O CASO DO VESTIDO - Carlos Drummond de Andrade: Impressões sobre o poema e o poeta.
Reunindo sua poesia produzida entre 1943 e 1945, Drummond publicou o livro A Rosa do Povo, d'onde veio a lume esse poema narrativo de 75 dísticos em redondilha maior: O CASO DO VESTIDO. N'essa época, o colapso dos países centrais capitalistas e comunistas em meio a um conflito mundial de destruição sem precedentes pôs em crise as esperanças da modernidade alicerçadas no desenvolvimento econômico e no progresso científico. Se o grande desafio dos poetas de então era o de não sucumbir ao pessimismo dos factos, tampouco lhes interessava o refúgio n'um lirismo intimista mas desconectado de seu tempo. Afinal, sobre o que escrever quando os temas poéticos por excelência parecem despropositados em face da Grande Guerra e suas imensas tragédias humanitárias? Nosso poeta escolheu contar, talvez até para denunciar o Patriarcalismo, o caso d'um triângulo amoroso ocorrido n'uma família provinciana e religiosa, isto é, uma família mineira do início do século vinte não muito diferente d'aquela em que cresceu.
O CASO DO VESTIDO, n'uma primeira leitura, chama a atenção pela história em si, na qual amores e relacionamentos são marcados pela dor e pela inconstância. Contada em forma de diálogo entre uma Mãe e suas Filhas - "minhas filhas, escutai / palavras de minha boca" - o tal caso familiar explica a inusitada guarda d'um vestido de renda cheio de transparências sensuais que as filhas admiram enquanto a Mãe lhes repele, primeiro a cobiça e, após, a curiosidade. Sem ter como fugir, contudo, à realidade exótica d'aquele vestido impudico em casa tão respeitável, a Mãe narra, em linguagem levemente arcaica, uma história que é, no fim das contas, a pior fase de sua vida, a saber, o enamoro do Patriarca por uma mulher descomprometida, jovem e sedutora que apareceu na cidadezinha e que culminou com o abandono da família pelo Pai.
Há, inobstante, elemento extraordinário na breve narrativa que se repete três vezes e lhe dá um sabor realmente único. Chamei-os, na falta de nome melhor, de polissíndetos da desgraça… São trechos em que cada um dos vértices d'esse triângulo amoroso sofre uma sequência tão trágica quanto dolorosa de situações humilhantes basicamente por amarem em demasia o outro que ama um outro ou ninguém: Primeiro, o Pai passa o diabo ao ser desdenhado pela Dona de Longe, em cujo vestido do título ela se exibe poderosa e terrível. Humilhada, a Mãe narra a seguir sua descida ao inferno da rejeição com a perda de seu marido e de sua condição social, carregando sozinha a criação das filhas n'um ambiente hostil a mulheres separadas.
Todavia, o mundo é grande e pequeno… A redenção da Mãe começa pela volta inesperada e solitária da Dona de Longe, com o famigerado vestido nas mãos, para contar sua desventura de amar o Pai que, amado, deixou de amá-la. Trazendo o vestido rendado e um pedido de perdão, a Dona de longe vai embora. A vitória sentimental da Mãe, porém, se completa a seguir com a volta do Pai, ainda que sem remorso aparente e quase indiferente às consequências das escolhas que fez. Como um Patriarca típico, volta para seu domínio sem explicações a dar; como se nada demais tivesse acontecido.
Aliás, também a Mãe, sublimada com a reviravolta, tenta se convencer de que não houve, no final das contas, mais do que um acidente de percurso na trajetória d'eles. Embora sua precária paz conjugal dependesse d'uma farta dose de autoengano - "vestido não há… nem nada" - ela vivia atenta aos passos do Pai… O vestido, porém, continua pendurado no prego da porta para provar que aquele caso, com a tempestade de sentimentos que causou nos três envolvidos, aconteceu.
Deve-se considerar O CASO DO VESTIDO, para todos os efeitos, antes a história d'um triângulo amoroso do que mera infidelidade, tendo em vista a estranha relação que se cria entre as duas mulheres. Há uma espécie de empatia às avessas: A Dona de Longe apenas ficou com o Pai "a pedido" da Dona Casada, gozando de seu poder de devoradora de homens e destruidora de lares depois de talvez ter sido, ela mesma, julgada pela sociedade conservadora da época. Por meio da Mãe humilhada e do Pai rastejante, a bela em seu vestido rendado se vinga de todos aqueles que um dia lhe censuraram a vida livre e alternativa. Ela decidiu ficar com um homem pelo qual não se sentia atraída, de certo modo, para denunciar a hipocrisia dos moralistas: Sim, desejo sexual era uma coisa muito importante para ser sublimada por trás de bons costumes e satisfazê-lo seria a única coisa honesta a se fazer. Contudo, o sofrimento da Mãe fora intenso e real, ainda que seu amor não fosse romântico - quer de perdição; quer de salvação - e muito menos sensual. Amava-o, assexuada, como mulher de família diante d'um homem que tem suas necessidades.
Mesmo hoje em dia, vivendo n'uma época que preconiza a busca da felicidade e a satisfação da sexualidade, é difícil não condenar o Pai por buscar uma vida diferente ao partir em busca d'essa paixão visceral… O caso, contado do ponto de vista da Mãe, é ainda a lembrança de dores, humilhações e , sobretudo, rejeição. Quando a Dona de Longe volta humilhada, como se vítima d'um carma - "me aparece já sem nada," - encontra apenas silêncio após narrar um sofrimento amoroso semelhante àquele vivido pela própria Dona Casada. O que fica é um vestido de renda que já não veste mais ninguém. Ressignificando-se, o vestido permanece para a Mãe como despojo de sua guerra sentimental, mas também como relíquia d'um perdão impossível.
Drummond revisita o tema do amor como desencontro humano em vários de seus poemas. O amor lhe parece um mistério insondável, absolutamente caprichoso e inconstante: A amante de ontem é a companheira de hoje e a abandonada de amanhã… Para o poeta escrevendo durante a Grande Guerra, os relacionamentos amorosos, quer modernos; quer tradicionais, sempre terminam mal mesmo quando prevalecem. Embora a Mãe do caso sugira ter sido vencedora em sua persistência, tal vitória é uma vitória de Pirro, visto que perde quase tudo para ganhar quase nada. O Pai voltou, é verdade, mas não voltou por amor, sim porque lhe restou buscar um lugar onde ainda fosse considerado alguém. Tampouco a Mãe o recebe carinhosa, sim submissa. Senão por costume cômodo, pela condição social de voltar a ser Dona Casada com a presença do marido em sua casa. Mas o aceita de volta, principalmente, para superar sua adversária, a Dona de Longe.
Não há romantismo na reconciliação, apenas a pacificação das sensações e dos sentimentos:" O barulho da comida /na boca me acalentava". Afinal, o que há ainda para amar n'aquele homem depois de toda a falta de amor que ele demonstrou pela esposa? Ela, no entanto, ainda o ama, talvez muito mais do que antes. Sua volta traz, mais do que um fim, um sentido para seu sofrimento. Ela quer manter tudo como está e vigia, todos os dias, para que a mulher ou o enamoro que levaram seu homem, não voltem nunca mais. O amor, ao menos n'esta fase já madura do poeta, se apresenta antes como um desastre do que como um embevecimento.
- "Triste de quem ama! Há-que estar sempre de sobreaviso…" - é o que parece se impor como ambígua moral da história nos últimos versos.
Betim - 21 05 2021