ao seu passado de amenas recordações, renascido a cada momento em alguns de seus locais históricos mais fascinantes. Descer até à Praia Grande é reviver os áureos tempos de nosso extinto centro comercial”. Joaquim Itapary, por sua vez, realça a geografia colonial, ao destacar traços arquitetônicos e a poesia dos patrimoniais bem-te-vis. E assim ele fala sobre São Luís:
ela cresceu para o alto, com os olhos nas estrelas, pedra-e-cal verticalizadas nos sobrados solidariamente unidos paredes-meia, na contiguidade das varandas, dos saguões e dos estreitos quintais de abricós, sapotis e graviolas, com balcões que se dão as mãos, de ferro rendadas, em quadrada ciranda, construídos nas fachadas que são verdadeiras paredes de ruas e becos estreitos, sobre os quais projetam a sombra dos beirais de barro e bem-te-vis. (ITAPARY, 2000, p. 135)
A crônica da cidade torna ‘perceptível’ a localidade habitável e serve de inspiração para os que, narrativamente buscam poetizar a cidade. Os cronistas, algumas vezes, a enaltecem, em outras, denunciam os problemas e a preocupação com ela, registrando, notadamente, as miudezas mais singelas na tentativa de preservar vivo o seu lugar. Com isso, o cronista se torna porta voz, levando em consideração que os temas citadinos são atemporais, bem como as dores que causam as feridas na cidade. É Azevedo Neto quem fala de algumas dessas feridas:
muitos lhe estendem as mãos e, demagogicamente, procuram-lhe as chagas mais repugnantes, buscam suas feridas mais asquerosas, eximiam-lhes as úlceras mais hediondas, na louca tentativa de lhe angariar amizade e confiança. Ah cidade velha, velha cortesã! Ah sempre sonhada amante, sempre pretendida companheira, arrodeada por gigolôs famintos!” (AZEVEDO NETO, 1995, p. 99)
Nessa perspectiva, observamos zelo e cuidado do cronista ao expressar tristeza com o que vê, mas o faz de um modo sublime, ainda que o grotesco se faça necessário. Apoiando-se no gênero, ele faz denúncias, mas sob uma abordagem sensual e poética. Ao tratar desses assuntos do cotidiano, ele comprova sua resistência e peculiaridade narrativas ao dialogar com a história existencial da cidade, em É possível que ainda seja azul. Observemos este exercício:
entre valas e buracos, andando sobre lixos e monturos, sob o sol que lhe alcança o corpo gasto através dos galhos secos das árvores que já morreram, vagando em busca de um conforto cada vez mais difícil e raro, por caminhos escuros, dormindo em sarjetas entupidas de lama e barro, lá vai São Luís, traída amiga, muito enganada amiga. (AZEVEDO NETO, 1995, p. 98)
As crônicas de Azevedo Neto traduzem tons denunciativos e polêmicos, ao revelar os reais problemas da cidade, bem como as intenções políticas e diversas outras questões. Embora respeitado pela qualidade de seus textos, ele é pouco conhecido, talvez, pela irreverência com que escreve, enfiando o bico de sua pena nas profundas chagas que a cidade expõe. Em seus escritos, facilmente observamos a crítica irônica, mas, também, graça e elegância, embora ele declare que não quer escrever seriamente:
que o exercício de escrever seja inconsequente como beijar uma desconhecida num fim de festa; como beber uma cerveja com o companheiro que se conheceu no futebol; como a conversa excitada dos que estão na fila do circo. Quero escrever como quem dança no baile: sem previsão e sem percurso preestabelecido. Escrever como quem dorme ou se prepara para amar: desconhecendo, de fato, o instante dos inícios e dos fins. Quero escrever como quem espirra. (AZEVEDO NETO, 1995, p. 32-33)
Escrever como quem espirra? De imediato? E não estaria aí uma das funções da arte, que é causar o espanto e incomodar? Então, por que o azul na crônica de Azevedo Neto? Ao conviver intimamente com a palavra e abordar os problemas da cidade por meio de sua linguagem direta, sua crônica desliza suave em páginas que precisam ser lidas, porque azuis, como azul deveria ser o mar da Ilha? Sua narrativa constitui-se literatura atual e contribui, criticamente, para a compreensão do que o alimenta – sua sensual, mas maltratada cidade – São Luís. Insiste o cronista:
E é por isso que repito: a ilha acordou azul. Cheirosamente azul. De um azul escandaloso e impudico como certas calcinhas azuis feitas mais para sugerir que para proteger. A ilha, portanto, amanheceu despudoramente azul. Azul e nua. Como em vista disso, falar de outras coisas? Como se a minha frente, a minha volta uma ilha azul, linda e nua, se movimenta no sentido do mar? (AZEVEDO NETO, 1995, p. 32-33)
São Luís também se faz tema nas crônicas que se oferecem nos papos de botequins, nos diálogos pitorescos, nas cenas do cotidiano, nos encontros entre amigos etc. Enfim, “ela se alimenta da vida que flui a cada instante”, diz Mauro Ventura Belmont (2006, p. 11) prefaciador da obra Ao rés do Rio, cronistas que pensam a cidade. Para corroborar, um fragmento da crônica de Joaquim Itapary, Para quem chega. Ele oferece a receita de como se comportar ao chegar à cidade:
parar, pouco que seja, às esquinas, ouvir a modulada sonoridade da prosódia maranhense, e, adotando o mesmo ponto de vista, deixar que os olhos descubram, em cada ponta da rosa-dos-rumos, inusitadas e inesquecíveis perspectivas cujos pontos-de-fuga serão, quase sempre, a torre de uma igreja. (ITAPARY, 2000, p 137)
Para Beatriz Resende (1995, p.35), o cronista “é o confidente de nossas pequenas reclamações, cúmplice de nossas revoltas, solidário em nossas perdas e em nossas alegrias”. Itapary (2000, p 137) dá a receita: “não precisa de nenhum guia para saborear as emoções de São Luís, é só descontrair corpo e espírito e ir, passo a passo, percorrendo as ruas (...), praças, casas privilegiadas, onde o visitante é o rei e a rainha é a acompanhante”. Esse olhar perscrutador do caminhante pela cidade, como se um voyeur fosse, dá o tom na crônica O profeta em sua terra, de Bernardo de Almeida. O cronista faz referência a fatos acontecidos em determinados momentos da cidade, quando em nome do progresso, os bondes foram retirados das ruas, o que não se fazia necessário, pois, o antigo poderia perfeitamente conviver com o novo. Assim aconteceu em muitas cidades europeias que levaram em conta que os bondes fazem parte da história do lugar. Após descrever e nomear os bondes que circulavam em São Luís, Bernardo recorda:
era muito agradável andar num daqueles trepidantes bondinhos. Eles subiam e desciam as ladeiras de São Luís, com as sinetas a tocarem em aflitos pedidos de passagem às lerdas carroças, à carreta de venda de gelo, aos verdureiros, sorveteiros e vendedores de frutos da terra, camarões e peixes frescos. (ALMEIDA, 1996, p. 15)
Tocado pelo prazer de pertencer à cidade e contemplá-la, também o poeta Nauro Machado fala das ruas de São Luís e posta os olhos sobre as coisas e os seres. Desenraizando a memória ele traz para a crônica as andanças pelas ruas antigas e pergunta: será esta a minha real e mesma São Luís de antigamente? Para o poeta, são os tempos em que os bondes desciam pelas ruas do Sol, da Paz, da Praia Grande. Assim é que na crônica Lá vem eles, o poeta suspira: “havia os bondes! Havia os bondes! Havia os bondes”! Suas lembranças são acompanhadas pelas “pandorgas” da infância. Ele declama:
as amadas dos colégios próximos tinham a blusa solta e aberta para os nossos débeis olhos. Anoitecíamos com o ruído dos bondes. Hoje, altas horas da noite, ainda escutamos o ronco noturno da sua alucinada paisagem. Aí vem eles. Onde estão, por Deus, os bondes de outrora? (MACHADO, 2012, p. 163)
O assunto dos bondes de São Luís, também merece a atenção do contemporâneo cronista Ivan Sarney. Também ele reclama sobre Os sinos dos velhos bondes, bem como a função deles, dos seus motorneiros e cobradores que fizeram parte de um determinado momento da cidade. Todos eles, de diversas maneiras, serviam à cidade, fazendo o transporte de pessoas para o trabalho, para o laser ou para um simples tour pelas ruas por onde passavam. Eles serviram, também, para embalar os sonhos e as lembranças do cronista.
De cada bonde, eu guardo as lembranças dos sinos, dos sons que faziam suas rodas de ferro nos trilhos frios que lhes serviam de rumos; das campainhas que os motorneiros acionavam com os pés; dos registros que o cobrador ia fazendo, à medida que recebia as senhas ou o dinheiro das passagens. Cada bonde tinha um peso, uma face, uma zoada especialmente sua que o individualizava. (SARNEY, 2007, p. 38)
Este sonho, todavia, não morreu com o cronista. Na tentativa de construir e dá sentidos a sua cidade, ele recorre à memória dela, de seu tempo e discursa em favor da volta dos bondes, sem, contudo, obter vitória alguma. Por quê? Segundo as teorias da modernidade, os bens patrimoniais não podem ser ligados à conservação de tradições coloniais. Com isso, o discurso moderno faz emergir um novo conceito patrimonial que tem a ver com a necessidade de transformar as paisagens urbanas, para atender aos conceitos dessa modernidade.
Portanto, essas produções representam um tempo e um lugar, como atos-fruto do ouvir e olhar atentos desses espectadores que, a luz da imaginação, nem sempre fazem aventuras temáticas. Por quê? A resposta nos dá Afrânio Coutinho (2003, p. 286): “a obra de arte tem a sua própria verdade, é um signo-em-si” Com a crônica isto se dá “quando ela não é escrita por um pedagogo, mas por um artista, que não seja a portaria de um censor de costumes, mas a palavra do escritor, essa crônica é arte literária, é literatura” (id., ibid.). Nesse sentido, o cronista tem liberdade para narrar todo e qualquer acontecimento, passando do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às misérias e às chagas da sociedade; e isto com a mesma graça e a mesma nonchalance com que uma senhora volta as páginas douradas de seu álbum, com toda finura e delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de adoradores! (ALENCAR, apud BENDER; LAURITO, 1993, p. 18).
Cabe, pois, ao cronista não deixar de exercer a função de confidente e ouvir as vozes da cidade, bem como a voz dos que nela habitam. Publicada com certa frequência (diariamente ou semanalmente), a crônica exige cuidados do seu autor que precisa reconhecer não ser este um ofício banal, mas especial. Em Uma cartografia poética de São Luís na obra de José Chagas, assim tento definir o cronista:
ao interpretar a cidade, seja enaltecendo-a ou apontando as suas mazelas, o cronista se nutre do registro das cenas do dia a dia, da vida que passa lenta ou apressada em seus vários segmentos. É o cronista o tradutor do olhar humano, sobre si mesmo, sobre a cidade e sobre o que nela se passa. Assim, a crônica é, por excelência, um gênero citadino, de cujas vozes o cronista é o tradutor. (NASCIMENTO, 2014, p. 18)
A ligação do cronista com a cidade estreita-se, quando o cotidiano dela é tomado como matéria prima de suas observações e experiências narrativas. Por ser a crônica um texto efêmero, mas dinâmico e imediato, sua perenidade está nas mãos do acaso: a leitura de um editor que vendo nela aspectos que transcendem a realidade histórica e a poeticidade dos temas, aposta em publicar. Nesse caso, lembra Candido” (1992, p. 14): “quando a crônica passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava”. Assim, a crônica que por algum tempo se constituiu uma “estranha” no ninho dos gêneros literários, pode residir agora em livros publicados, e que em mãos cheias são sorvidas pelos olhos do leitor, pondo fim ao efêmero que dantes a caracterizava.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se na cidade e por causa dela a crônica nasce, cresce e se impõe, a cidade não é responsável apenas pelo gênero, também ela se faz tema, personagem e espaço para o cronista. O fluxo de sua consciência, feito literatura, expressa uma determinada época que, por sua vez, é histórica, social e literária. Assim aconteceu no Rio de Janeiro, berço que embalou a crônica de José de Alencar, Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, dentre outros. Também isto se dá aqui em São Luís, pois, ao utilizarem seu discurso narrativo e sua realidade verbal, os cronistas adequam-se ao instante e seus textos fazem ecoar as vozes da cidade.
Observamos que os fragmentos narrativos que aqui se fizeram presentes, em sua maioria, se ligaram à memória dos cronistas que desejaram construir um mosaico, de certa forma, recriador da cidade. Esta, decerto, já não pode mais ser vivida, porque é passado. Então, o que lhes restou? A possibilidade de recuperar a cidade no agora, por meio de fragmentos literários. Poderíamos questionar, então: por que a matéria não foi tratada, segundo o memorialismo poético? Esta é uma outra proposta que pode ser discutida em algum outro momento.
A proposta, em si, foi observar nos fragmentos-recortes, alguns aspectos da vida da cidade, enquanto espaço e lugar literário dos cronistas. Estes, por sua vez, buscaram, como narradores da cidade, poetizar sua geografia e sua história, registrando profundas tensões entre a representação que fazem do lugar, ao mesmo tempo em que se representam. Como fazem isto? Não sentimentalmente, mas pela linguagem literária que é capaz de contemplar homem, tempo, espaço.
Concluo dizendo que, quem ler essas crônicas não ler apenas uma literatura instigante, mas lê a vida da cidade que está na alma desses cronistas. Por isso, podemos dizer que a alma de São Luís também é lida por eles. Podemos dizer, ainda, que nelas está o cerne do escritor contemporâneo que, ao alinhavar os seus textos, transcendem os limites do gênero e se imortalizam na mais refinada arte humana – a narrativa. Aqui eles e elas se comprometem com o imortal amor por São Luís, a Ilha do Amor. Afinal, “é preciso amar a cidade”.
REFERÊNCIAS
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