O discurso religioso parodístico no conto “A igreja do diabo” de, Machado de Assis.

O discurso religioso parodístico no conto “A igreja do diabo” de, Machado de Assis.

Bognar Ronay

RESUMO: No presente texto, refletimos sobre algumas instâncias da paródia, pois ela é inquestionavelmente, uma sofisticada forma de expressão, conforme postula Ferreto. Nosso objetivo é explorar em como o narrador constroi esse emaranhado de significados entre o sagrado e o profano apossando-se do efeito parodístico desafiando o leitor a preencher as entre linhas.

PALAVRAS CHAVE: paródia. Narrador. Sagrado. Profano.

No conto “A igreja do Diabo”, nosso objeto de análise, está presente sarcasticamente o discurso parodístico religioso. A paródia é um dos elementos muito utilizado para se reproduzir total ou parcial um determinado discurso. Santana (1999) postula “que o texto parodístico faz exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. [...] É uma tomada de consciência crítica.” Acrescenta ainda que “é um ato de insubordinação contra o simbólico, uma maneira de decifrar a Esfinge da Mãe Linguagem.” Nosso propósito é meditar em como o narrador de posse dessa ferramenta (a paródia) constroi esse amplo campo imagético. Não pretendemos esgotar as reflexões em torno do assunto, mas sim projetarmos algumas ponderações, para tanto, selecionamos quatro instâncias da paródia das quais nosso estudo permeará, a saber: transcontextualização, problematização, recontextualização e autorreflexividade.

Hutcheon (1985) apud Carvalho (2012) reflete sobre esses quatro pontos e assegura que a paródia é “um fenômeno presente na tradição artística, mas analisando-a através da reconsideração de sua natureza e função à luz da modernidade.” Acrescenta ainda que “a paródia é repetição com diferença, um modelo complexo de transcontextualização, inversão e revisão crítica que remete à arte moderna a sua tradição.” O poder de reflexão que a paródia promove será mais profundo tanto quanto a proporção de conhecimento geral que o leitor analista possuir. Essa interferência de reflexão que a paródia convida o leitor a realizar só será consumada se ele conseguir preencher as lacunas propostas pelo novo. Ela “sempre assume o papel de elemento problematizador, levando o receptor a pensar e reavaliar determinadas convenções estéticas.” Dessa forma, apropriando-se de um texto ou discurso A (hipotexto) através da intervenção parodística produzirá outro discurso ou texto B (hipertexto) atribuindo-lhe novo significado. A esse processo, nomina de recontextualização. Observando esse assunto, afirma que “para a crítica, a paródia é uma das formas mais importantes da moderna autorreflexividade.” A paródia sempre irá causar certo estranhamento, um tipo de elemento indigesto.

O narrador abre o conto imprimindo completamente o distanciamento entre o texto e si próprio “Conta um velho manuscrito beneditino”, em outras palavras é o mesmo que dizer: não tenho nenhum envolvimento com o que aqui será dito, estou simplesmente reproduzindo o que li. Ao posicionar-se dessa forma o narrador transfere a culpa para aqueles foram responsáveis numa determinada época pelo ensino religioso (os beneditinos), afirmar que os mestres teriam escrito essa narrativa é de certa forma uma crítica aos humanos praticantes da religião.

Como pode ser percebido no início do capítulo III, o Diabo se apossa das vestimentas ornamentais religiosas “Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina”, o que antes era somente um registro uma leitura (manuscrito beneditino) é transportado para o imaginário passa a ser um adereço diabólico para o cumprimento da tão esperada empreitada. Ao empregar o verbo “enfiar” denota pouco caso com o momento, pois essa expressão é típica de outras construções gramaticais, porém o uso dela imprime realmente o tom desejado pelo narrador que é ironizar.

Embora esse discurso não esteja definitivamente escrito em algum lugar, mas está psicologicamente impregnado na mente dos cristãos. O narrador apropria-se deste fato e transcontextualiza essa mensagem através do efeito parodístico modificando o tom de informações e incutindo efeitos mefistofélicos aos que por convenção seriam divinos. Em Hutcheon (1989) apud Cano (2004) encontramos parte do esboço desse assunto que nos a seguinte definição:

A paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irônicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial. (Grifo nosso)

Está posto ante nós um tema que causa grande estranhamento pelo fato de abordar de forma incisiva a perversão de temas religiosos. Com uma exposição certeira todos fieis e não fieis são desafiados pela proposta desse conto. A inversão de valores que o conto nos mostra, a forma em que esses elementos estão organizados cumpri-se o que a teórica expõe. O emprego da consoante maiúscula no nome “Diabo” o coloca como ser de categoria elevada tanto quanto a de Deus, aqui ele não desempenha o papel de um deus, mas sim, o “Deus”.

Os três espaços físicos por onde de passa o episódio: terra, céu e inferno representam maciçamente a ideologia cristã. O ser humano habita no espaço natural (a terra, espaço intermediário) e terá como eternidade o céu (espaço utópico) ou o inferno (espaço atópico). No conto, a personagem vivida pelo Diabo permeia todos eles.

Com maestria, o narrador apropria-se do hipotexto (a Bíblia) e reproduz um fragmento que está registrado no livro de Romanos capítulo um e aplica uma dose conceituada de recontextualização e tece seus conceitos:

Clamava ele que as virtudes aceitas deveriam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada (ASSIS, 2007. p. 186 – 187).

Com uma nova fórmula reportada estamos face do hipertexto que torna permissivo o que antes era proibido. A escolha vocabular e a organização dos fatos recontam a história imprimindo uma mudança de ordem. Essa instância sacraliza os dogmas religiosos que buscam plantar nos corações dos fieis a abstinência desses atos. Percebe-se a presença da crucificação dos hábitos religiosos através o efeito parodístico. Percebe-se adesão maciça dos fieis cristãos a nova doutrina pregada. Porém, o narrador nos mostra que essa fidelidade não perdura por muito tempo e os discípulos de lúcifer findam por traí-lo pelas costas voltando a praticar os atos de antes ficando evidente a dificuldade que o ser humano possui no quesito fidelidade. E a personagem Deus conclui em resposta ao questionamento diabólico: “é a eterna contradição humana.”

A instância problematizadora permeia todo conto, desde as propostas iniciais até a sua conclusão. Propor algo tão audacioso indigesto capaz de mexer com a fé cristã assume bem esta função problematizadora. Através do desafio satânico frente ao divino, a audácia diabólica, a inclusão do discurso de líderes religiosos como citação ou alusão para validar e embasar os argumentos mefistofélicos percebe-se uma dose irônica empregada. Outro ponto incidente na questão da problematização é quando o Diabo se eleva até a presença de Deus e é recepcionado pelo próprio Deus com um tom irônico, “Deus ouvi-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

- Que queres tu, meu pobre Diabo?”

De acordo com dogmas religiosos, não há união entre as trevas e a luz, esses dois extremos tendem-se a se repelirem cada vez mais. A Bíblia nos dá uma noção dessa instância e ordena através deste fragmento: "Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas?" (II COR. 6 - 14). A luz está representada pela personagem Deus enquanto as trevas representam o próprio Diabo. Nos dois casos está empregado o uso da metonímia, “- Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul” (ASSIS, 2007. p. 184).

Esperava-se que Deus o repreendesse e não adotasse a inércia postura eufemística diante do seu principal e terrível oponente. O uso do pronome possessivo “meu” usado pela personagem Deus na narrativa em recepção ao Diabo transmite uma sensação propriedade, intimidade alguém próximo. Embora, pelo decorrer da narrativa é possível pressupor que esse pronome está empregado de forma irônica, porém a ambiguidade de sentidos está instaurada principalmente quando se trata de questões religiosas.

A interrogação “- Que queres tu, meu pobre Diabo? Demonstra ainda que apesar de bem construídos, os argumentos diabólicos não alcançam o nível de clareza para a compreensão do assunto, pois no parágrafo anterior o Diabo havia exposto tudo o que tinha para dizer e mesmo assim ele é interrogado sobre suas pretensões.

Cada elemento do conto conduz e desafia o leitor a autorreflexividade. Nesse processo, estão distintas as participações: do autor e do leitor. O autor porque reproduz o discurso com acréscimos ou omissões de fatos que se fizerem necessários para alcançar seu objetivo. Até esse ponto, o autor possui total domínio sobre sua produção contemplando as duas primeiras instâncias da paródia, das quatro propostas nesse trabalho.

A partir da terceira instância fica por conta do leitor, que ao se deparar com o elemento indigesto provocado pela nova informação e que em alguns casos, está subentendida ou hipotetizada. Coelho estuda esse aspecto e postula:

Além disso, o próprio ato de lançar o foco sobre a instância leitora constitui movimento para fora do material textual, num esforço de mão dupla, pois, ao mesmo tempo, força o leitor a concentrar‐se na interioridade do texto, criando um espaço interacional consistente entre diversas instâncias: escritor, narrador, personagens, narrativa, leitor, discurso, literatura e realidade (COELHO, 2009. p. 05).

Essa recepção exige do leitor um esforço metodológico na busca de construir o círculo do entendimento sobre o assunto. O conhecimento de mundo é a ferramenta principal para esse caminho, isso dependerá do nível de conhecimento de cada leitor/receptor para chegar a uma conclusão lógica ou multiplicar suas dúvidas. Souza reflete sobre essa questão e afirma que

A presença desse leitor emerge na medida em que concretiza a leitura. Por isso há sempre, por trás dele, um a priori, ou seja, um texto a ser semantizado que exige uma experiência de adequação interpretativa. Ele é na realidade uma potência de percepção, semantização e de abreviação perspectivista do manancial dos fenômenos da obra, é, portanto, antes de tudo, uma consciência perceptiva e de visada de significação (SOUZA, 2011, p. 35).

Nessa dimensão se cumpri o papel da literatura que não é de representar a verdade/realidade, mas sim dialogar com elas.

O emaranhado literário de construções nesse conto (A Igreja do Diabo) translada o leitor a um processo de verossimilhança. Inevitavelmente o leitor é desafiado a refletir e produzir suas próprias conclusões. Percebe-se que o autor da obra, Machado de Assis, sempre busca formas de sacralizar a figura humana. Essa atitude machadiana de compor finda por reduzir a status quase zero o desenho humano assim como pode ser percebido nos demais contos de Machado!

Referências Bibliográficas

ASSIS, Machado de. 50 contos / Machado de Assis; seleção, introdução e notas de Jhon Gledson. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

BÍBLIA SAGRADA, A bíblia Anotada, versão Almeida Revisada e Atualizada, Tradução Carlos Oswaldo Cardoso Pinto, São Paulo - SP, Mundo Cristão, 1994.

CANO, José Ricardo. O riso sério: um estudo sobre a paródia. Caderno de pós graduação em Letras, 2004. São Paulo: 2004.

CARVALHO, Ana Cristina Teixeira de Brito. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.

COELHO, Lilian Reichert, Autorreflexividade e articulações com a cultura de massa como propostas do escritor estadunidense Paul Auster contra a “crise de narrabilidade” do mundo contemporâneo, Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009. Disponível em: comunicacaoecultura.uniso.br/elementa/v1_n2_01.pdf - acesso em: 02/08/2013.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Paródia e paráfrase e Cia. Série Princípios, 7 ed. Afiliada, São Paulo. 1999.

SOUZA, Jeferson Cleiton de. A nova Hermenêutica e Teoria da Recepção em Jauss e Ricoeur, Recife, 2011(dissertação de mestrado) disponível em WWW.pgletras.com.br/2011/dissertacoes/diss-Jefferson-Souza.p - acesso em: 02/08/13.

WagnerSouza
Enviado por WagnerSouza em 03/06/2020
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