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Sob a intensidade da sombra

6 de Maio de 2020 Franklim DrumondAçucena, Girvany de Morais, Literatura, Microconto

Kafka, nas Anotações do ano 1920, intituladas Ele, propõe que sua personagem enigmática “Ele”, “poderia ter se apresentado a uma prisão”, “mas era numa gaiola gradeada que se encontrava”[i], gaiola que, ao final, revela-se apenas um estratagema que lhe permitia a observação do fluir do mundo desde uma estrutura que garantia calma e insolência.

No entanto, a persistência de um bloqueio, uma separação inflexível do mundo e dos outros, é um tormentoso desencaixe. Narrar este desencaixe ameaçador, fazê-lo atravessar o vale dos sonhos e, porquê não do desejo, para sacudir a poeira de fora com palavras crespas e incriminadoras é uma tarefa inescapável para quem tem a sensibilidade de olhar por matizes.

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Annual Seed Flower – Richard Tepe

Em seu livro Socos e Alívios[ii], Girvany de Morais, fabula com a arte do microconto. Cria um universo surrealista de mitologia e psicodelia estreitado sob a sombra do preconceito. O tom assombroso evoca o terror de E. A. Poe, que ele cita explicitamente em Sonho Macabro. Alguns dos textos também podem ser lidos aqui.

Ao formular frases familiares em arranjos secos descobre os hematomas que subjazem ao corriqueiro. A síntese de ideias que beira aos aforismos dá ao texto a força de socos pungentes e argutos. Parece-nos que a personagem dos contos, como “Ele” de Kafka, “pela simples circunstância de existir, esteja bloqueando seu próprio caminho”[iii], presa por grades que insiste em manter para garantir a segurança da imensidão do mundo e, ao mesmo tempo, é deste bloqueio que as personagens de Kafka e Girvany “obtém a prova de estar vivo”[iv]. Mas em outra qualidade de vida, em estado de “surreal” como no microconto Quatro luas.

É neste estado de inadequação, que bloqueia do contato, mas garante uma subjetividade, que as personagens de Girvany flertam com a absurdidade de sua existência que se torna gaiola, bloqueio, loucura, levando ao limite como em O caso das borboletas, Eu avisei, ou no emblemático Ponte Fabriciano/Acesita.

A abordagem do desencaixe provocado no sujeito pelo não reconhecimento, tornando-o surreal, ou seja, absurdo e inaceitável, exige do leitor uma rápida Manobra Heimlich interpretativa. Assim como no procedimento para desengasgar, o leitor se exaspera com a brutalidade do sufocamento e corre procurando modos de aplacar o desejo imediato de solução das personagens de Girvany (não seria também desejo de salvação?).

Desejo enraizado no que Octávio Tarquínio de Sousa chamou de imediatismo ao tratar do conjunto de poemas Rubaiyat de Omar Khayyam (1048-1131 d.C.). O poeta muçulmano, em sua ode existencial insiste que “nossa vida é breve como um incêndio. Chama, que um leve sopro apaga; cinzas, que o vento dispersa: eis a existência de um homem”[v], por isso, deve-se colher o sabor de cada dia sem maldizer a vida ou louvá-la em exagero, dada sua fugacidade.

O imediatismo, em Socos e Alívios, aprece tomado pela experiência sexual, igualmente fugaz e reduzida à satisfação do desejo, sendo experimentada em circunstâncias de breve contato e muitas despedidas, como em Dois pra lá, dois pra cá; Poema que virou continho; Perdido de amor e Ambiguidade, para citar apenas os do Capítulo 1: Amores e Horrores.

O diminutivo na extensão dos textos, atende ao que a filósofa Susanne K. Langer definiu como “princípio de fecundidade”. Apropriados para o tempo das redes sociais e da preguiça de leituras longas, os microcontos apresentam ideias que podem “ser manipuladas, definidas, modificadas e usadas em combinações”[vi]. Neles há um amplo espaço interpretativo, que inclui o reconhecimento de personagens e lugares da cidade de Açucena, que se torna matéria, quase explícita em Enrustido do casarão.

Este escrito literário, pela módica e bem preparada edição pode passar despercebido, mas registra um largo esforço de arranjar experiências vividas e imaginadas nas ruas pacatas do interior mineiro. Tal rica imaginação e elaboração de escuridões assombradas de violência e desespero é fecunda de margens para que o leitor multiplique o comprimento das histórias, cambiando os significados e reconhecendo os sussurros que evocam outras formas de interpretar a vida.

O valor deste livro, ultrapassa as veredas que abre à imaginação e alcança o remove a resistência à leitura, ao exercício da imaginação e à valorização do ofício de escrever. Seus rasgos de imaginação luminosa, cercados e cerceados em sombras ora mais intensas ora mais pálidas, nos conduz à profundidade de alguém que, como a personagem de Kafka, deixa que sua “necessidade continue sendo necessidade” e não drena o lodo, mas sobrevive “em suas emanações pestilentas”[vii], pois, como nos lembra Khayyam, é preciso pisar com cautela a terra, tocar com cuidado cada momento da vida, já que “talvez o torrão que vais esmagar tenha sido o olho terno de um belo adolescente”[viii].

Oxalá que, assim como no microconto Miragens (p.76), os silêncios e escuridões nos permitam ver ainda muitas estripulias brotadas da caneta feroz e sincera do admirável Girvany de Morais.

05 de maio de 2020.

[i] Kafka, Franz. Contos, fábulas e aforismos, tradução de Ênio Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. p. 78.

[ii] MORAIS, Girvany Aparecido de. Socos e Alívios. Açucena: Roberta Rocha de Oliveira, 2019.

[iii] KAFKA, op. cit, p. 79.

[iv] Idem, ibidem.

[v] KHÁYYÁM, Omar. Rubáiyát, tradução de Octávio Tarquínio. 8ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1949. p. 56.

[vi] LANGER, Susanne K. Sentimento e forma, tradução de Ana M. Goldberger Coelho e Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1953. p. 9.

[vii] KAKFA, op. cit., p. 81.

[viii] KHÁYYÁM, op. cit., p. 37.

Geovane Morais
Enviado por Geovane Morais em 07/05/2020
Código do texto: T6940275
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