A POSSESSÃO DO OUTRO

A um escritor, o mais importante é que o seu produto esteja sendo consumido e possa servir como resposta às necessidades do receptor, que é sempre exigente e avaro de informações e/ou soluções que lhe caiam como uma luva. Por mais que encontremos, na página, apenas o sugestional genérico, o que o leitor quer mesmo é que as suas perquirições, angústias ou inquietações obtenham alguma forma de resposta. Até na Poesia, que é nada mais do que uma proposta, uma sugestão, um mero e singelo convite ao pensar assentado nos lampejos reflexivos sobre a matéria da vida, naturalmente composta por signos, imagens e palavras hauridas da farsa, da inventiva, da fantasia e do sonho, e que por origem e definição não se destinam a interferir diretamente no plano da realidade. Ressalte-se que o poema nunca tem destinatário certo – porque impossível saber quem é ele – a não ser o espécime poético dedicado a tal ou qual leitor, o que é uma excepcionalidade no dia a dia do criador literário em Poesia. No entanto, o que acontece em regra na cabeça do poeta-leitor? Ele toma do poema como se fosse seu, de sua lavra, e o inscreve nos domínios de sua emoção, pessoalizando-o como pleníssima verdade. Ele o quer (e por vezes necessita muito daquele empuxe, do que este contém ou propõe) como representação materializada de seus desejos, atendendo às suas individuadas necessidades. Este o ser humano, sempre possesso do que lhe convém. Bem como intuiu e escreveu Heidegger: "a linguagem é a casa do ser". Nesta habitação mora o humano. Nós, os condenados ao pensar, lhes servimos de olheiros em permanente vigilância. Mas é o indivíduo quem age, atua, deambula e se movimenta até com pretensas asas de Ícaro, construindo o seu itinerário, ora no plano do real, ora em suas reminiscências por vezes inconfessáveis. Alguém registrará, a seu tempo, suas ações, desejos e eventuais volúpias, e, por proteção ou pejo, Joaquim não terá mais um nome, uma individuação, restando apenas os seus atos e fatos. Em suma, o escrito traduz o que o outro possesso viu em nós e o marcou como uma tatuagem difícil de apagar. Aquela que mereceu registro.

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/19.

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