MARGINALIDADE NAS PERSONAGENS DA OBRA "O ABAJUR LILÁS", DE PLÍNIO MARCOS

MARGINALIDADE NAS PERSONAGENS DA OBRA "O ABAJUR LILÁS", DE

PLÍNIO MARCOS¹

Antonio Carlos Valentini²; Emmily Kruger Quednau²; Gabrielly Soares².

¹ Trabalho realizado na disciplina de Teatro Brasileiro, Prof. Dr. Marcos Hidemi de Lima.

² Acadêmicos(as) do 6º período de Licenciatura Em Letras Português-Inglês da UTFPR, Campus Pato Branco – 2021-2.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende analisar a marginalidade presente nas personagens da peça de teatro "O abajur Lilás", do dramaturgo brasileiro Plínio Marcos (1935-1999). Essa obra do teatro brasileiro moderno foi escrita em 1969, ano em que o Brasil ainda enfrentava a ditadura militar (1964-1985). Nesse período, os escritores precisavam utilizar metáforas em seus textos para passar pela censura imposta pelo governo. Porém, a tentativa foi nula. A obra foi liberada somente onze anos depois, em 1980.

A peça de Plínio Marcos é dividida em dois atos, sendo o primeiro com três quadros e o segundo com dois, e conta com cinco personagens: Dilma, Célia, Osvaldo, Giro e Leninha. Cada uma delas tem um destaque importante para o desenvolvimento da peça, que gira em torno de pessoas marginalizadas pela sociedade:

Plínio Marcos, acreditamos que sem o querer, orientado unicamente por seu instinto de escritor, abria assim caminhos para os protestos de grupos que se julgavam oprimidos - as mulheres e os homossexuais (PRADO, 1988, p. 103-104).

Sendo assim, em "O Abajur Lilás", as personagens mulheres (Dilma, Célia e Leninha) são garotas de programa que entram no mundo da prostituição por motivos diferentes e vivem seus destinos de maneiras igualmente diferentes.

Dilma é uma mulher obediente que entra para a prostituição por ser mãe solteira. Ela precisa trabalhar como prostituta para conseguir dar uma vida melhor ao seu filho. Por outro lado, Célia é uma personagem alcoólatra e revoltada com a vida que leva, o que a faz sempre entrar em desavenças com as pessoas à sua volta. Já Leninha é uma mulher que sabe utilizar as palavras para obter o que deseja e entra no mundo da prostituição por opção.

Em contrapartida, os personagens masculinos, Giro e Osvaldo, são líderes do mundo em que as garotas vivem (patriarcalismo). Giro comanda por meio do poder de ser o dono do prostíbulo e Osvaldo por meio de sua força; ou seja, um

complementa o outro. Entretanto, apesar da condição financeira superior de Giro perante as demais personagens, ele também é desprezado por todos ao seu redor por conta de sua homossexualidade. Da mesma forma, Osvaldo é marginalizado por possível assexualidade: “[...] Ele é bem bonito. Mas não quer saber. Nem de homem, nem de mulher.” (MARCOS, 2012, p. 145); e por ser criminoso.

Dessa maneira, o escritor Plínio Marcos constrói essas personagens como amarguradas por todo sofrimento que passam. Como analisa Prado (1988),

em vez de propósitos revolucionários, ou de uma encantadora ingenuidade, revelavam em cena um rancor e um ressentimento que, embora de possível origem econômica, não se voltavam contra os poderosos, por eles mal

entrevistos, mas contra os seus próprios companheiros de infortúnio. Nessa luta áspera, cotidiana, a agressão verbal, o palavrão (usado se possível com certo requinte de maldade), valia alguns pontos. A agressão física, muitos

pontos (p. 103).

À vista disso, em todas as cenas, essas personagens estão envolvendo-se em constantes discussões, diminuindo umas às outras sempre que têm a oportunidade e entrando em luta corporal quando as palavras já não são mais suficientes. Essas brigas acabam tornando-se a única maneira de lidar com o preconceito frequente que sofrem, descontando no lado mais fraco as suas dores.

Logo, Plínio Marcos faz de "O Abajur Lilás" um texto engajado no qual “as três prostitutas que dividem um sórdido quarto simbolizam, em verdade, o comportamento dos oprimidos em face do poder” (MAGALDI, 1997, p. 308).

2. AS PERSONAGENS E SUAS REPRESENTAÇÕES DA MARGINALIDADE

2.1 DILMA: A MÃE SOLO

Dilma é a primeira personagem apresentada por Plínio Marcos. A garota de programa é uma mãe solo que é constantemente afrontada por Giro, seu considerado sócio. É já no início da peça que ele começa a atormentar Dilma,

implicando com o tempo que esta precisa para tomar banho e ir encontrar outro cliente: “Sabia que ia te encontrar aí sentada como uma vaca prenha. Não quer mais nada. Estou na campana. Assim não dá pedal. Tu e a outra não querem porra

nenhuma. Que merda! Que merda!” (MARCOS, 2012, p. 122).

Essa constante cobrança para com a prostituta demonstra que ela é vista apenas como uma mão de obra para o Giro; como aquela que pode trazer ainda mais dinheiro para o seu bolso. Isso torna-se ainda mais claro quando Giro diz para Dilma que encontrou um escarro com sangue na pia do banheiro que as mulheres ocupam. Sua preocupação, no fundo, não é com a saúde delas, mas com a grande falta que elas fariam para seus negócios. Assim que Dilma nega ser dela o escarro, Giro alega:

Tu é médica? Não. Que eu saiba, tu é puta. Se é de cigarro ou de doença, quem sabe é o médico. Mas cada um que se cuide. Eu só estou falando pra tu se tocar que deve faturar. Essa que tem que ser a tua jogada. Faturar, faturar, faturar (MARCOS, 2012, p. 127).

Desse modo, a meretriz torna-se apenas um objeto de lucro para Giro, mas ela tem consciência de que precisa continuar trabalhando com ele para conseguir todo o dinheiro que necessita, já que deseja dar uma vida melhor ao seu filho pequeno. Consequentemente, Giro utiliza-se da manipulação emocional do amor e zelo que Dilma sente por seu filho para fazê-la trabalhar.

Sempre que as coisas não estão indo bem, Dilma se agarra à imagem de seu filho para que não acabe cometendo coisas que a fariam se arrepender mais tarde. Esse é um dos motivos que leva a garota de programa a não aceitar a proposta de Célia em emprestar dinheiro para comprar uma arma para matar Giro.

[...] Eu tenho meu filho pra criar, entendeu? Tu é tu mesmo. Tanto faz como tanto fez. Mas essa porrice-louca não dá pra mim. Eu sou meu filho. Tu já pensou se eu entro numa gelada, como é que ele fica? Pensa. O coitadinho não sabe de nada. Eu é que tenho que dar as dicas da vida pra ele. Sem mim, ele se dana [...] (MARCOS, 2012, p. 136).

Apesar de seu sócio acusá-la de não ser uma boa mãe, é possível interpretar a entrada de Dilma para o prostíbulo como uma última opção para conseguir sustentar seu filho pequeno:

[...] Por que tu acha que eu me viro? Tu pensa que eu gosto desta merda? Não gosto nada. Dia e noite no batente. Encarando branco, preto, amarelo, tarado, bebão, brocha, nojentos, sujos e tudo o que vem. E eu aí, só enfurnando a bufunfa. Não vou a lugar nenhum. Não gasto um puta de um tostão à toa. Só pra dar o que tem de melhor pro meu nenê. Pra dar uma vida de gente pra ele. Só por ele. Casa, comida, cuidados e tudo que só os bacanas têm. Os nenês não têm culpa dessa putaria que é o mundo [...] (MARCOS, 2021, p. 132).

Muitas mulheres resolvem partir para a prostituição por traumas vividos na infância ou, como alude Correia (2014, p. 13),

a juventude e a vida adulta destas mulheres também são assinaladas com acontecimentos negativos, marcadas por casamentos ou uniões de facto desfeitos, pois, ou são abandonadas pelos seus companheiros/maridos, ou estes vêm a falecer, deixando-as muitas vezes sozinhas com filhos para criar.

Dilma nunca cita o paradeiro do pai de seu filho. Portanto, dá-se a entender que ela é a única responsável pelo sustento do menino; e é pelo amor e responsabilidade que possui por este que a meretriz aceita ser rebaixada por Giro e por todas as outras pessoas que fazem parte de seu convívio social.

Apesar de ter uma vida sofrida como prostituta, Dilma é uma mulher leal, que faz o possível para proteger Célia e Leninha. Ao final da peça, Giro força a mulher a dedurar uma de suas colegas pela quebra de móveis do prostíbulo. Porém, ela deixa-se torturar para não entregar Célia: “(Osvaldo chega perto de Dilma. Como quem não quer nada, encosta o cigarro aceso nela. Dilma grita de dor.)” (MARCOS, 2012, p. 158).

Dessarte, Dilma é uma das personagens mais honradas de O Abajur Lilás. Ela corre atrás do sonho de ser uma mãe melhor e não espezinha suas colegas para conseguir o que quer, além de que prefere ser torturada do que quebrar a sua palavra.

2.2 CÉLIA: A ALCOÓLATRA REVOLTADA

Célia é a personagem contestadora que, inconformada com as ordens de Giro, dono do “mocó”, reage raivosa e irracionalmente. Na maioria das cenas, a personagem aparece bêbada, com comportamento impulsivo e falas ofensivas que manifestam sua cólera, refletindo o ambiente em que está inserida, como observa-se na seguinte conversa com Dilma em que Célia se refere a Giro:

Célia – Filho da puta! Enganador! Nojento! Merecia um teco na fuça. Me empresta a grana, Dilma. Me empresta, que eu acabo com a bicha. Dilma – Sai dessa! Tu viu que ele até te deu moleza. Acorda de uma vez e vai se virar. Célia – Tu entra nas chaves dele. Tu é mesmo uma bosta. Também, tem que ter desconto. Com o cupim roendo a caixa de catarro, fica frouxa

(MARCOS, 2012, p. 139).

Seu discurso é revolucionário contra as opressões que sofre, mas suas atitudes são contraditórias, pois planeja assassinar Giro para assumir o comando do “mocó”: “Cupincha é cupincha. Eles estão com quem está no mando. Se a gente fica em cima, eles bandeiam pro nosso lado” (MARCOS, 2012, p. 137).

Ela tenta convencer Dilma e Leninha a ajudarem em seu plano; impõe sua ideologia verbalmente, mas não funciona, então parte para o uso da força e violência, assumindo o arquétipo do explorador e oprimido, que acaba por conduzi-la ao seu fim fatal (SAMPAIO, 2021).

Célia quebra o abajur lilás do cômodo que divide com suas companheiras: “Célia – Chegou a hora de dar uma decisão com a bicha. Ou entram na minha e a gente encara o veado e o brocha, ou as duas se arreglam com a bichona. Não tem mais deschavo. Não quero ninguém fazendo média” (MARCOS, 2012, p. 154). Ainda assim, não consegue o apoio delas.

Giro entende os danos como afronta e quer saber da boca de suas manipuladas quem foi a transgressora. Depois de Dilma desmaiar de dor devido aos golpes de Osvaldo para que ela delatasse a companheira, Leninha cede, temendo ser a próxima, e dedura Célia. Célia implora por sua vida, mas Giro ordena sua execução; assim, Osvaldo tira a vida dela com um só tiro. Giro age como se sua eliminação não importasse. Desse modo, Plínio retrata, por intermédio do brutal assassinato de Célia, o desaparecimento dos rebeldes durante o regime ditatorial no Brasil (PINTO, 2002). A morte de Célia, aquela que transgrediu a ordem e se rebelou, destrói a possibilidade da mudança e reafirma o poder que os exploradores têm sobre os explorados.

2.3 OSVALDO: O LEÃO-DE-CHÁCARA

Osvaldo é caracterizado pelo sadismo, virilidade e insensibilidade; por isso, torna-se o capanga, o objeto de poder, perfeito para Giro, dono do “mocó”, executando todas as atrocidades que lhe são ordenadas (PINTO, 2002).

Age como se estivesse tentando, o tempo todo, provar sua masculinidade; sendo assim, é símbolo dos relacionamentos autoritários pós golpe militar de 1964. Suas poucas falas transbordam a crueldade dos opressores, que executavam o “serviço sujo” para membros do governo, mantendo “a lei e a ordem” por meio da violência. Aparenta sentir ódio e aversão às prostitutas, a ponto de armar uma cena para prejudicá-las: quebra objetos do “mocó” e as culpa. Giro ordena castigá-las e

Osvaldo demonstra alegria ao fazê-lo, como se observa em: “Osvaldo — Ela desabou. Não aguentou o repuxo. (Ri.)” (MARCOS, 2012, p. 158) e “Osvaldo — Tá apavorada, putana? (Ri.)” (Ibidem, p. 158).

Segundo Magaldi (1998), fatos aparentemente corriqueiros ganham nova dimensão em uma leitura no nível simbólico. Dessa maneira, por meio de Osvaldo, Plínio demonstra as injustiças fatais consequentes de ações perversas praticadas por indivíduos com livre arbítrio. Quando Osvaldo escolhe apoiar Giro com sua força, ele condena Célia.

2.4 GIRO: O CAFETÃO

Giro é um personagem que sente o preconceito e o autopreconceito de sua homossexualidade que, embora assumida, não é defendida; antes concorda com os estereótipos que as outras personagens lhe dirigem. Assim, além da homofobia nítida por parte de todos as personagens, seguida de palavras de baixo calão, percebe-se um autopreconceito por parte do próprio personagem, o qual concebe sua orientação sexual como desvio de conduta e adota uma atitude individualista, dado que não recebe o apoio de ninguém (SILVA; JUNIOR, 2016). Isso pode ser observado no seguinte trecho: “Sou veado, 'mas' não sou bunda-mole. Sei viver. Se alguém quiser engrossar, pago uns homens e mando bater, matar e os cambaus. Tenho dinheiro e posso mais que todos aqui” (MARCOS, 2012, p. 130, grifo nosso).

O personagem tenta minimizar, pois, essa sua condição, que ele vê como um defeito, maximizando a ideia de desfrutar de mais dinheiro e poder que as outras personagens.

As personagens de Plínio Marcos que representam o poder alimentam essa ilusão que, por sua vez, apenas escamoteia o sentimento de exclusão, sem que a condição de excluído, estigmatizado ou indigno seja combatida (SILVA; JUNIOR, 2016, p. 8).

Isso pode ser evidenciado, outrossim, no seguinte trecho: “Sou veado, 'mas' sempre tive o que essas cadelas nunca tiveram” (MARCOS, 2012, p. 155, grifo nosso). A conjunção adversativa “mas”, presente em dois trechos acima, representa justamente o autopreconceito e a aversão que o personagem tem de si mesmo. Nesse contexto, essa frustação faz com que o personagem desenvolva a convicção de que as pessoas o invejam por ter o poder de ser dono do prostíbulo, além de odiarem sua homossexualidade:

Tu deve ter nojo de mim. Eu sei. Tu me engole porque depende do meu mocó. Só por isso. Se tu pudesse, tu me expulsava daqui agora mesmo. Eu sei que tu, a Célia, os homens lá debaixo, os que me ajudam a tomar conta das minhas putas, os policiais, todo mundo tem raiva de mim. Todo mundo. O desgraçado que toma meu dinheiro, o garçom do botequim fedorento que serve aquela comida porca, o cozinheiro, todo mundo. Até os fregueses desse treme-treme têm raiva de mim. Inveja. Tudo inveja. Morrem de inveja de mim (MARCOS, 2012, p. 129-130).

Isso revela a visão sinonímica da homossexualidade como doença que perdurava antes e durante o regime militar (1964-1985), não sendo uma particularidade só da saúde pública brasileira (CARNEIRO, 2015). Isso também pode ser evidenciado em: “Xinga! Xinga! Só queria que Deus te castigasse e teu filho saísse um veadinho” (MARCOS, 2012, p. 129) e “Só estou falando. Disso eu entendo. Se eu não entender de veadagem, vou entender do quê? E filho de puta sempre vira veado. (Giro ri.)” (MARCOS, 2012, p. 133), trechos nos quais o personagem denota sua orientação sexual como um defeito, como uma

inferioridade.

Desse modo, o próprio personagem e as demais, como se percebe em suas diversas falas, acreditam que a homossexualidade seja uma deficiência, uma falha, um desvio, um castigo e até uma “praga”. Contudo, em determinado momento, o personagem contradiz-se, apresentando “contornos identitários de valores de oposição” (SILVA; JUNIOR, 2016, p. 8), como em: “Não sei por quê. Tem bicha nas melhores famílias. E que é que tem? Cada um faz o que quer, dá o que é seu. A terra vai comer mesmo” (MARCOS, 2012, p. 129), fala na qual parece defender sua orientação sexual, mesmo que de forma pejorativa.

Além disso, o personagem segue a ideia de “opção sexual”, contrária à de “orientação sexual”:

Eu 'fiquei' bicha no asilo. Não foi o guarda. Foi um garoto grande que me pegou. Gamei. Vai ser assim com teu filho. Ele vai ser veado. Veado como eu. Logo como eu, que tu tem raiva, nojo e tudo. Que nem eu, que quero ser teu amigo. Teu filho vai ser veado. Veado. Porque não vai ter quem cuide dele. O Osvaldo vai te acabar aqui (MARCOS, 2012, p. 156, grifo nosso).

Dessa maneira, com um discurso determinista que preconiza “o ‘meio’, a ‘raça’ e o ‘momento’ como fatores determinantes na constituição social do sujeito” (SILVA; JUNIOR, 2016, p. 10), Giro afirma que uma pessoa pode, de repente, vir a se tornar homossexual (“fiquei”), refutando a ideia de “nascer homossexual”, a qual condiz com o conceito de “orientação sexual” (OLIVEIRA JÚNIOR; MAIO, 2013).

Ademais, utilizando-se dessa sua ignorância, arremessa toda a aversão que recebe da sociedade nas prostitutas. Em várias de suas falas, o personagem insufla na mente de Dilma a possibilidade de seu filho “tornar-se”, “virar” homossexual, para

provocá-la, já que tem consciência de que ela, assim como grande parte da sociedade, concebe tal ação como uma degradação e uma falta de virtude (SILVA; JUNIOR, 2016).

Além de representar a marginalização em sua orientação sexual negada por si e por outrem, Giro, com o auxílio de seu capataz (agente repressor, citado anteriormente), representa a repreensão do regime militar (1964-1985), instaurando um “regime” em seu próprio recinto e procurando a “ordem” e o controle em seu interior a qualquer custo (BRANCO, s.d.).

Tal forma de relacionamento, em que o poder se manifesta, acaba por constituir uma situação de violência que está escondida por trás de costumes, hábitos e leis que fazem com que a desigualdade seja encarada de forma natural (FORTANELL, 2014, p. 69).

Assim sendo, Giro enxerga as outras personagens como se fossem fantoches, principalmente quando está com raiva. Contudo, quando “normaliza”, já alega ser “amigo” de suas subordinadas:

Eu não sou mau. Tu me conhece e sabe que não sou. Claro que eu quero beliscar uma grana. Sou igual a todo mundo. Só tu e a Célia é que não são do batente. Não sei por quê. Então eu falo mesmo. E é por bem que eu falo. Já passou pela tua moringa se amanhã tu ou tua amiga ficarem podres? (MARCOS, 2012, p. 126).

Então, ao enunciar, por exemplo, “Eu não quero ser duro. Mas que posso fazer? Ninguém quer entrar na minha. Eu sou legal. Falei pra Leninha que gosto das duas. Badalei. Pergunta pra Leninha se estou mentindo” (MARCOS, 2012, p. 149), o personagem demonstra uma falsa sensação de preocupação com as prostitutas, como quando fala para Dilma: “Tu lembra daquela noite que tu estava gemendo e se torcendo de cólica? Eu te fiz um chá” (MARCOS, 2012, p. 156). Essas ponderações são infundadas, egoístas, pois o que ele realmente busca é o próprio proveito.

O personagem, utilizando-se de sua condição, aduz que não foi fácil ter tudo o que tem: “Não me danei a vida toda pra abrir um asilo de puta. Este mocó custou o suor da minha cara. Agora, tem que render. E quem não estiver contente pode se arrancar” (MARCOS, 2012, p. 147). Por isso, assim como sinaliza-se um preconceito e um autopreconceito, há também um autopressionamento marcado na tentativa de proteger o bem que configura seu poder, o prostíbulo, e uma pressionamento dele para com suas “colaboradoras” a fim de que estas satisfaçam seu desejo por lucro, por poder, por o que ele acha ser sua única parte que “presta”, como pode ser verificado nos seguintes trechos: “'Queria eu' poder fazer michê. Não ia dar moleza. Fazia uns vinte michês por dia. E de cara alegre” (MARCOS, 2012, p. 122, grifo nosso); “'Queria eu' ter uma cona. Era um michê atrás do outro. Mas é sempre assim. Deus dá pão pra quem não tem dente” (MARCOS, 2012, p. 142, grifo nosso). Assim, “queria eu” demonstra essa insatisfação de si mesmo e, para diminuir esse desgosto, foca em seu “mocó”, no “rendimento” de suas funcionárias, em algo que possa controlar — já que não consegue alterar sua orientação sexual —, forçando-as a fazerem mais do que podem.

2.5 LENINHA: A COMODISTA

A personagem Leninha, diferentemente de Célia, intenta dominar Giro pela “lábia”, ou seja, sem a busca por tomar conta do local e sem planos anárquicos de “apagar” Giro, apenas por benefício próprio, como pode-se observar nos trechos: “Meu negócio é outro. Não quero nada com nada. Não quero ser dona de mocó nenhum. E nem me fale nesses lances” (MARCOS, 2012, p. 153);

No papo se banha a bicha. Não viu como eu fiz ela comprar abajur novo, trocar lençol e tudo? E só na leve. Se ela aperta a gente, diz que tá de paquete. As três. A bicha vê que não vai ter grana e se arregla. Aposto (Ibidem, p. 153).

Além disso, podem ser visualizadas marcas de induzimento em suas falas: “Mas tu disse que aqui era tudo legal. Tu não disse? Era grupo teu. Já vi com quem vou lidar. Com um enrolador. Prometeu de araque” (MARCOS, 2012, p. 142); “Porém precisa de abajur. Se não, tu já viu os bodes que vai dar. As duas piranhas querendo puxar o ronco e eu aí, querendo ler” (Ibidem, p. 142); “(Olhando o lençol da cama.) Que nojo! Tá encardido paca. Precisa trocar pelo menos todo dia” (MARCOS, 2012, p. 144); “Dá o dinheiro, que eu vou comprar o abajur. Enquanto isso, tu traz a cama pra cá. Quando eu voltar, já arrumo tudo. Tá bem assim?” (Ibidem, p. 144). Assim como Célia, ela tem suas intenções, porém com objetivos diferentes.

Célia, com sua também marca de persuasão, declara que: “Se tem uma coisa que me dá nojo é cagueta. Tenho mais nojo de cagueta do que de veado” (MARCOS, 2012, p. 150), ressaltando mais uma vez o traço de preconceito e intimidando todas as outras personagens para não contarem que foi ela quem quebrou o abajur, as quais concordam veementemente com a afirmação de Célia. Nesse sentido, quando Giro descobre, todas negam. Leninha inclusive afirma: “Não sou cagueta, não sou. Tu sabe quem foi, Giro. Pra que tu quer me sujar? Pra quê?” (MARCOS, 2012, p. 159). Ao não ter outra alternativa, ela solta: “Foi a Célia!” (Ibidem, p. 159). A expressão “ser cagueta” é vista como a mais péssima fama que uma pessoa poderia ter. Leninha só conta o ocorrido, como expresso no tópico 2.2, porque sua vida está em risco. Nisso, acontece a morte de Célia. Embora, no fundo, Giro soubesse que foi Célia quem quebrou o abajur, queria ouvir esse delato da boca de suas “lacaias”. Mesmo com o impacto de tudo que acontece, Giro permanece frio e afirma: “Leninha, Dilma, reage, gente. Esqueçam tudo. Vamos se virar. A Célia mereceu. Só aprontava. Vão pra rua. Vão se virar. Na volta, ninguém mais se lembrará dela. Juro” (MARCOS, 2012, p. 161).

Então, voltando à análise de Giro, ele caracteriza-se como

o dominador, representante das instituições dominadoras que anulam a subjetividade dos sujeitos ao seu bel prazer, tornando-os insignificantes ou, simplesmente, matando-os (BARBOSA JUNIOR, 2013, p. 44).

Esse complexo personagem, ao reproduzir a violência que se relaciona ao momento histórico que o país passa, busca controlar seu âmbito já que não consegue, como dito, mudar sua condição sexual que sofre uma recusa mútua. Giro,

portanto, patenteia um ser tanto opressor quanto marginalizado, semelhante à ideia de anti-herói.

No final da peça, Leninha faz uma oração que revela o drama de todos os sujeitos marginalizados pelas estruturas dominantes da sociedade que não conseguem encontrar uma saída na qual haja justiça (BARBOSA JUNIOR, 2013).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com uma linguagem informal, por meio de expressões populares de época, carregada de palavrões, "O Abajur Lilás" de Plínio Marcos apresenta um tom crítico e denunciador das condições degradantes que os sujeitos marginalizados, excluídos, considerados do “submundo”, enfrentam; e da negligência e indiferença do Estado para com estes, confrontando a censura que intenta camuflar as mazelas sociais e desmascarando a realidade brasileira.

A linguagem informal empregada leva a sua obra a atingir um grande público de pessoas que pode vir a ter a compreensão da crítica existente nesta. Plínio Marcos expõe, assim, a condição de marginalização por intermédio de tipos sociais que sofrem tanto preconceito que chegam até a se autorreconhecerem como merecedores dessas perseguições e injustiças, havendo um preconceito estrutural cometido também entre os mesmos.

Sua obra pode ser vista como um ato de resistência, com o tema (marginalização) e a forma (peça teatral) (BOSI, 2002) relacionadas de tal modo que essas personagens buscam denunciar, indiretamente, a crueldade dos militares e o autoritarismo do período ditatorial brasileiro.

Giro e Osvaldo vêm a representar a opressão e, as prostitutas, a população vitimada. Até o que resta da moral das personagens, como a sensibilidade maternal de Dilma e a paixão pela leitura da Leninha, por exemplo, sofre tentativas de niilismo, assim como em uma ditadura. Porém, as personagens andam tanto pelos planos de manipuladores quanto de manipulados, sofrendo e disseminando preconceito, o que é consequência de uma sociedade desestabilizada e mal governada.

De acordo com Barbosa Junior (2013, p. 48), “Plínio Marcos nos faz refletir sobre a injustiça da ditadura por meio de reflexões profundas sobre a dignidade, o respeito, a liberdade e a humanidade”. A dignidade que é, portanto, roubada, o respeito que não permanece, a liberdade que não é encontrada e a humanidade que tem seus valores e direitos depreciados.

REFERÊNCIAS

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