A VIOLÊNCIA E A DISPUTA COMO FORMA DE REAFIRMAR A MASCULINIDADE NA OBRA INCIDENTE EM ANTARES
A VIOLÊNCIA E A DISPUTA COMO FORMA DE REAFIRMAR A
MASCULINIDADE NA OBRA INCIDENTE EM ANTARES
POR MARÍLIA PEREIRA DA CRUZ
INTRODUÇÃO
O enfoque deste trabalho firma-se nas abordagens de reafirmação da masculinidade através da violência e da disputa presentes na obra “Incidente em Antares” do escritor Érico Verissimo.
Problematiza a estrutura social e ideológica do comportamento do homem em relação a sua masculinidade e seu olhar sobre o feminino. Na perspectiva de mostrar como cada ato de violência é construído, expondo assim o desejo sexual reprimido.
Os personagens analisados serão das famílias rivais de Antares, Vacarianos e Campolargos.
A VIOLÊNCIA E A DISPUTA COMO FORMA DE REAFIRMAR A
MASCULINIDADE NA OBRA INCIDENTE EM ANTARES
O livro “Incidente em Antares” do escritor Érico Verissimo, apresenta algumas questões referentes à violência do homem como meio de reafirmar a sua masculinidade. Na sua primeira parte é exposta uma violência desmedida envolvendo os personagens masculinos, caracterizando uma disputa de poder, a qual está mais relacionada à identidade desse grupo.
A obra expõe o autoritarismo, formas de torturas, disputas de poder e dominação do homem sobre o outro, tanto no campo ideológico como no social. Isso fica evidente em sua primeira parte, onde é construído o histórico da cidade. Duas famílias, as quais têm como protagonistas homens, que buscam dominar a cidade, causando um derramamento de sangue em ambos os lados.
Os trechos analisados foram referentes a dois personagens que sofrem a violência sexual, uma tortura exposta a outros homens como meio de dominação e perca de sua masculinidade. Segue o primeiro episódio:
“Xisto mandou reunir na praça os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianças ficassem fechadas em suas casas. De mãos amarradas às costas, Terézio foi trazido à sua presença (...) Xisto mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendurá-lo no galho duma árvore , com a cabeça a poucos centímetros do solo. Depois acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus, profundamente. Com a cara contraída de dor e vergonha, Terézio cerrou os dentes mas não deixou escapar o gemido”. (VERRISIMO, p. 31)
Nesse episódio pode-se analisar que Xisto faz uso da exposição do corpo de Terézio para lhe dominar, ao penetrar o funil no ânus do seu oponente, lhe tira a masculinidade perante os homens que estão presentes, e reafirma a sua própria por meio da violência.
A dominação do corpo sobre o outro é compreendida como um ato de provar a masculinidade de quem pratica a violência, no caso entre homens, um se torna ativo e o outro passivo. Nesse episódio, ao ser penetrado e exposto, Terézio ocupa um lugar do feminino, que para ele é a causa de sua “vergonha”, pois isso o torna fraco. Sendo assim, ele sente mais vergonha do que a dor de ser violado.
“Os planos de Xisto, porém, eram mais terríveis. Todos compreenderam o que ele ia fazer quando gritou: “Tragam o tempero da salada!”, e dois de seus homens, vindos do quintal do casarão dos Vacarianos, aproximaram-se conduzindo com todo o cuidado, para não se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição. (...) Xisto murmurou: “Sabes o que vou te fazer, sacripanta? Te incendiar as tripas”. A uma ordem sua, os dois homens começaram a despejar lentamente no funil todo o conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar.” (VERRISIMO, p. 31)
A violência desse ato de Xisto é humilhar seu rival, impondo-lhe a desonra da feminilidade, usando a perversão sexual como castração do outro, mesmo que Xisto não estuprou Terézio, ele assistiu e sentiu satisfação em ver a dor do outro, como se ele mesmo estivesse penetrando.
O desejo em observar um ato sexual violento, tanto pode ser compreendido como o desejo de ser o abusado ou o abusador, mas nesse caso em específico, a dor causada em Terézio pelo líquido quente foi o modo que Xisto encontrou para repugnar, e não aceitar o desejo que sentia. Dessa forma ele domina tanto o oponente quanto seu próprio desejo.
Essa violência causada pela família dos Vacarianos desperta a ira dos Campolargos, não só a morte de um dos seus, mas a forma que foi praticada manchou a masculinidade deles.
A coragem e a vingança são atribuídas ao masculino, e a aquisição da virilidade nunca é definitiva, constantemente precisa ser reconquistada, pois a fraqueza da feminilidade não é aceitável no campo simbólico do homem. Isso se torna claro no comportamento dos Campolargos, pois a violência que Terázio sofreu gera agressividade e resulta em competição constante e extrema.
A vingança seria a reparação da perda de masculinidade, caso eles não se posicionassem e revidassem, seriam vistos como passivos (atribuído ao feminino), e os Vacarianos como ativos. Sendo assim, desenrola-se uma vingança, tão violenta quanto à sofrida. Segue o trecho:
“Romualdo Vacariano foi trazido à presença de Benjamim Campolargo, que exclamou: “Tirem toda a roupa desse sujeitinho!”. Três de seus homens obedeceram à ordem. “As botas também...Bom. Agora amarrem ele na mesma árvore onde penduraram o meu irmão. Assim não! Com a barriga contra o tronco, as pernas abertas... Isso!” (...) Um círculo duns cento e poucos homens formavam uma espécie de muro ao redor da árvore (...) Benjamim chamou um dos seus companheiros, um negro alto e corpulento. (VERRISIMO, p.33)
Nesse trecho percebe-se que a vingança foi pensada de uma forma semelhante, porém numa forma mais direta, corpos sobre corpos, onde se escolhe o homem que mais representa a força da masculinidade no campo simbólico, no caso o negro.
Essa reafirmação da masculinidade mostra que a violência sexual é a forma aceitável de salvaguardar o perigo da contaminação pela feminilidade. Efetivamente, o meio para conseguir o domínio sobre o outro. E testemunhar um homem violando o outro é o desejo inconsciente do homem pela homossexualidade. Uma fantasia que se concretiza pela pratica do outro.
Porém, é a recusa do negro Elesbão que desconcerta o Benjamim, além de sua autoridade ser questionada causa também a frustração do seu desejo e assim, ele tenta justificar que não poderia perder “um companheiro de valor”. Essa recusa de Elesbão retrata a tão temida feminilidade, pois o medo de perder sua masculinidade está sempre presente, sendo mais aceitável a morte ou a constante disputa. Mesmo Elesbão não aceitando, outro negro se propõe a praticar o estupro, assim satisfazendo o desejo de Benjamim. Segue o trecho:
“Quem salvou a situação foi um caboclo parrudo e mal-encarado, o Polidoro, contumaz barranqueador de éguas, que se apresentou voluntariamente para executar a tarefa. (...) E o caboclo violentou Romualdo. Uns três ou quatro homens soltaram risadinhas. Outros, porém – a maioria - retiraram-se do local para não assistirem à cena degradante. Um capitão bigodudo chegou a gritar: “ Isso não se faz a um macho, coronel! Por que não mata logo o miserável?”. Benjamim, que saboreava o espetáculo, não deu a menor atenção ao protesto. Consumado o ato, gritou: “Agora soltem a moça!”. (VERISSIMO, p. 34)
A dominação e a posse sofrida por Romualdo é vista como uma manifestação de potência, um ato exercido que simboliza a superioridade da masculinidade, causando a feminilidade no violado. Romualdo sofre a desonra e a perda do seu lugar como homem viril e íntegro, restando-lhe como saída apenas a morte, pois não aceita ser comparado a uma “moça”.
“Dois soldados desamarraram Romualdo, que deu alguns passos, como se estivesse bêbedo, a cara aparvalhada. De repente soltou um urro, como um animal ferido de morte e, nu como estava, saiu a correr na direção do rio, atirou-se no chão, no alto da barranca, e rolou declive abaixo, até cair n’água. Pôs-se a nadar e, a uns trinta metros da margem, deixou-se afundar. Seu corpo jamais foi encontrado.” (VERISSIMO, p.34)
A violência do ato sofrido por Romualdo pode ser entendida como uma castração, a paranoia de não pertencer a seu grupo e de ser visto como um covarde fraco, um feminino, o enlouquece e ele tira a própria vida.
Esses personagens são uma representação da sociedade que organiza os grupos e reafirma o preconceito, constroem instituições padronizadas que impõem aos cidadãos a normativa dos gêneros, assim, muitos homens não superam os seus desejos inconscientes e se transformam em agressores e violadores. O desejo da dominação geralmente é direcionado ao ato sexual, o poder de violar é sempre utilizado e o mais forte sempre sofre de recalcamento, como diz Bordieu:
“Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porquê este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada.” (BOURDIEU, 2002, p.15)
Portanto, na obra “Incidente em Antares” a masculinidade é caracterizada pelos atos de violência sexual, pela disputa de poder e por uma dominação erotizada.
CONCLUSÃO
No livro “Incidente em Antares”, Érico Verissimo construiu personagens homens que evidenciam a busca da masculinidade, visto que ela não é definitiva e precisa ser reconquistada e disputada.
Esses personagens utilizam a violência sexual para reafirmar ser macho, mas ao mesmo tempo mostram o desejo inconsciente por outro homem, o desejo é presente quando testemunham a violação de outro corpo e sentem satisfação.
Essa obra não só retrata os homens daquela época, mas também da atual. A realidade é pior, pois a violência contra os considerados “fracos e femininos” é louvada por pessoas que ocupam locais de poder e têm influencia sobre determinado grupo.
O machismo e a reafirmação da masculinidade estão sendo cada vez mais ensinada e imposta na instituição familiar. Ideias de segregação de gêneros são aceitas e proliferadas nesse meio. Discursos preconceituosos como “meninos usam azul e meninas usam rosa”, reforçam a violência dos considerados fortes e machos e sufocam os que têm conceitos diferentes. Isso só reforça o preconceito já existente nessa sociedade hipócrita e patriarcal.
BIBLIOGRAFIA
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BOTTON, Fernando Bagiotto. As masculinidades em questão: Uma perspectiva de construção teórica. Revista Vernáculo, n. 19 be 20, 2007. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/20548/13731> acesso em: 04/01/2019.
CECCARELLI, Paulo Roberto. A construção da Masculinidade. In Percurso, São Paulo, vol. 19, p.49-56, 1998. Disponível em: < http://www.ceccarelli.psc.br/texts/a-construcao-masculinidade.pdf > acesso em: 04/01/2019.
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