Como começar a narrativa?

Lendo o ótimo 'Story', de Robert McKee, um escritor café com leite pode ter ótimas percepções sobre como funcionam as narrativas. E o fato do livro em si ser escrito pensando em roteiros de cinema não é propriamente um obstáculo.

Por isso, hoje falo um pouquinho do conceito de 'Incidente Incitante' desenvolvido por McKee, e que certamente ajuda qualquer escritor em formação... e ajuda num dos aspectos estruturais mais delicados da narrativa: o começo.

[O que começa uma história?]

Curto e grosso: um desequilíbrio.

É aí que o conceito de 'Incidente Incitante' entra e faz todo o sentido.

"Para pior ou para melhor, [é] um evento [que] tira o equilíbrio da vida de um personagem, despertando nele o desejo consciente e/ou inconsciente por aquilo que ele sente que vai restaurar o equilíbrio, lançando-o em uma jornada por seu objeto de desejo contra forças do antagonismo (interna, pessoal, extrapessoal)" (Story, p. 190).

Em termos genérico e simplistas, o personagem precisa ser retirado do seu mundo normal, comum e ordinário. E não apenas em termos objetivos e concretos - o clássico plot personagem que é levado a descobrir um outro mundo -, mas também, e principalmente, subjetivo:

o desequilíbrio afeta o personagem em seu âmago existencial.

A normalidade é quebrada, o comum é subvertido, o ordinário não serve mais. E esse é o tchan do início de uma narrativa.

[Depois, a escolha]

Porém, o desequilíbrio é meio que apenas uma face da moeda. Como podemos observar na citação acima, a coisa fica mesmo interessante na sequência.

Uma vez que o personagem esteja com sua vida em desequilíbrio, ele vai fazer o que a maior parte das pessoas faz quando está nessa situação, que é buscar a retomada do equilíbrio.

É quando outros elementos narrativos surgirão.

Afinal, a ação do personagem, quando ele reage ao desequilíbrio e parte em busca do equilíbrio, virá lastreada em seu perfil/histórico, e será voltada para um objetivo delimitado - objetivo que, pretensiosamente, restaurará o equilíbrio, mesmo que de outra natureza. Só que isto aqui é narrativa literária, e, como toda que se preze, a vida do personagem não pode ser fácil. Por isso o personagem precisa encontrar antagonismos em seu caminho, que o impedem de restaurar o equilíbrio num estalar de dedos.

É claro que isso tudo é complexo e mergulha fundo. Contudo, acho válido notar pelo menos esse encadeamento esquemático de elementos narrativos a partir do desequilíbrio inicial:

-> acontece um fato que traz desequilíbrio; então...

-> o personagem age de determinado modo, que reflete seu perfil, seu histórico, sua individualidade; por consequência...

-> sua ação será baseada em um objetivo, uma meta, num propósito; entretanto...

-> o propósito encontrará obstáculos, que forçará o personagem a fazer escolhas, que serão difíceis, exigentes e sucessivas.

E é bastante legal perceber ainda o poder de introdução desse desequilíbrio inicial.

O fator de desequilíbrio permite antecipar qual é o grande conflito que vai acontecer até o final da história, além de já sugerir o gênero e alguns elementos estilísticos da obra.

E isso, caso você não tenha notado, tem um potencial enorme para gerar aquilo que todo escritor quer: engajamento do leitor. Um desequilíbrio bem feito chama a atenção e desperta a curiosidade, talvez até mesmo simpatia pelo personagem, e faz o leitor ficar interessado em sabe como o perrengue se resolverá.

[Versatilidade narrativa]

Isso de desequilíbrio pode parecer muito amarradinho ou então muito específico a um tipo de história. Mas não é. É um raciocínio bem versátil.

McKee demonstra que o desequilíbrio pode ser tanto um evento negativo (por exemplo, o personagem que perde todos os seus bens) quanto positivo (ganhar na mega-sena), tanto concreto (um novo e rigoroso chefe no trabalho) quanto abstrato (a percepção de que trabalha com algo que detesta). A chave é acontecer um evento que bagunce o personagem e o force a tomar uma decisão (reação).

Como toda forma (e nunca fórmula!), as possibilidades, a partir da premissa, são várias.

Enfim, acredito que a grande sacada a partir do conceito de Incidente Incitante é criar uma espécie de checkpoint para o escritor em formação. Um viés a partir do qual ele deve - antes, durante e depois do processo de criação de uma história - se questionar:

Estou criando um verdadeiro ponta-pé inicial para a história?

Estou realmente quebrando a normalidade do personagem e o impelindo a um novo patamar das coisas?

E estou conseguindo fazer com que as decisões, objetivos e antagonismos posteriores se encaixem bem diante do ponta-pé inicial?

Pensar nestes termos certamente deixa o começo da narrativa bem mais consistente.

E você? Está criando o desequilíbrio de que tua história precisa?

(mais em http://escritorcafecomleite.wordpress.com)