A Semana 22 e Mário de Andrade
A Semana 22 e Mário de Andrade
É evidente que para haver uma ruptura é preciso existir uma tradição. Mas, qual era esta que trazíamos antes da Semana de 1922, ocorrida nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo? Tem-se dito que esse evento inaugurou a cultura no Brasil. Dizer isso é desconsiderar todas as manifestações artísticas anteriores, da música à pintura, passando pela literatura e pela arquitetura. Romper com a métrica parnasiana, torná-la obsoleta e subverter a ordem daquilo que já se dizia sacramentado? Mais que isso. Até porque já o fizera antes. Ruptura não é simples e pura demolição, mas reavaliação estética.
O centenário da Independência e a Primeira Guerra Mundial favoreceram a expansão política e industrial brasileira, além de abrir espaços para a reavaliação do cenário educacional e artístico. Se a Semana de Arte Moderna é um mito da cultura oficial do Brasil, nisso não farei delongas. O fato indubitável é que esta foi o primeiro movimento em prol de uma literatura realmente nossa, afirmativa, ainda que para isso tenha sido necessária a importação de tendências europeias, a antropofagia idealizada por Oswald de Andrade e prenunciada por Graça Aranha. Sem forma o modernismo ganhou fôrma, porque se guiou pela coletividade artística. Pintores, escritores, músicos reunidos. Nomes como Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Villa Lobos, entre outros.
Não sei se Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Guimarães Rosa teriam a liberdade criativa que tiveram se não fosse a batalha travada no evento. No entanto, há de se reivindicar toda a modernidade antecedida por Machado de Assis e o fato de que a Semana é um evento ocorrido em SP e não de SP, como enfatizou a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.
Segundo o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, autor de “1922 – a semana que não terminou”, a Semana “não foi um divisor de águas, mas um marco histórico”. Nessa obra, Gonçalves reduz a glória do evento e nos faz crer que o movimento foi organizado por um bando de “playboys”, gente bem-nascida que aproveitou o progresso da sociedade paulistana para se promover. Entretanto, foram os modernistas que fizeram o evento e não o contrário.
Gostaria de destacar uma figura essencial nessa história, conhecido como o “papa” do movimento, Mário de Andrade. Um grande legado, além da sua obra literária, são as suas cartas que, estima-se ultrapassarem 15 mil unidades. Um ano após a sua morte, ocorrida em 25 de fevereiro de 1945, o professor/crítico Antonio Candido já reconhecia o valor das epístolas do autor de “Macunaíma”: “sua correspondência encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa de sua obra e do seu espírito”.
Correspondente fecundo, Mário escreveu para personalidades e anônimos de sua época. Gente como Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Câmara Cascudo, Anita Malfatti, Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião, Pedro Nava. A lista é imensa, mas volume considerável dessa correspondência já está distribuído em diversas reuniões que o leitor, caso tenha interesse, poderá encontrar em sites e sebos do Brasil. É agradável ler acerca dos seus planos literários e perceber o carinho que nutria por seus amigos e colegas de ofício.
Pode-se dizer, sem medo de errar, que Mário foi o literato de maior importância no século XX, por toda a mobilização cultural feita por ele, das cartas à sua gestão como secretário do Departamento de Cultura de São Paulo. Foi professor de literatura, de música, folclorista, escritor, poeta. São trezentos e cinquenta facetas, como dizia. Faleceu no dia 25/02/1945, desgastado pelo mundo, reprimido pela angústia diante da Segunda Guerra Mundial e pelos horrores do Estado Novo. Não era mais a “Pauliceia desvairada”, e sim o mundo desvairado.
Mário não tirou as cartas da manga, retirou-as do coração. Só a sua grande obra epistolar já vale toda uma vida. O Brasil precisa descobrir o Mário, os Andrades – Drummond, Oswald e toda a turma que não deve ser celebrada apenas em centenários, mas ensinada veementemente em cada sala de aula e em cada espaço público deste país.
(Texto publicado em A UNIÃO no dia 25/02/2022)