O CALDEIRÃO FERVENTE

– in memoriam de Terezinha de Jesus dos Santos Moncks, a mãe, na outra margem.

Por condenado a registrar aquilo que penso e sinto, o que mais faço é no sentido de aplacar a inquietação que vem rasgando, se fazendo de capeta, com um tremelico de surpresa nos dedos falantes das mãos calcinadas de esperas. Devo muito a alguns leitores e estimuladores da obra, o que tenho de agradecer do fundo do coração. Parece um sinal de que alguma coisa do que escrevo se presta à reflexão. Mas, por certo que a certeza da finitude não molesta muito e nem atrai e sim logra trair o coração antigo, fazendo com que o Mistério se revele e emerja ardente e tempestuoso do fundo do caldeirão túrgido do caos, em plenitude, de modo a que fique sincopando na cabeça dos que se entronizam naquele recriado mundo de ilusões, enquanto registro das coisas e loisas que envolvem a passagem por este plano. A literatura, e mais particularmente no gênero Poesia, é sempre tridimensional: o ato/fato rememorado, o cordão umbilical; o véu que passa a recobrir a reminiscência turbando a visão, e aquilo que, de repente emerge num átimo, é algo diferenciado – o NOVO – já sem nenhuma relação ou nexo causal para com aquilo que parecia pulsar fundo no plano da realidade. A condenação ao pensar nos levará ao corredor das células da finitude e, neste conviver com a anunciada ameaça do final, talvez os vocábulos transmitam a Paz, a partir da placidez que a perenidade possa dar a mim e ao paciencioso alter ego que vive nas entrelinhas, mas que nunca somos os mesmos. Sim, digo isto porque a Poesia tem sido a “pulga na camisola”, como dizia meu pai, quando eu ficava a cismar brigando com o fogo dos calores e invernias da inquieta adolescência. O pai morreu muito cedo, aos 69, já vão lá mais de 30 anos. Mal ele sabia que no menino do subúrbio proletário havia sonhos que se acumulavam como a água das enchentes e dos riachos, onde nem havia o espelhar-se, por rarefeitas límpidas águas. Ainda assim a máquina do mundo imprimia (e ainda imprime) desejos de sempre viver aos saltos os sonhos mudancistas. Mesmo que, no dia seguinte, depois de todos os causos, pendengas, ditos e feitos, sonhos e ilusões da madrugada, tudo ainda estivesse no mesmo lugar, como dantes. O caldeirão das inquietudes fervia todos os dias, ainda mais à hora do almoço, quando fumegavam quenturas e cheiros, e se prolongava na cuca sonhadora, porque saciada no que era apenas fome de materialidade. E a mãe dos oito filhos e um neto, dona de casa, sabia disso. Como todas as mães do mundo.

– Do livro inédito A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2019.

https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-literatura/6644948