A DECLAMAÇÃO DO POEMA E SUA AVALIAÇÃO PELOS JURADOS
– no concurso de declamação é avaliado a interpretação ou o gosto pessoal do intérprete em relação ao poema?
(Liliana Cardoso, pelo Facebook, em 15/07/2019, às 12 horas.)
Liliana, amada afilhada! Esta questão comporta um estudo bem profundo. Ambos influenciam na avaliação: a interpretação e o gosto pessoal. Ninguém consegue fugir do fator subjetivo, que é, em regra, incontrolável, porque componente da personalidade individuada do receptor. É a este que chamo de poeta-leitor, por vir a ser aquele que concede o primeiro respiro, ou seja dá vida ao escrito, através do ato de leitura. Até então os versos eram matéria morta. Existiam somente para quem privadamente os havia criado, vale dizer: eram palavras que só tinham vida e valor para o poeta-autor. Só que, na hipótese em discussão, este receptor não é um leitor comum. Imagine-se o poeta-leitor-intérprete, que é um receptor muito mais exigente, que absorve com mais profundidade os versos que enfrentam a temática contida no poema, até porque se debruça sobre a peça poética por um lapso de tempo considerável e com apreciável afinco, de modo a poder efetivamente interpretá-lo. É necessário ter em conta, também, que a Estética é uma impressão sedimentada interiormente (no caso de jurados experimentados) e assentada em valores e critérios de beleza forjados individualmente, caso a caso, mercê de que se tenha cânones dominantes, como hoje ocorre, por exemplo, com a contemporaneidade formal que nos leva à síntese, formato e linguagem, ausência de contagem de sílabas fônicas e rimas, muito diverso do que se cunhava poeticamente até o início do séc. XX, no qual havia estrita obediência às regras da escola clássica, preponderando o soneto, há mais de 600 anos. Como, então, fugir do que é condicionado pela mais íntima construção intelectual e psíquica, quando da recepção do texto? Por mais que se pretenda critérios objetivos, a arte de interpretar necessita do bom texto, enfim, do poema com Poesia, no mínimo. Desnecessário dizer que há poemas e versos em que a Poesia não comparece, não chegando a este patamar de codificação de linguagem. No meu caso, que me vinculo à escola francesa, sem o aparecimento da metáfora no(s) verso(s) que se traduz, no mínimo, pela subversão do sentido original da palavra, dando ao vocábulo um novo significante e o consequente significado, não se corporifica o poema com Poesia. Ao demais, além da metáfora de palavra, temos uma especificidade mais complexa, que é a metáfora de imagética ou imagística, raríssimamente apontada pelos doutores desta temática. Poucos atentam, verdadeiramente, e ficam na metáfora de palavra. Somos, enquanto poetas, o canal físico da expressão vocabular da magia dos significantes e seus eventuais significados, que conduzem à imagética, a partir das metáforas de palavra e da dialética (complexa) que o jogo das imagens produz em nossa cabeça, geralmente plena de ansiedades e inquietação frente ao entorno de nosso pretenso território, no viver pragmático. Enfim, se o poema é bom, com perceptível riqueza de sugestão e/ou proposta, vale dizer, com boa figuração de linguagem, especialmente se construído metaforicamente, a ponto de chegar ao estranhamento que produz efeitos e comove o poeta-leitor, ou, no caso em voga, ao seu mais qualificado agente – o dizedor de poemas – ao intérprete de Poesia, é sinal que se instaurou o sentido conotativo da linguagem, fugindo do lugar comum, fugando do que é costumeiro, quotidiano: o sentido denotativo. Não esqueças de que poética é um invulgar texto, o qual se caracteriza pela codificação de linguagem. Vou mais longe: se, ao leres pela primeira vez um texto que o autor pretenda que seja um exemplar utilizando a Poética, e, ao chegares ao final da leitura do pretenso poema houveres entendido tudo, não sobrar nenhuma dúvida, é sinal que o texto – por aberto ou derramado em sua construção psíquico-verbal – pode vir a ser tudo, menos um texto que contenha efetivamente a Poesia como gênero. Tudo porque a sugestão, a proposta poética não chegou ao patamar da linguagem codificada. E isto é facilmente constatável na maioria dos textos que concorrem como fossem exemplares de poética nos certames de poesia de cunho regionalista. O poeta, preocupado em traduzir a linguagem usual do homem do campo, os entornos e ações próprias ao campesinato, fica somente no palavreado xucro, peculiar (diferente da linguagem castiça) em suas singulares rimações, a fim de sacramentar o ritmo característico das composições de cunho popular gauchesco, tradicionalista, nativista, regionalista ou localista. Talvez seja por esta razão que alguns segmentos doutos, os acadêmicos doutorais, sequer reconhecem a expressão regionalista como comunicação estética pertencente ao gênero literário Poesia, muito menos os seus fazedores de versos. E o que temos, afinal, na prática, nos concursos de poesia e declamação? A maioria dos textos apresentados como "poemas" são, no rigor técnico, romanceados causos de louvação e de profunda entrega amorosa ao Pago, ao cavalo, à prenda, ao localismo da lida com o gado, à topografia, à vida que se desenrola bem diversamente do que acontece nos núcleos urbanos, etc. São, no geral, contos e/ou crônicas de pequeno ou médio porte, com o aparecimento, nos versos, de alguns laivos de Poética. Mas isto não quer dizer que não sejam formosos e tocantes à emoção do receptor e altamente agradáveis como originais obras do espiritual humano. O questionamento, para que o possamos esvair intelectualmente, é muito complexo e ainda se teria muito a examinar. Peço escusas pelos meus longos anos de estudo e questionamentos, o que me leva a esmiuçar o que parece, num primeiro momento, fácil de responder e sugere que o assunto seja passível de alguma síntese, em sua abordagem. É assim mesmo, “o cachimbo deixa a boca torta”, bem como diz a verve popular. E a gente arranja sarna pra se coçar...
– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/19.
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