ANÁLISE LITERÁRIA DA CARTA - CERTIDÃO DE NASCIMENTO DO BRASIL - DE PERO VAZ DE CAMINHA

Quando se lê, atentamente, a Carta de Pero Vaz de Caminha (1451-1500) – escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral (1467/1468-1520) que aportou em terras brasileiras em 22 de abril de 1500, Bahia, Porto Seguro – não há como esquecer do fato de que o documento, também histórico, é considerado pelos estudantes, autores e mestres da disciplina de Literatura brasileira como a Certidão de Nascimento do Brasil, e por ser também, o primeiro escrito com teor utilitário-literário, produzido por Aqui, mesmo tendo com autor, um português.

Foi escrita tendo como destinatário o rei de Portugal D. Manuel I, o Venturoso, no intuito de informar (aí o seu lado utilitário) sobre o achado ou achamento – como está registrado na própria Carta – das terras recém-descobertas.

É de uma beleza!!!

É documento histórico - de fácil percepção, ou seja, de fácil leitura, característica que não está presente em outros documentos do mesmo século, ou seja, o século XVI.

É de uma beleza plástica!!! Que não pode ser medida!!!

É de uma magia contagiante!!!

Caminha nos transporta, como leitores, para o local descrito, fica a impressão de que estamos a bordo da Nau, e a nossa frente, o Brasil da época, ou pelo menos, o local que viria a ser chamado de Brasil.

E assim, o registro, nos traz, pelos olhos de Caminha, as belezas da mata e a diversidade dos animais, juntamente, com aquela uma sensação de homem diminuto, homem pequeno perante o verde infinito que mitiga os olhos; a sonoridade das águas correntes; revela ainda o escrivão, um povo diferente dos europeus; sendo uma gente pacífica, de pele morena, cabelos negros e desprovida de qualquer vestuário.

Percebemos, com a leitura, que a Carta é um relato objetivo no intuito de atender ao seu propósito inicial - informação, porém, coeso, organizado, traz a visão de quem, apesar de não ter saído, por motivo e doença - da Nau Capitânia de Cabral, soube “coletar” as informações, provavelmente, com os navegadores, marinheiros e tripulantes que saíram para observar, relatar e conhecer – e, fizeram anotações que foram passadas ao autor da Carta – sobre tudo o que viram nas terras, no Novo Mundo.

Caminha descreve o povo (índios) encontrado, os animais – alguns desconhecidos na Europa; a cobra, a onça e o tatu, entre outros – e, toda a beleza causada pelas maravilhas do Novo Mundo na retina e na alma; observa, também que os nativos estão desprovidos de qualquer vestimenta (as vergonhas à mostra) e assim, descreve o fato na Carta:

(...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. (...)

Ao relatar o detalhe acima, ou seja, as índias (jovens) faz a primeira menção da nudez indígena (aqui está o fenômeno literário, ou seja, a observação e transformação do fato, a construção temática, as palavras e a ideia utilizada), e assim, o escrivão da esquadra, mesmo que não seja brasileiro, mesmo que não tenha tido esta intenção, deixa de lado o utilitarismo e, faz literatura - no caso - brasileira).

Caminha, com muito humor, nos fala de uma visita realizada pelos índios à Nau Capitânia – comandada por Cabral - fato que motivou inúmeros textos dos vários autores modernistas da Literatura brasileira que se debruçaram sobre o fato. Vejamos na Carta:

(...) O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E, também, olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo. (...)

O fato é também aparece como motivo de pintura na tela: “índios...”, de autoria de Oscar Pereira da Silva (-) quadro pertencente ao acervo do Museu Paulista; fala também do vinho, que não foi apreciado pelos os índios visitantes a bordo da referida Nau, cita a questão do desconhecimento da galinha pelos indígenas, e a importante questão dos metais (ouro e prata, no colar e no castiçal), ou seja, os índios ao virem o colar usado pelo Comandante e também o castiçal, apontaram para terra, como dissessem que lá havia metais; descreve, também o “soninho” no tapete (alcatifa) de Cabral e depois o retorno deles à terra.

Fala, em termos católicos, da questão religiosa, ou seja, “salvar toda essa gente” e também do respeito demonstrado pelos nativos em relação às duas missas realizadas em terra, uma, a 1ª Missa, realizada no dia 26 de abril de 1500, e a Segunda Missa, no dia 1º de maio de 1500, pelo Frei Henrique Soares de Coimbra (1465-1532).

Depois de comentar todas as belezas da terra recém-descoberta, Caminha inaugura a fase pedidos – políticos -, ou seja, pede ao rei um favor, isto é, para ajudar seu genro, que se encontra preso na Ilha da Madeira, que o envie para o Brasil (na data chamado de Ilha de Vera Cruz – devido ao fato de os portugueses pensarem que estavam em uma ilha, depois Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil, em virtude da madeira vermelha), mesmo que seja na condição de degredado (exilado).

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O grande valor da Carta de Caminha está centralizado no registro deixado pelo encontro, inicialmente pacífico, entre as duas raças.

Existe no relato a descrição do fato de que os portugueses, quando caminhavam na praia, ou iam a determinados lugares, eram seguidos por um conjunto de 60, 70, até 80 índios, armados de arcos e flechas e, que isso, era motivo de preocupação entre os navegadores e marinheiros.

E, mesmo com esse fator, podemos afirmar que o encontro, entre as duas nações se deu de forma pacífica (Portugal, de um lado e, de outro, o “território” que viria ser chamado de Brasil), duas culturas - europeia, pele branca X indígena, pele morena – extremamente diferentes, com objetivos diversos mas, naquele momento, confraternizavam e conviviam, pensando em dias de glórias, de harmonias e paz, para tornar o Brasil um gigante (pelo menos naquela época, depois, as coisas mudaram um pouco, em virtude de diversos fatores), formando assim uma sociedade sem mazelas e com um futuro brilhante.

In: SÊNIOR, Augusto de. "DESCOBRIMENTO" DO BRASIL: PLANEJADO OU CASUAL? SP: Clube dos Autores/Agbook, 2019.