Machado de Assis e o Teoria das Almas
Machado de Assis e o Teoria das Almas
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Machado de Assis nunca leu Freud. E Freud nunca leu Machado de Assis. Freud explorou a literatura de ficção na construção de sua teoria e de suas tipologias: Édipo, Hamlet e Lady Macbeth são os exemplos mais significativos. Machado de Assis era recorrentemente preocupado com a alma, e com a saúde da alma. A epilepsia, e a crença de que epiléticos tinham pedras na cabeça (de onde a expressão louco de pedra), talvez possa ter alguma influência nesse interesse.
O tema da alma é constante em Machado de Assis. O enredo do Alienista e o Dr. Simão Bacamarte ilustram a premissa. Acrescento ao argumento o intrigante conto O Espelho da Alma, publicado primeiramente na Gazeta de Notícias, em 8 de setembro de 1882. Freud tinha 26 anos, ainda não se ocupava com a teoria psicanalítica. De algum modo, Machado de Assis tratou desse assunto. Reitera-se a tese de Roberto Schwartz e das ideias fora do lugar. Espelho da Alma é um dos textos mais perturbadoras de Papéis Avulsos, nome do livro no qual o conto também foi publicado.
Já se disse que Machado de Assis não pode ser lido antes dos 30 anos de idade. Perturba. Desestabiliza. Como na fascinante passagem do Eclesiastes (3:1-8), “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu; há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”. E há também o tempo certo para lermos nosso maior escritor.
Nesse conto, O Espelho da Alma, cinco homens, que orçavam entre 40 e 50 anos, discutem questões da mais alta transcendência. São metafísicos, preocupados com a realidade que escapa à realidade perceptível sem maiores esforços. Quatro deles falavam muito. O quinto, Jacobina, permanecia a maior parte do tempo calado. Jamais discutia. Ao longo da discussão, no entanto, e inesperadamente, levantou a voz e proclamou que não há apenas uma alma. Para Jacobina nós contamos com duas almas. A primeira delas olha para fora, a segunda delas, para dentro, o que sugere figura de linguagem que os gramáticos chamam de personificação ou prosopopeia. Almas não olham.
Jacobina falou por quase 40 minutos. Concluiu sua hipótese enfatizando que não admitiria réplicas. Os ouvintes não entenderam o que Jacobina explicava. A alma exterior poderia se revestir de várias formas. Poderia ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um par de botas, um livro, o botão de uma camisa. Ao lada da outra alma, a interior, teríamos (e seríamos, do ponto de vista da alma) uma figura circular, dividida em duas partes, assemelhada a uma laranja. Jacobina lembrou que Shylock, o mercador venal da peça de Shakespeare, tinha uma alma exterior, que era em forma de dinheiro. Essa alma exterior, continuava, variava, se alterava, era substituída. Não era constante.
Para comprovar a hipótese, narrou uma história que teria vivido. Contou que fora um moço muito pobre. Um dia foi nomeado Alferes da Guarda Nacional. Uma parte da vila onde vivia comemorou e ficou em júbilo. Cotizaram-se e compraram a farda. A outra parte, enciumada, não admitiu tamanha vitória. É sempre assim, nossas vitórias entusiasmam, mas também provocam a inveja.
A mais entusiasmada com a vitória de Jacobina, continuava, era uma tia, Dona Marcelina. Pediu que Jacobina a visitasse. A tia o tempo todo elogiava a beleza do sobrinho nomeado alferes, e o fazia tão ardentemente, que Jacobina deixou de se ver e sentir como um ser humano. Transformou-se no alferes, e aferrou-se na farda. Estava transformado. A tia o mimava, dando-lhe tudo de que necessitava. Ele era menos ele, e muito mais a farda. Somos sempre muito menos nós mesmos e muito mais quem ou pelo que nos apaixonamos. Até quando a paixão acaba. E há tempo para tudo...
Por causa da filha que caiu muito adoentada Dona Marcelina deixou Jacobina sozinho na fazenda. Foi cuidar da filha. Os escravos, que tanto adulavam Jacobina, fugiram da fazenda, deixando-o sozinho, com as plantas que morriam. Não havia mais ninguém. Jacobina sentia-se só. Deprimido. Desolado. O terreiro deserto. A roça abandonada. Até os cães teriam partido. O relógio da tia, prossegue Machado, fazia um tic-tac que lembrava o verso de um poema inglês: never, forever, forever, never! Jacobina enlouqueceu.
Dormia muito. Porque no sono, sonhava. Era quando se via vestido de alferes, com os aplausos e carinho de parentes e amigos. Muito antes de Freud lançar a Interpretação dos Sonhos (em 1900) Machado de Assis apresentava uma teoria sobre os estados oníricos que se assemelhava à teoria do psicanalista de Viena. O sonho era visto como a realização de um desejo. Nas palavras de Machado de Assis, no “sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior”. Na tipologia freudiana dos sonhos o mecanismo de libertação de pulsões e desejos contidos é muito semelhante.
Jacobina recorreu a um artifício. Lembrou-se de vestir a farda, fardou-se, e olhou-se no espelho. Nesse momento, voltava a ser quem um dia fora. Renascia em uma alma exterior. Foi assim que conseguiu vencer os seis dias que faltavam. Não se sabe se a tia retornou. Arcanamente, Machado encerrou o conto narrando que ao fim da narrativa os ouvintes teriam descido a escada. Foram embora.
Uma teoria da alma que a contemple como uma circunstância dupla pode ser a chave interpretativa para tantos de nossos dilemas, desejos incontidos, reprimidos e sonhados. Vivemos na superficialidade da alma exterior. A alma interior é alcançada nos mistérios dos sonhos e em nossos pensamentos mais íntimos. A racionalidade da narrativa choca-se com a impossibilidade dos fatos. O leitor do conto resistimos em entender o desate da estória, talvez porque a alma dupla em que nos dividimos teime em aceitar a metade oposta. Uma delas é o antes, a outra, o sempre.