O RAP DE KAROL CONKA: Questões sociais com ritmo e poesia no Ensino Fundamental.

Resumo: Este trabalho tem como tema a leitura de “textos literários”, de forma mais específica, a leitura do gênero rap. O rap é uma vertente da cultura hip-hop, um movimento que propõe uma ação de protesto político e social para o exercício da cidadania. Nesse caso, considerando o contexto social de duas turmas do oitavo ano do Ensino Fundamental de escolas públicas; a primeira de Lago da Pedra-MA e a segunda de Miguel Alves-PI. Este trabalho tem como objetivo discutir os resultados da aplicação da sequência básica de Cosson (2016) para o rap “A mão que aponta”, de Karol Conka. Para alcançar esse objetivo, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória e bibliográfica, de cunho qualitativo, com base nos estudos culturais no tocante à literatura periférica e no letramento literário. Assim, fundamenta-se principalmente nos seguintes autores: Souza (2011), Cevasco (2005), Motta; Balbino (2006) e Cosson (2016). Os resultados apontam a visão marginalizada que a maioria dos alunos possui sobre o rap. Além disso, apresentam dificuldades de compreensão ao inferir os significados presentes na letra. Por outro lado, os alunos que conhecem o gênero, conseguem reconhecer a crítica social e relacioná-la com a realidade vivenciada. Portanto, ressaltamos a importância de estudos que visem à leitura crítica e reflexiva de textos relacionados com a sociedade.

Palavras-chave: Leitura; Texto literário; Estudos Culturais; Rap.

Introdução

No ensino de língua portuguesa, em relação ao ensino de leitura do texto literário, prevalece o uso da literatura canônica, no entanto, a restrição a essa prática não possibilita ampliar o horizonte de expectativas dos educandos que vivem contextos sociais diversificados. Nesse cenário, é fundamental a abordagem de gêneros que ampliem a visão dos alunos, visto que a escola tem o papel de prepará-los para o exercício da cidadania.

Assim, os presente trabalho tem como objetivo apresentar o resultado de uma oficina de leitura desenvolvida para a discussão crítica sobre questões sociais e culturais presentes no rap “A mão que aponta”, de Karol Conka, aplicada em duas turmas de oitavo ano do Ensino Fundamental, no caso, em uma turma de escola pública de Lago da Pedra - MA e na outra, de Miguel Alves-PI. Além disso, teve como meta motivar os alunos para a escuta e leitura do texto, orientando-os para a produção de material com características do grafite, a fim de que pudessem expressar artisticamente e oralmente sobre suas impressões.

A música expressa os traços culturais e sociais da sociedade, representando e/ou interferindo nas relações das pessoas. Nesse sentido, cabe aos professores, como sujeitos ativos no processo de ensino e aprendizagem, a capacidade de suscitar reflexões e estabelecer relações com o uso de textos literários que evidenciam a discussão acerca das diversas questões sociais. Por isso, a necessidade de abordar o gênero rap em sala de aula, numa tentativa de aproximar as temáticas sociais por meio da apreciação estética da música, a leitura e, por fim, a discussão e reflexão sobre os temas.

Nessa perspectiva, a relevância deste trabalho consiste em proporcionar a discussão de um texto literário em sala de aula no âmbito dos estudos culturais, para isso, com base em uma vertente do hip-hop, no caso, o rap. Sendo assim, tendo em vista três pontos centrais na abordagem: (i) o rap no contexto dos estudos culturais; (ii) o rap como texto literário: ritmo e poesia e (iii) o letramento literário.

Sobre o conteúdo que trata o rap no contexto histórico dos estudos culturais, o trabalho utilizou como referencial teórico as seguintes fontes: Cevasco (2005) que reconhece a importância de elementos externos no ato de produção como uma forma de compreensão do funcionamento de um determinado grupo social; Cosson (2016) que trata do letramento literário por meio da sequência básica, a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC) com ênfase no campo artístico-literário para o ensino de leitura e, por fim, Souza (2011) e Motta; Balbino (2006) que abordam sobre o hip-hop.

Para realização do trabalho desenvolveu-se uma pesquisa exploratória e bibliográfica de cunho qualitativo. Ressalta-se ainda, a experiência docente dos profissionais envolvidos, das observações realizadas em sala de aula e do conhecimento que possuem da realidade social que os alunos se encontram inseridos.

2 O rap no contexto dos estudos culturais

A realização do trabalho de leitura do rap surgiu da necessidade de discutir as questões sociais que são comuns às vivências do educando, pois são notórias as inquietações que os alunos apresentam mediante o contexto social e econômico em que estão inseridos. Nessa perspectiva, utiliza-se os estudos culturais como viés teórico para a leitura do rap na condição de “texto literário”.

Assim, o objetivo desta seção é discorrer sobre os estudos culturais e sobre o movimento hip-hop, com a finalidade de ancorar de forma teórica e sistemática o texto elencado para a realização da abordagem em sala de aula. Nesse caso, em relação aos estudos culturais, conforme Cevasco (2005):

[...] se a cultura não é o reduto de uma minoria, mas um bem e uma realização sociais, é preciso estender os meios de produção e de compreensão culturais a todos. Se as formas da cultura se engendram na sociedade não se pode entender nenhuma produção cultural, seja a criação de um sindicato ou de uma grande obra de arte, isolada de seu chão social (CEVASCO, 2005, p. 270)

Com isso, nota-se a abrangência possibilitada com estudos culturais, visto que, não restringe-se a uma abordagem dos meios culturais produzidos e consumidos pelas minorias, classificados como aqueles que são tradicionalmente aceitos por um grupo elitizado e que tem acesso aos bens de consumo, sendo que, qualquer manifestação que não esteja em conformidade com o que é tido como culto, assume uma classificação marginalizada e desprestigiada.

Cevasco (2005, p. 270) ressalta que “fazer crítica cultural é também apreender o funcionamento real de uma determinada sociedade”. Com base nisso, percebe-se no movimento hip-hop uma excelente forma para o desenvolvimento de uma sequência didática, tendo em vista a prática de leitura e consequentemente a discussão das questões sociais que fazem parte do movimento. Dessa forma, a seguir, apresentamos um breve histórico acerca do movimento hip-hop.

O hip-hop tem assumido um papel relevante na formação da identidade de determinadas comunidades e grupos. A influência desse movimento ocorre por meio do grafite, da dança e do texto, mesmo que, em alguns casos, não se manifeste de forma sistemática, sendo indiscutível o alcance que este movimento tem atingido.

O surgimento do movimento hip-hop aconteceu no final dos anos 60 nos Estados Unidos, na época, o bairro do Bronx, Nova Yorque, era dominado por gangues. Nesse cenário, Kevin Donavan, produtor de festas no Bronx e que ficou conhecido como Afrika Bambaataa, exibia seus sons em festas no bairro, que de acordo com Motta; Balbino (2006, p. 12) “vão aos poucos tomando o espaço das ruas, enquanto as gangues são esquecidas”.

Motta; Balbino (2006, p. 13) afirmam que nesse mesmo período surgiu um partido chamado de Panteras Negras, que apoiava-se nos ideais de Martin Luther King, Malcom X, no socialismo de Karl Marx e no líder comunista Mao Tsé-Tung. Conforme Motta; Balbino (2006, p. 13), o partido tinha como objetivo que os negros decidissem “seus rumos e de suas comunidades sem a influência dos brancos”, o que desencadeou na afirmação da cultura negra norte-americana.

Nesse contexto de formação cultural, Motta; Balbino (2006, p. 13) afirmam que o território era dominado por gangues, mas tornou-se um espaço de disputas de dança e protesto sem violência, sendo que, o trabalho de Afrika Bambaataa resultou no movimento hip-hop.

Em 12 de novembro de 1973, nascia a Zulu Nation. Somando os jovens que abandonaram as gangues, Bambaataa fundou inicialmente a Young Organizations, organização de jovens, com ideias pacifistas de autoafirmação e valorização da juventude afrodescendente. Desta forma, cada vez mais os participantes das festas do quarteirão reuniam-se em torno dele, ajudando na disseminação do que é hoje a maior posse de hip-hop mundial (MOTTA; BALBINO, 2006, p. 13)

As autoras afirmam que a união das quatro expressões artísticas (o MC, o DJ, o grafite e b. boys) foi denominada por Bambaataa como hip-hop, assim, com o intento de “repensar a situação política dos Estados Unidos e resgatar os valores defendidos pelos Panteras Negras para combater as guerras e abusos civis” (MOTTA; BALBINO, 2006, p.17). Nesse cenário, segundo as autoras, é por meio do rap que é verbalizado as ideias, indignações e protestos inerentes ao movimento hip-hop.

Nessa mesma perspectiva, conforme Souza (2011):

A face mais expressiva do hip-hop está ancorada no rap – a poesia cantada que, para existir, precisa da junção de dois elementos: o DJ e o MC, o poeta que escreve e canta as letras de rap; já o DJ dá o tom ao discurso, que geralmente tematiza as desigualdades sociais, racismo, discriminação e violências de toda sorte. (SOUZA, 2011, p. 16)

Em virtude das questões sociais que são contempladas no rap, para o trabalho com leitura na sala de aula, selecionamos o texto de Karol Conka, “A mão que aponta” (Ver anexo A), pelo fato de não apresentar uma questão social definida, o que possibilita aos alunos estabelecer relações com as questões sociais que possuem conhecimento.

Consideramos importante o trabalho com a leitura do rap, principalmente pela possibilidade de inserir na sala de aula, a prática de leitura de um texto que apresenta as características formais de um texto literário, no entanto, não é privilegiado, o que possibilita ao aluno que apresente suas impressões com essa prática.

Portanto, com base nesse exposto, na próxima seção, discorremos acerca da elaboração e planejamento do trabalho com leitura, que tem como fundamento Cosson (2016), para o trabalho de leitura do texto “A mão que aponta”, de Karol Conka.

4 A leitura de textos literário na base nacional comum curricular

Para o trabalho com a leitura do rap em sala de aula, torna-se pertinente ressaltar os preceitos da BNCC em relação ao componente Língua Portuguesa. Nesse caso, com base numa perspectiva interacionista de linguagem, a proposta desse componente assume o texto como unidade central, sendo que, além disso, deve proporcionar a ampliação dos letramentos de forma que permita aos estudantes ampliar suas capacidades de uso da língua nas diversas práticas de linguagem.

Nesse cenário, a BNCC estipula que as práticas de ensino tenham como referencial os seguintes eixos: (i) leitura, (ii) produção de textos, (iii) oralidade e (iv) análise linguística/semiótica, sendo que, estejam inseridos nos seguintes campos: (i) artístico-literário, (ii) práticas de estudo e pesquisa, (iii) jornalístico-literário e (iv) atuação da vida pública. Nesse contexto, o rap integra-se no eixo leitura e no campo artístico-literário.

No âmbito do eixo leitura, as práticas de linguagem pressupõem a interação com os textos e sua interpretação com diversas finalidades. Nesse caso, as práticas de leitura se inter-relacionam em ações que evidenciem o uso e a reflexão. Assim, para a discussão teórica e metodológica deste trabalho, percebe-se no eixo leitura o tratamento estético que o texto também assume: “fazer apreciações e valorações estéticas, éticas, políticas e ideológicas, entre outras, envolvidas na leitura crítica de textos verbais e de outras produções culturais.” (BRASIL, 2018, p. 70) e, além disso:

Mostrar-se ou tornar-se receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativa, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor. (BRASIL, 2018, p. 72)

A BNCC assume uma perspectiva de trabalho com base na recepção, o que demonstra a necessidade de romper com práticas tradicionais de ensino que utilizam apenas os textos canônicos e ações voltadas para a estrutura ou para a leitura que visa apenas a compreensão de elementos superficiais. Assim, considerando o eixo leitura no campo artístico-literário para os anos finais do Ensino Fundamental, é importante destacar que nesse campo, de modo geral, tem por finalidade possibilitar “o contato com as manifestações artísticas e produções culturais em geral, e com a arte literária em especial, é oferecer as condições para que eles possam compreendê-las e fruí-las de maneira significativa” (BRASIL, 2018, p. 155).

Nesse contexto, em que o rap se insere nas práticas de letramento como manifestação cultural e tem em sua estrutura os elementos formais de um poema, o trabalho com esse texto enquadra-se na perspectiva da BNCC no eixo leitura no âmbito do campo artístico-literário. Com isso, possibilitando aos educandos ampliar suas habilidades leitoras, tais como:

Inferir a presença de valores sociais, culturais e de diferentes visões de mundo, em textos literários reconhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção (BRASIL, 2018, p. 155)

Considerando os aspectos mencionados na BNCC acerca da leitura, a escolha do rap como texto literário tem como finalidade ampliar as expectativas de horizontes dos educandos em relação aos aspectos sociais, cultuais e de identidade. Nesse caso, configura-se na perspectiva do letramento literário, assim, defende-se o desenvolvimento de oficinas que tenham como pressuposto metodológico a sequência básica de Cosson (2016).

De acordo com Cosson (2016, p. 17), a leitura do texto literário tem um papel humanizador, pois trata-se de uma experiência que permite o reconhecimento da comunidade e dos indivíduos nela inseridos, ou seja, por meio da ficção é possível expressar vivências que permitem a reflexão acerca da vida das pessoas em sociedade e do próprio leitor. Nesse caso, o autor problematiza o fato de que as escolas restringem o trabalho de leitura do texto literário para as características históricas e/ou suas formas, por isso, a importância do desenvolvimento de práticas escolares que visem o letramento literário, sendo assim, uma de suas propostas é a sequência básica.

A sequência básica de Cosson (2016, p. 51) organiza-se em quatro etapas, que são: (i) motivação, (ii) introdução, (iii) leitura e (iv) interpretação. O conjunto desses passos resulta num trabalho sistemático para o texto literário, tendo em vista, principalmente, a formação de um leitor humanizado. Nessa perspectiva, a ênfase é voltada para a experiência leitora do aluno, ao invés do contexto histórico, a biografia do autor e os elementos formais do texto.

A finalidade da motivação é possibilitar a aproximação do texto a ser lido com o aluno, para isso, deve-se desenvolver situações críticas e lúdicas que visem prepará-lo para o momento da leitura. O segundo passo é a introdução no qual faz-se a apresentação do autor e da obra, nesse caso, Cosson (2016, p 61) chama a atenção para que a biografia do autor não assuma o foco principal, visto que, para o autor:

[...] é preciso que o professor tenha sempre em mente que a introdução não pode se estender muito, uma vez que sua função é apenas permitir que o aluno receba a obra de uma maneira positiva. Desse modo, a seleção criteriosa dos elementos que serão explorados, a ênfase em determinados aspectos dos paratextos e a necessidade de deixar que o aluno faça por si próprio, até como uma possível demanda da leitura, outras incursões na materialidade da obra, são características de uma boa introdução (COSSON, 2016, p. 61).

O terceiro passo da sequência básica é a leitura. Para Cosson (2016, p. 62), “a leitura escolar precisa de acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido”. Nesse aspecto, é fundamental que o momento de leitura seja direcionado pelo professor, ao invés e apenas solicitar a leitura do texto sem um objetivo definido.

A interpretação é o último passo da sequência básica. Nessa etapa, o professor direciona o trabalho para que os alunos apresentem suas inferências por meio de ações diversas, ou seja, a intepretação pode ser apresenta por de músicas, encenação e outras formas que superem o tradicional ressumou resenha do texto. Para o autor, existem dois momentos no passo da interpretação, um interior e outro exterior:

O momento interior é aquele que acompanha a decifração, palavra por palavra, página por página, capítulo por capitulo, e tem seu ápice na apreensão global da obra que realizamos logo após terminar a leitura [...]. O momento externo e a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido de determinada comunidade (COSSON, 2016, p. 65).

Nessa perspectiva, nota-se que as possiblidades de registro e interpretação são diversificadas, assim, o uso da sequência básica é muito importante no desenvolvimento de ações voltados para a leitura do texto literário. Portanto, considerando os aspectos mencionados, a seguir, a descrição da sequência elaborada para o gênero rap e, em seguida, os resultados.

5 O rap na sala de aula: discutindo questões sociais com ritmo e poesia.

Neste trabalho, o rap é classificado como “texto literário” em virtude da perspectiva dos estudos culturais e de sua forma, visto que, conforme Souza (2011, p. 118), “no hip-hop, a poesia e o ritmo ganham destaque quando, juntos, dão origem ao rap”. Nessa perspectiva, o rap mesmo quando é apenas lido, a sonoridade, típica dos poemas com rima, faz-se presente, além disso, tem como principal discussão temática as questões da sociedade, tais como a pobreza, a marginalidade, o preconceito e outros.

Nesse cenário, para o desenvolvimento da leitura do rap, foi utilizado a sequência básica em duas turmas do oitavo ano do Ensino Fundamental, no caso, uma turma de uma escola pública de Lago da Pedra-MA e uma turma de Miguel Alves-PI. No caso, a sequência organizada em 3 oficinas. Na primeira, desenvolveu-se as atividades voltadas para a motivação e introdução, na segunda oficina, a leitura e por último, a interpretação.

Assim, o objetivo geral da sequência é mobilizar os alunos para a leitura do rap com a finalidade de discutir acerca das questões sociais presentes no texto. Sendo assim, em seguida, apresenta-se a descrição da forma como a sequência foi estruturada e, por fim, os resultados da análise que forma obtidos com a aplicação das ações em sala de aula.

Na primeira oficina, as atividades são voltadas para a motivação e a introdução. Inicialmente, a proposta para a motivação foi a realização de uma discussão sobre as adversidades e dificuldades presentes na sociedade, instigando os alunos por meio de um “Bate Papo sobre a Vida”, com a finalidade de elencar algumas questões sociais, tais como: a pobreza, o analfabetismo, o racismo, a homofobia, etc. e após esse momento, a reflexão com base nos seguintes versos do texto “A mão que aponta é a mesma que vai aplaudir / Torcendo para que a desigualdade desapareça”, com o objetivo de relacionar com o que foi discutido, em seguida, na introdução, a proposta foi a discussão de forma expositiva sobre o hip-hop (MC, DJ, grafite, break) e a biografia da rapper Karol Conka.

Na segunda oficina, o processo de leitura foi estruturado da seguinte forma: (i) orientação para leitura silenciosa; (ii) solicitação para leitura em voz alta; (iii) reprodução do texto áudio (música); (iv) leitura performática; (v) discussão sobre as impressões sobre a leitura e escuta do rap (vi) registro dos versos que mais chamaram a atenção deles e os que tiveram dificuldade de compreensão, relacionando com as questões sociais que foram discutidas.

Na última oficina da sequência, a interpretação, os alunos em grupo, em dupla ou individualmente, elegeriam um ou mais versos do texto para que elaborassem um cartaz com as características do grafite e apresentassem para a sala. Essa oficina possibilitou analisar o nível de compreensão dos alunos acerca do rap em seu aspecto temático. Assim, a sequência apresentada ficou definida nesses parâmetros, com o objetivo de ser aplicado nas turmas de oitavo ano das duas escolas no período das duas primeiras semanas do mês de junho de 2017.

3.1 Descrição e análise da sequência na escola de Lago da Pedra - MA (Escola A).

Os participantes da pesquisa da Escola A são alunos de uma turma do oitavo ano do Ensino Fundamental do município de Lago da Pedra e é composta de por 28 alunos. A escola é situada na área urbana e a maioria dos participantes são moradores dos bairros próximos.

Dentre as motivações, pode-se citar que a escolha do rap ocorreu em virtude de que o movimento hip-hop faz parte das práticas de letramento de muitos alunos, embora não exista uma comunidade de hip-hop na referida cidade. Considerando os aspectos desse campo e dos participantes, a seguir, os resultados.

Na primeira oficina, a motivação e introdução ocorreram conforme o planejamento. Na motivação, apenas seis alunos manifestaram suas apreensões sobre as questões sociais e culturais, sendo que, partindo de exemplos pessoais, vivenciados e observados, ressaltaram problemas relacionados às drogas, saúde, bens de consumo, corrupção, pobreza e racismo, sendo que, os demais alunos concordaram com as respostas. Nesse exposto, um fato interessante é o de que nenhum dos participantes citou a violência e os crimes que ocorreram em alguns bairros da cidade.

Em seguida, ao explorar dois versos do texto “A mão que aponta” - sem a cópia do texto e sem ouvir o áudio - apenas dois participantes reconheceram como trechos de rap, visto que, ao serem interrogados, afirmaram que ouviam o “estilo” e que eram acusados por pais e amigos de “ouvir música de vagabundo” ou “música de marginal”, mas que gostavam das “letras”, porque “fala da realidade”. Após essa explicitação, outros alunos afirmaram que conheciam o gênero e que tinham a mesma impressão, no entanto, os que não conheciam ficavam atentos para as informações, mas sem opinar.

Logo após, na etapa introdução houve a exposição suscinta sobre o movimento hip-hop e a biografia da rapper Karol Konka, constatou-se que a maioria dos alunos entendiam o hip-hop apenas como um estilo de dança. Por outro lado, os participantes relacionaram com outros artistas brasileiros e começaram a apontar a discussão temática relacionada com a sociedade que é inerente ao movimento, sendo um aspecto positivo, pois oportunizou aos alunos romper com suas expectativas de leitura e consequentemente manifestarem seus pontos de vista.

Na oficina de leitura, todos os alunos receberam uma cópia do texto e sem ouvir o áudio, realizaram a leitura silenciosa e em voz alta. Em relação à recepção, os alunos demonstraram surpresa com a leitura, pois a maioria dos participantes tinham a impressão de que o rap tratava e representava o “mundo do crime”. Percebe-se que os alunos ao explorarem o texto, se manifestaram inseguros para apresentar suas impressões, principalmente, devido ao uso das figuras de linguagem, nesse caso, nota-se a possibilidade de futuros trabalhos com essa temática.

Na última fase da sequência, a interpretação, o trabalho foi realizado individualmente, nesse caso, cada aluno recebeu uma folha A4 e ficou disponível lápis de cor, giz de cera e pinceis de forma coletiva para que escolhessem um trecho da música e produzissem uma imagem com características do grafite, com isso foram obtidas as seguintes produções: 1 (um) participante fez o trabalho apenas como forma de “cumprir atividade”, por outro lado, a maioria dos participantes relacionou o trecho escolhido com temas como pobreza, educação, racismo.

Os participantes, que tinham conhecimento acerca do rap, elaboraram frases autorais e relacionaram com outros textos do mesmo gênero. Nesse caso, a imagem abaixo (Figura 1) trata-se de um trabalho de interpretação de um aluno que não utilizou de argumentos para explicar sua produção. Vale ressaltar que os alunos foram orientados a também justificar a produção, apesar de não ocorrer resistência por parte dos alunos, nota-se a limitação de refletirem acerca das possibilidades de associar trechos da letras com questões da sociedade, conforme discutido nas oficinas anteriores, o que reforça a importância de trabalho contextualizados com as questões sociais em que os alunos estão inseridos.

Assim, na Figura 1, o aluno optou em evidenciar o título do texto centralizado dentro de um balão que expressa um tom de voz semelhante a um grito, porém não justificou de forma ampla a escolha do trecho, provavelmente, devido às limitações de reflexão nesses casos.

FIGURA 1 – Produção do aluno 1 da escola A

Fonte: Dados da pesquisa

Nesse trabalho e em outros, nota-se uma prevalência do uso do título do texto, o que se configura como uma dificuldade durante a leitura na construção dos significados que o rap possibilita. O participante argumentou de forma suscinta que a imagem tratava do fato de “ser julgado pelas coisas que faz”, se restringindo a esse argumento. Contrapondo a essa produção, a figura abaixo foi elaborada por um aluno que possui em suas práticas de letramento o movimento hip-hop.

FIGURA 2 - Produção do aluno 2 da escola A

Fonte: Dados da pesquisa

A figura (2) é uma produção de um dos alunos que conhece o gênero rap, ao argumentar sobre a mensagem, enfatizou a frase autoral “Antes de amar, ame primeiro você”, explicando a necessidade de que para amarmos quem é diferente, temos que nos amar primeiro. A segunda frase “Estudar é melhor que reclamar”, o aluno explicou que era uma crítica às pessoas que tem oportunidade de estudar e não aproveitam. Ao ser interrogado sobre a imagem, descreveu que trata-se da personagem Curinga, do filme Esquadrão Suicida de 2016, no qual ressalta o comportamento inapropriado de quem não estuda.

Com base nesse exposto, notamos que os alunos que possuem práticas de letramento referente ao movimento hip-hop e ainda que não ocorra de forma sistemática, possuem um repertório que possibilitou construir os significados do texto de forma ampla. Acerca da análise formal do texto, nota-se que os participantes tiveram dificuldades de compreensão ao construir os significados do texto devido ao uso de figuras de linguagem, com isso, percebe-se a possibilidade de trabalhos voltados para esse aspecto da língua. A seguir, os resultados da aplicação da sequência numa turma do oitavo ano de uma escola de Miguel Alves - PI.

3.2 Descrição e análise da sequência na escola de Miguel Alves – PI (Escola B).

A turma do oitavo ano do Ensino Fundamental da escola de Miguel Alves é composta por 15 alunos entre 13 a 18 anos. A escola fica situada na zona rural do município, cerca de 10 km de distância. O gênero rap e a cultura hip-hop não estão presente no livro didático adotado na escola e nem nas orientações curriculares orientadas pelo município, por isso a pretensão de aproximar o gênero da comunidade escolar.

No primeiro momento, denominado de processo de motivação e introdução, realizado nas duas primeiras aulas, foi realizado uma exposição de dificuldades e problemas sociais enfrentados na vida cotidiana. Nesse momento, os alunos foram motivados a falarem sobre problemas e dificuldades que reconhecem ou enfrentam nas suas vidas. Cerca de metade da turma se posicionou e expuseram problemas, como as dificuldades de atendimento no posto de saúde local, as condições de moradia, a situação de migração de jovens e pais de família em busca do sustento da família, além de questões como o preconceito e a violência.

Logo em seguida, após a distribuição de fragmentos do texto e solicitação aos alunos para que fizessem a associação com questões apresentadas anteriormente, eles conseguiram fazer inferências e interpretações mesmo que superficiais. Mas quando questionados sobre o que se tratava os trechos do texto recebido, um aluno respondeu tratar-se de um poema, devido às rimas, e outros não sabiam opinar ou concordaram com a resposta dada pelo primeiro aluno.

Depois disso, foi apresentado um trecho do áudio da música, e ao serem questionados sobre o gênero musical, apenas 01 aluno associou ao rap, 10 alunos disseram conhecer a melodia, mas não sabiam a denominação do gênero e 04 alunos disseram nunca ter escutado este tipo de música. Vale ressaltar, que os alunos que manifestaram desconhecimento do gênero, pertencem à religião evangélica.

Em seguida, foi discorrido sobre contexto histórico do hip-hop e suas vertentes, realizado algumas considerações mais detalhadas sobre o rap e o grafite e das temáticas presentes nesses gêneros. No momento da leitura, foi distribuído o texto, solicitado uma leitura oral; em voz alta e, por fim, acompanhada com a melodia. Os alunos não identificaram pelo som a rapper Karol Conka, somente depois de apresentar a foto da artista, alguns reconheceram e lembraram da sua participação em programas de TV.

Na última e terceira etapa, a interpretação, o texto foi retomado e solicitado que os alunos fizessem a seleção de trechos que chamaram atenção e selecionassem palavras desconhecidas por ele. Após a apresentação desta seleção, verificamos a dificuldade de compreensão de versos como “Jogo de futilidades ofusca a capacidade”; “Não absorvo o lixo, sei bem me virar”; “ Se eu tô na chuva, fico! me tornei impermeável”; nessa ocasião foi apresentado considerações acerca do texto, o uso figurativo das palavras, a linguagem informal e outros elementos importantes na composição textual.

Concluída a etapa, solicitamos que os alunos fizessem representação dos versos, através da produção de letras de rap ou de imagens. Todos os alunos optaram pela representação da sua compreensão através de imagens. Para exemplificação apresentamos um trabalho realizado pelo grupo.

FIGURA 3 - Produção do aluno 1 da escola B

Fonte: Dados da pesquisa

Observa-se a escolha dos alunos pelos trechos “a mão que aponta é a mesma que vai aplaudir” e pelo título do texto, bem marcado nas produções. Verificamos também, o forte apelo pela “paz”, “união” e “luta”. Outro fato evidenciado, que após as produções, no momento de socialização, os alunos revelaram um certo preconceito que muitos pais têm acerca do gênero, rotulando a pessoas de comportamento duvidoso e fora do que é considerado “padrão” para a sociedade. Percebemos assim, a motivação pela aula e pelo conteúdo apresentado. Posterior a realização da oficina, alguns alunos já interpelaram outros colegas sobre o preconceito em relação a gênero musical em momentos coletivos da escola, demonstrando a assimilação dos objetivos propostos.

6 Considerações finais

As atividades e discussões realizadas em sala de aula, tanto no município de Lago da Pedra - MA quanto no de Miguel Alves - PI, baseado na leitura de texto e escuta do rap, proporcionaram aos alunos uma ampliação de suas capacidades de reflexão e interação com a linguagem, desenvolvendo habilidades linguísticas e discursivas e, consequentemente leitores proficientes e capazes de interagir e modificar seu meio social.

A aplicação das oficinas nos permitiu a compreensão de que o trabalho em sala de aula que considera situações próximas ou não da realidade do aluno, ajuda-os a reconhecer uma realidade que pode ser do seu meio ou de outras culturas, e como cada grupo se organiza e manifesta sua visão e captação do mundo. Diante dos resultados apresentados com o processo de realização das oficinas, nota-se que o objetivo elencado foi alcançado, pois houve a forte interação do leitor com o texto, a busca da compreensão e a empolgação no momento da representação da realidade.

Observa-se também, que é preciso um maior incentivo ao trabalho com o texto literário, pois é visível a fragilidade na interpretação e compreensão da linguagem subjetiva que é compreendida de uma forma superficial, revelando grande deficiência no trabalho com os textos em sala de aula, e quando é feito, o trabalho centra-se, na sua maioria, no estudo estrutural.

Com isso, conclui-se que estimular a leitura por meio de trabalhos que privilegiem os vários aspectos do texto literário e seus contextos, requer do professor conhecimento teórico e prática metodológica que aplicada ao conhecimento que possui da realidade, leva os alunos a melhorar seu rendimento escolar. Sendo assim, defende-se que a escola tem que trazer para a sala de aula a realidade do aluno, provocar reflexões e posicionamentos, para isso, o uso de textos literários que rompam com os horizontes de expectativas é fundamental no processo de ensino e aprendizagem dos alunos.

Referências

BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília, DF, 2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf>. Acesso em: abr. 2017.

CEVASCO, Maria Elisa. Literatura e estudos culturais. In BONNICI, T.; ZOLIN, Lúcia O. (org.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2005, pp. 267-274.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2016.

CONKA, Karol. Letras: a mão que aponta. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/karol-conka/2004413/>. Acesso em: 10 abr. 2017.

MOTTA, Anita; BALBINO, Jessica. Hip-Hop: a cultura Marginal. Do povo para o mundo. São João da Boa Vista, UniFAE, 2006.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de Reexistência: poesia, grafite, música, dança: HIP-HOP. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

Roggerio Batistta
Enviado por Roggerio Batistta em 05/05/2021
Reeditado em 05/05/2021
Código do texto: T7248780
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