Ler e escrever é despertar, é se libertar.

Início dos anos 80, eu morava em Itapevi, em um bairro bem distante do centro da cidade. Minha família era pobre não tinha acesso aos livros ou biblioteca. Meu pai, apesar de ter sido um homem letrado, estudado não tinha um emprego que ganhasse um salário decente para nos sustentar. Comprar um livro, menos ainda, mas dava para viver. Usei o pronome “nos”, porque não era somente eu, a filha, mas éramos oito e a situação econômica não era das melhores... Nenhum um pouquinho!

Não obstante, minha vida não era de todo ruim, não posso reclamar. Isso me faz viajar num passado tão longínquo... Tão distante. Lembro-me de minha infância, das minhas brincadeiras "solitárias" no meio das plantas, tinha um contato quase íntimo com a natureza... Ah, a natureza! Sempre me encantava e ainda me encanta.

Assim como Graciliano Ramos, eu também era praticamente analfabeta aos nove anos. Confesso, não tive experiências muito boas quando embarquei no mundo escolar, ou melhor, me embarcaram, e tarde, aos oito. Para infelicidade de meu pai, repeti o primeiro. Não sabia ler e muito menos escrever.

Esse navio em que me embarcaram era obscuro e assustador. Tudo era estranho para mim não fiz muitas amigas ou amigos apenas duas meninotas como eu de pernas cinzentas e roupas maltrapilhas se atreveram a interagir comigo. Entretanto, não frequentava as aulas, pois além de não me adaptar à escola, a distância impedia-me.

Era muito complicado para eu seguir àquelas regras daquele navio, afinal havia um capitão, ou melhor, uma capitã: a temida professora Mafalda. Ela era aterrorizante, mas não por causa da aparência, mas sim pelo autoritarismo que ela infligia ao meu olhar.

Eu queria descobrir os segredos das letras, das palavras, mas estava travada por dentro e o medo me prendia.

E claro, no ano seguinte continuei a embarcar contra minha vontade, mas tive de aprender a navegar e me acostumar com a tripulação. Dessa vez, a experiência foi-me bem melhor. De repente, uma descoberta, um “insight”, uma nova terra... Seria um novo mundo? Quando me dei conta, já estava viajando por esse mar adentro, meu primeiro contato com a leitura. Devo isso à professora Marli, um encanto, um doce de pessoa. Com ela percebi que esse mar era infinitamente grande e o navio em que estava era um pequeno veleiro.

Diante disso, nascia dentro em mim um desejo maior ainda: descobrir mais... Aprender mais! Surgiam dúvidas, incertezas e o medo de naufragar e ser engolida por um enorme monstro marinho. Entretanto, minha insistência não me permitia parar! Um desejo ávido que não me deixava cansar. Era esperança de uma palavra esgarçada, esmiuçada até o grunhir se unir a minh‘alma.

Nessa nova terra descobri que o meu pai também era um grande capitão de um enorme navio como um encouraçado, só que bem diferente do “Potenkim” a tripulação era menor e mais nova e eu fazia parte dela. Apesar da situação como relatei anteriormente, não comíamos alimentos estragados e morávamos em uma casinha simples.

Era bom, pois meu pai tinha mania de tornar tudo bom. Era bom cozinheiro, era bom enfermeiro, era bom pedreiro... Era acima de tudo um bom pai. Ainda mais quando ele chegava a nossa casa recitando poemas de Castro Alves e de outros intelectuais. Várias estrofes do “Navio Negreiro”. Sim... Meu pai adorava literatura e não se esquecera do aprendizado quando criança e adolescente!

Às vezes, ele declamava trechos de um poema: “Cheguei. Chegaste./ Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha./Tinhas a alma de sonhos povoada./A alma de sonhos povoada eu tinha...” (Olavo Bilac). Esse é um dos trechos poéticos que meu pai adorava recitar quando chegava do trabalho. Eu gostava! Era bom!

Confesso que quando meu pai pronunciava os poemas, quando falava de literatura, as palavras ganhavam sabores, eram doces para meu paladar. Aproveitava cada letra, cada palavra que ressoava na tentativa de descobrir mais sentidos, mais significados, mais segredos. Eu gostava! Era bom!...

Agora, quando leio, descubro o mundo. Quando escrevo, me liberto... Eu viajo por esse mundo e navegando me desperto.

Márcia Lemos
Enviado por Márcia Lemos em 25/11/2020
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