UM LIVRO SUPREMO (ROA BASTOS)
 
A experiência do exílio é amarga. Espero que os escritores atuais não tenham que passar por isso. (Augusto Roa Bastos)

     Por ocasião de seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de literatura perante a Academia Sueca, honraria que lhe foi atribuída em 1982, o escritor colombiano Gabriel García Márquez fez referências à realidade e ao imaginário da América Latina, os quais se nutrem mutuamente sem desdouro para uma ou o outro. Desta triste e peculiar história de um continente que já foi tão espoliado por colonizadores e seus prepostos, o capítulo dos ditadores, que ainda está sendo escrito, ocupa um alentado espaço numa obra de gerações que se sucedem, tanto para subjugar como para sofrer os desmandos.
     Em seu discurso magistral, García Márquez citou, entre outros, o general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, o general Maximiliano Hernández Martínez, de El Salvador, o general Gabriel García Moreno, do Equador, todos déspostas sanguinários que governaram seus países com mão de ferro. Essa lista, para a infelicidade de uma região que nunca chegou a ser dona do seu destino, ainda conta com muitos nomes, entre os quais estão Anastasio Somoza Garcia (Nicaragua), Porfirio Diaz (México), Augusto Pinochet (Chile), Rafael Carrera (Guatemala), Eloy Alfaro (Equador), Jorge Rafael Videla (Argentina), Alfredo Stroessner (Paraguai), Emílio Garrastazu Médici e Getúlio Vargas (Brasil). Muitos outros ainda poderiam ser elencados num rol meramente exemplificativo.
     Um ditador que merece uma “autobiografia” à parte é José Gaspar Rodríguez de Francia, O Supremo, supostamente filho de um brasileiro, que governou o Paraguai num regime ditatorial desde 1813 até 1840, ano de sua morte. E esse livro foi escrito pelo escritor Augusto Roa Bastos em 1974, com o nome de “Eu, o Supremo”. Trata-se de memórias atribuídas a Francia pela pena do escritor. Seus delírios, suas preocupações, seu nacionalismo exacerbado, suas negociações com aliados e inimigos, sua fixação em preservar seu país diante das investidas dos adversários, que queriam submetê-lo em prol de uma defesa contra nações de aqui e de acolá. É preciso que se diga que durante seu longo período de mando, o Paraguai teve conquistas importantes, como a reforma agrária, a erradicação do analfabetismo e um desenvolvimento econômico sem igual até então.
     Essa obra foi escrita e durante o regime ditatorial de Alfredo Stroessner e foi publicada como uma alegoria atualizada de seu governo autoritário. A publicação rendeu a Roa Bastos perseguição e exílio, tendo que viver fora do seu amado país por conta de suas convicções políticas e literárias.
     Esse é, de maneira singela e resumida, o contexto do romance. Sobre o texto, pode-se dizer que carrega muitas complexidades e prestidigitações literárias, demonstrando o talento do seu autor. Uma das coisas marcantes e que deixa o leitor em suspense frequente é a abolição de verbos “dicendi” e a intercalação dos diálogos sem sinalização prévia. Somente a leitura atenta é capaz de decodificar a ordem e a semântica das falas. O léxico empregado também implica aumento do vocabulário, por certo. Outro ponto a ser destacado são as constantes máximas de que se vale o narrador, as quais são dignas de integrar a sabedoria popular, como aquela de que a chuva limpa os porcos e enlameia os homens. Sobre o livro, a historiadora Isel Talavera, em artigo disponibilizado na Internet, faz esta análise:
     O romance não é linear. Transcorre na descrição de fatos históricos, cenas de comandos militares, e de repente sem nexo é mudada a direção para explicações filosóficas, metalinguísticas e de revisão documentais centrado na procura dos autores do apócrifo sem obter resultados. (“Yo El Supremo como metáfora da ditadura stronista”, acesso em 7.9.2019)
     Os resultados a que se refere a autora diz respeito a um folheto apócrifo em que o ditador dava instruções sobre o que deveria ser feito com seu corpo e com seus bens. Isso o incomodou profundamente e ele envidou grande parte dos seus esforços e de suas elucubrações na tentativa de encontrar os autores dessa ação misteriosa.
     A régua de Roa Bastos para medir e mensurar Gaspar de Francia é ousada e certamente desagradaria ao ditador, assim como despertou o ódio de Stroessner. A confraria dos ditadores é corporativista. Se a história deve nos servir, pedagogicamente, para aprender por tentativas e erros, ainda estamos longe de aproximar os acertos e descartar os erros. A trajetória latino-americana ensina que todo o poder reemana dos ditadores e é exercido em nome próprio para a desgraça alheia. As verdades criam orifícios nas ideologias dos regimes autoritários e, por isso, nunca são bem-vindas. Isso explica a aversão por livros e por bons contadores de versões não autorizadas. 
Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 07/09/2019
Reeditado em 07/09/2019
Código do texto: T6739710
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