As idiossincrasias do mercado de quadrinhos nacional
Usei o termo idiossincrasias no título para não usar “idiotices” mesmo. Essa última palavra seria até mais aplicada. Há alguns meses vejo posts de notícias, artigos em blogs, quando não youtubers berrando aos quatro cantos que os quadrinhos de direita estão crescendo no Brasil. Esse fato me é estranho, não por que não contenha um fundo de verdade, mas por essa notícia ser algo irrelevante.
Irrelevante, pois, se pedisse as esses eufóricos publicistas que me apresentassem os quadrinhos de esquerda, eles teriam muitas dificuldades em cumprir a tarefa. Não estou dizendo que os quadrinhos de esquerda não existam, ou que os países comunistas não tenham produzido a nona arte também. Mas sua divulgação é quase nenhuma, ou nenhuma. E provavelmente, tenha sido usada como propaganda política desse regime, e não como arte e entretenimento.
Os quadrinhos nasceram como expressão artística e cultural de países capitalistas, ou com aderência a esse sistema político-econômico. Os quadrinhos nasceram, cresceram e continuam oriundos de um mundo capitalista. Defendendo os valores capitalistas e da direita, apelando ao nacionalismo e valores conservadores de cunho judaico-cristão.
Caso o leitor ou leitora não estejam convencidos, vamos usar exemplos práticos. A Editora Marvel, conhecida como a Casa das Ideias, celeiro de quadrinistas e roteiristas estadunidenses, tem no atual imaginário da cultura popular um grande triunfo: a série de filmes Os Vingadores. Dentre esses personagens, dois se destacam. São eles o Capitão América e o Homem de Ferro.
O Capitão América foi criado em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial por Joe Simon e Jack Kirby. Sua primeira aparição foi no dia 01 de março de mesmo ano. O alcunhando Sentinela da Liberdade era um soldado estadunidense franzino que se envolve num projeto militar de aperfeiçoamento humano. Seu nome era Steve Rogers. Seu objetivo era combater as forças do eixo. E foi isso que ele fez, mas não sozinho.
O Capitão América, de todos os super-heróis já criados, encarna muito bem os valores da liberal-democracia. Ele é um símbolo dos EUA. Seu biótipo é o mesmo de um norte-americano comum, de tez branca, cabelos loiros e olhos azuis. Veste as cores da bandeira tricolor estadunidense: branco, azul e vermelho. Incluindo uma estrela, em referência aos cinquenta estados, só que a estrela solitária representa o país como um todo.
Na luta dos Aliados contra as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), o Capitão América tinha inimigos bem claros: os nazistas e fascistas. Foram muitas as vezes em que as capas da revista do Capitão América mostravam o soldado dando uns catiripapos no Führer e nos SS. Nesse momento, o Eixo se mostrava a maior ameaça a tudo o que os EUA e as grandes potências neocoloniais da Europa representavam.
Nesse primeiro momento, os maiores vilões do personagem, Caveira Vermelha e a HYDRA, eram de cunho nazistas. Após a Segunda Guerra Mundial, as armas bélicas e simbólicas foram apontadas para a URSS. Os comunistas assumiram os lugares dos nazistas. O Caveira Vermelha e a HYDRA se alinharam ao comunismo. E assim dezenas de vilões do Capitão América ganharam cores vermelhas.
O Homem de Ferro é um exemplo tão ou melhor acabado que seu parceiro vingador. O excêntrico milionário Tony Stark surgiu na revista Tales of Suspense em 39 de março de 1963. Foi criado pelo quarteto: Stan Lee, Larry Lieber, Don Heck e Jack Kirby. Ele representa o multibilionário que todo estadunidense comum deseja ser. Ter empresas, ser financista rico e CEO de um conglomerado empresarial.
O gênio playboy bem-sucedido é o sonho de consumo de todo filho de Tio Sam. Expressa o ideal meritocrático do capitalismo, pois, sua riqueza ou classe social não teve nenhuma relação com seu sucesso. Foi unicamente o indivíduo, atomizado, que conseguiu se tornar um ricaço e cientista galante.
Em sua estreia, o personagem está no Vietnã e acaba sofrendo um atentado. A Guerra do Vietnã (1955-1975) ainda estava na metade. E nenhuma previsão revelaria a derrota retumbante das Forças Armadas estadunidenses na Ásia. John Kennedy, atual presidente dos EUA só seria assassinado num atentado em Dallas (Texas) em 22 de novembro de 1963. A vitória na guerra ainda era uma possibilidade.
Os inimigos eram os vietcongues, os comunistas asiáticos que ameaçavam o imperialismo norte-americano no outro lado do Oceano Pacífico. Não por coincidência, os sequestradores de Tony Stark são vietcongues. Dias depois de sofrimento no cárcere, é graças a sua genialidade que consegue fazer uma armadura com o que encontrou no catre e foge. Na versão cinematográfica, a ação é a mesma, só que se passando no Oriente Médio. Ao invés de comunistas, terroristas islâmicos.
Veja como os discursos de poder e representações culturais estão conectadas a história em quadrinhos. É mais que claro os valores que estão sendo defendidos e os que estão sendo atacados. Inexiste neutralidade política.
Muito da riqueza se deve a produção de armas para as Forças Armadas do governo dos EUA. Inclusive, sua postura é tão ou mais militarizada que a do Steve Rogers. Governista quase sempre. Entre os maiores inimigos do personagem, estão o Mandarim, uma representação do imperialismo chinês no mundo; o Homem de Titânio e o Dínamo Escarlate, que nada mais são que cópias russas do Homem de Ferro. O velho mito da tecnologia reversa soviética, como se a URSS não fosse capaz de produção científica e técnica por si mesma. O perigo comunista ainda ronda o mundo, por isso que suas representações como vilões não deixam de existir.
Poderia falar de outros exemplos mais, no entanto, esses são suficientes para que o leitor ou leitora comece a se questionar sobre os discursos e representações que permeiam a história em quadrinhos. Linguagem e arte não são neutras, e quando o são, criticam ou favorecem determinado sistema. Os quadrinhos de direita não estão surgindo no país, estão aumentando ou radicalizando no seu discurso. Isso sim faz toda a diferença.