Do Mito à realidade: O arquétipo da mulher selvagem nos mitos gregos e sua atemporalidade.
Resumo: Há muito tempo observa-se que de fato a arte não é direcionada somente a um indivíduo ou da compreensão deste, mas sim uma espécie de cruzeiro do sul, para aqueles que existirão depois de nós, sem esquecer que sua magia é retratar a realidade, nos fazendo repensar atos, comportamentos, no intuito de utilizar esse caminho artístico para a melhoria do ser humano.
Palavras-chave: Ser humano, tempo, compreensão, realidade.
Encontramos nos escritos gregos das peças Antígona, Medeia e A revolução das mulheres, a vazão da voz de mulheres que estavam além de seu tempo, parâmetros e imposições sociais, que faziam-se ouvir através de suas atitudes e posturas diante de dilemas socioculturais, possuidoras de uma força, que não nos solicita nada além de atenção, nos possibilitando a cura ou resgates através da catarse pois trazem a tona tristezas, perguntas, interesses, desejos, compreensões fazendo surgir então o Arquétipo da Mulher Selvagem. “[…] nos orientam a respeito das complexidades da vida. […] permitem entender a necessidade de reerguer um arquétipo submerso e os meios para realizar essa tarefa.” (ESTÉS,Clarissa Pinkola, 1999, p.30). Os mitos nos trazem a possibilidade de aguçar o olhar para a natureza feminina, que constantemente é tolhida e modelada para se encaixar em um padrão que não faz alusão a complexidade de ser mulher, instigando assim a tantas transformações e exibições de poderosas forças naturais, podendo encontrar comprovações deste arquétipo em imagens/símbolos presentes nas histórias, na literatura, na poesia, na pintura e até mesmo na religião, mulheres que se tornaram párias na defesa de seus ideais. ”Assim, para promover nosso relacionamento de intimidade com a natureza instintiva, seria de grande ajuda se compreendêssemos as histórias como se estivéssemos dentro delas, em vez de as encararmos como se elas fossem alheias a nós.”(ESTÉS, Clarissa Pinkola, 1999, p.41). Como Joana D'arc nascida na comuna de Domrémy-la-Pucelle, heroína francesa da Guerra dos cem anos que foi queimada, viva, em praça pública ao ser acusada de heresia e feitiçaria por um tribunal eclesiástico inglês e francês; e que, depois de 15 anos, o Papa Calixto III reconheceu o erro do tribunal e a inocência da jovem, remetendo a Medeia quando decide que faria tudo o possível para que seu amado fosse bem sucedido em suas empreitadas mesmo que com isso torne-se uma das mais incompreendidas personas da mitologia grega por seus crimes e que perpetua esse arquétipo selvagem na culminância de sua vingança contra o homem que outrora amou tão sem medidas. Mostrando que a mulher selvagem é inerente ao ser feminino, enquanto arquétipo, posto que ambas foram traídas por quem elas tudo entregaram, incluindo sua fé e em troca receberam o abandono e o repúdio respectivamente. “E ela sabe rastrear e correr, convocar e repelir. Ela sabe sentir, disfarçar e amar profundamente. Ela é intuitiva, típica e normativa. Ela é totalmente essencial à saúde mental e espiritual da mulher.”(ESTÉS, Clarissa Pinkola, 1999, p.27 e 28). Pois que, a vida, continua a tentar domesticar e muitas vezes enterrar o instinto feminino simplesmente pelo fato de não o compreender e nem aceitar a liberdade da mulher, sabemos que para o “ser humano” o desconhecido sempre foi sinônimo de perigo, por ser diferente de quem ele é.
“De que maneira a mulher selvagem afeta as mulheres? Tendo a mulher selvagem como aliada, como líder, modelo, mestra, passamos a ver, não com dois olhos. Quando afirmamos a intuição, somos portanto, como a noite estrelada: fitamos o mundo com milhares de olhos.”(ESTÉS,Clarissa Pinkola, 1999, p.26)
É conhecido através de escritos que em tempos antigos o lugar da mulher era relegado a ser dona do lar, recatada, prendada em “seus fazeres” quer sejam de habilidades manuais ou da subserviente e obediente fêmea, que sacia a vontade do marido/macho alfa/provedor; um mundo onde a mulher era quase invisível, infantilizada e objetificada, parideira e cumpridora dos seus deveres de esposa, e aquelas que se negavam aceitar esse posto que não condizia com a natureza tão complexa do ser magnífico e imensurável chamado mulher, acabavam tendo que assumir a sua parcela selvagem, porém, não no seu sentido pejorativo ou inculto, mas sim do natural, do cerne original existente em todos os seres.
A dança mal conseguia ser tolerada, se é que o era, por isso elas dançavam na floresta, onde ninguém podia vê-las, no porão ou no caminho para esvaziar a lata de lixo. A mulher que se enfeitava despertava suspeitas. Um traje ou o próprio corpo alegre aumentava o risco de ela ser agredida ou de sofrer violência sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam os seus próprios ombros.[…] em que lacerações espirituais de mulheres profundamente exploradas eram denominadas ”colapsos nervosos”, em que as meninas e as mulheres que vivessem apertadas em cintas, amordaçadas e contidas, eram consideradas “certas”, enquanto aquelas que conseguiam fugir da coleira uma ou duas vezes na vida eram classificadas de “erradas”.(ESTÉS,Clarissa Pinkola, 1999, p.18)
O estereótipo de louca ou avançada demais para o seu tempo quando a mulher não se submete aos ditames de uma sociedade extremamente preconceituosa e mutiladora, que a impede de florescer em todos os âmbitos do seu esplendor por ser, sim, a matéria primordial da humanidade, da força para lutar por seus ideais, do ventre fecundo que vai além do próprio limite, que na realidade, mostra-se inalcançável posto que sempre é ultrapassado, no desejo de conseguir ir além do esperado e ser mãe, ser pai, ser profissional, ser mulher. Exatamente o que vemos na comédia de Aristófanes - A revolução das mulheres - onde Valentina, personagem principal, se reúne com as demais mulheres de Atenas se transvestem de homens, com as roupas de seus maridos e seguem para a assembleia, local onde somente homens tinham o direito de entrar e debater sobre assuntos políticos e que definiam a vida dos demais atenienses; no intuito de conseguir reverter esse quadro de desigualdade de classes e de reconhecer a mulher como ser possuidor de qualidades e aptidão favorável a administração do país; o que nos vai remeter também a Maria Quitéria de Jesus, nascida na fazenda Serra da Agulha, freguesia de São José na Bahia; primeira heroína de guerra da independência na Bahia, que vestida de soldado alistou-se no batalhão de “voluntários do príncipe Dom Pedro”, lutou ao lado de compatriotas e foi condecorada com a Ordem Imperial do Cruzeiro.
Quando as mulheres reafirmam seu relacionamento com a natureza selvagem, elas recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia, uma visionária, um oráculo, uma inspiradora, uma intuitiva, uma criadora, uma inventora e uma ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundos interior e exterior.[...]Não importa o que aconteça, essa instrutora, mãe e mentora selvagem dá sustentação às suas vidas interior e exterior. (ESTÉS,Clarissa Pinkola,1999, p.21)
Já na mitologia grega de Antígona, começa a ser percebido o estereótipo também selvagem, mas antes cuidador, zelador e devotado no momento que esta caminha e se dedica em seguir e cuidar do Pai desafortunado em contrapartida com aquela mulher que tem em suas mãos e unicamente suas, o controle de suas ações quando se nega aos caprichos do Tio e Rei Creontes, ao dar a tripla libação a seu falecido irmão Polinices findando com a ênfase da alma livre da mulher selvagem quando toma as rédeas da decisão de sua inevitável morte libertando-se em cada cena, da caixa, sociocultural onde a mulher sucumbe ao ser objeto submisso que se entrega aos caprichos sociais. Assim como a vida de Marielle Francisco da Silva ou como passou-se a ser conhecida Marielle Franco, nascida no Rio de Janeiro, mãe, periférica/favelada, formada em sociologia, tornou-se vereadora eleita em 2017, conhecida internacionalmente por formular projetos de Leis e pautas em defesa dos direitos da população LGBTQIA+ bem como das mulheres pretas e faveladas; e que mesmo sabendo o fim que poderia ter por sua trajetória de lutas em causas humanas, no intuito de não somente melhorar o presente daquelas iguais a ela, mas também de preparar um futuro melhor e mais brilhante para suas filhas e demais mulheres que viriam depois dela, não se acovardou, não pensou em desistir ou de voltar a trás, simplesmente seguiu, contudo, como incomodou aqueles que não desejam e nem aceitam mudanças, principalmente se liderada por uma fêmea, teve sua vida ceifada por treze disparos de uma metralhadora 9mm, na noite de 14 de março de 2018, enquanto voltava de um evento onde estava fazendo o que gostava e achava que valia a pena lutar, negritude, representação e feminismo.
Essas rupturas são uma doença não de uma era, nem de um século, mas transformam-se em epidemia a qualquer hora e em qualquer lugar onde as mulheres se vejam aprisionadas, sempre que a natureza selvática tiver caído na armadilha. Uma mulher saudável assemelha-se muito a um lobo, robusta, plena com grande força vital, que dá a vida, que tem consciência do seu território, engenhosa, leal, que gosta de perambular. (ESTÉS,Clarissa Pinkola, 1999, p.26)
Não fomos feitas para sermos frágeis como prega o estereotipo sociocultural, nem submissas as vontades ou desejos dos outros; independente de linha temporal, continuamos sendo quem fomos projetadas para ser, movimento, energia que impede o estagnação mental, histórica, que quebra paradigmas e desfaz ligações e contextos limitantes da expansão do ser como um todo, independente de ser biologicamente mulher possuidora dos cromossomos XX, posto que sim, a genética afirma na fecundação o ovulo possuirá 23 cromossomos, recebe outros 23 cromossomos advindo do espermatozoide, criando assim o embrião com 46 cromossomos, dispostos em 23 pares, contudo, o cromossomo Y responsável pelas características masculinas ainda não esta ativo, mesmo que o sexo da criança seja definido no momento da concepção, mas somente irá “ativar” na formação do embrião depois da quinta semana de gestação. E é até mesmo nesse momento, de fecundação, de formação, que somos, apenas, ali existimos e dentro de cada ser humano existe essa parcela selvática da mulher, que moverá a história humana para além do esperado, programado ou imaginado, assim como os homens gregos que escreveram essas peças “Mitos” incríveis e colocam ênfase na força, no posicionamento, na engenhosidade, na doação, na fúria, no desejo e tantas outras características da mulher selvagem, dando voz, a parcela que existia em cada um deles.
A mulher selvagem como arquétipo é uma força inimitável e inefável que traz para a humanidade um abundante repertório de ideias, imagens e particularidades. O arquétipo existe por toda a parte e , no entretanto, não é visível no sentido comum da palavra. O que pode ser visto dele no escuro não é visível à luz do dia. (ESTÉS,Clarissa Pinkola, 1999, p.47)
Referências Bibliográficas
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com lobos. 12.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.