A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NO LIVRO UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA DO ESCRITOR MIA COUTO
INTRODUÇÃO
O enfoque deste trabalho firma-se nas abordagens voltadas para as tradições moçambicanas, como o universo feminino é representado na obra “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” do escritor Mia Couto.
Problematiza a estrutura social e cultural de Moçambique e como as tradições machistas patriarcal inviabilizam as mulheres, expondo-as como objetos, silenciando-as e tirando sua dignidade.
Na perspectiva de mostrar a posição ocupada pela mulher moçambicana e as consequências sofridas por elas nessa sociedade. As personagens femininas da obra de Mia couto representam situações que se refletem não só em Moçambique, mas em todo o mundo, ser mulher é um privilégio e um inferno.
As personagens femininas analisadas são Miserinha, Dulcineusa, Admirança, Nyembeti e Mariavilhosa, mulheres que representam um coletivo
A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NO LIVRO UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA
O livro “O rio chamado tempo, uma casa chamada terra” do escritor Mia Couto, apresenta algumas questões referentes ao papel social das mulheres na estrutura cultural de Moçambique. As personagens femininas são representadas de forma subalterna, inferior e vulgar. Frequentemente são expostas sexualmente pelo o uso de seu corpo e tratadas como objetos, sendo silenciadas pelo sistema patriarcal que as oprime. Apesar do seu papel na estrutura familiar, de cuidar dos filhos e prover alimento para a família, essas mulheres não são reconhecidas por isso.
Mia Couto constrói personagens femininas questionáveis, muitas vezes parecem gostar de viver naquela situação de opressão, mas no decorrer da narrativa essas mulheres, mesmo silenciadas, conseguem denunciar o que sofreram e o motivo pelo qual são condicionadas a aceitar uma tradição que por diversas vezes as corrompe tirando-lhes a dignidade.
A obra ficcional de Mia Couto narra a volta de Marianinho à ilha Luar-do-Chão para o enterro de seu avô Dito Mariano. Mariano reencontra as mulheres de sua família e faz descobertas sobre sua própria origem através da convivência que ali se desenrola. É interessante como essas figuras femininas suscitam reflexão a respeito da tradição cultural familiar e provocam mudanças nos conceitos de Mariano diante desta estrutura. Ocorre um choque entre o moderno e o tradicional.
ESSAS MULHERES
As mulheres têm um grande impacto na mudança de pensamento do protagonista, como é o caso de sua falecida mãe Mariavilhosa, silenciada a a sua vida toda; sua avó Dulcineusa que dependia dele para não perder tudo como Miserinha, outra personagem que sofreu e foi silenciada pela tradição; sua tia Admirança, retratada na narrativa como uma mulher vulgar, sempre expondo seu corpo deliberadamente, e por último a Nyembeti que representa a própria terra. Essa última personagem, mesmo sem fala, tem em seu corpo à denúncia tanto da exposição do corpo feminino quanto a da prostituição.
MISERINHA, MULHER ESQUECIDA
A estrutura social de Moçambique, apresentada no livro de Mia Couto, tem a hierarquia patriarcal como base nessa sociedade, a mulher não tem nenhum poder nessa estrutura, quase sempre é inviabilizada ou esquecida. Mesmo com todos os avanços dessa sociedade, a mulher ainda é submetida aos seus parentes masculinos, esse é o caso de Miserinha.
Ela perdeu seus bens e até sua casa quando ficou viúva, pois não tinha ninguém que a pudesse proteger, nenhum filho. Ficou abandonada e virou pedinte. Essa mulher retrata a situação de tantas outras mulheres moçambicanas que acabam sendo esquecidas e apagadas da história familiar. Mesmo quando conseguem um amante, como no caso de Miserinha que se relaciona com o avô Dito Mariano, ainda são subjulgadas, agredidas fisicamente, o que no seu caso dessa personagem causou sua cegueira.
(...) Não consegui me conter: lhe bati na nuca com um pau de pilão. Ela tombou, de pronto, como um peso rasgado. Quando despertou, me olhou como se não me visse. O golpe lhe tinha roubado a visão. ( COUTO, 2002, p. 234)
Essas palavras são do Dito Mariano, o homem que defendia a tradição e via nas mulheres objetos a serem utilizados e depois largados, e o pior disso tudo é que Miserinha não o confronta, mas mostra respeito e submissão. Nessa atitude ela comprova que a mulher, em determinadas sociedades, aceitam situações miseráveis por causa do medo de serem esquecidas. Nesse contexto, a obra de Mia Couto apresenta a situação das mulheres esquecidas, porém, faz uma ruptura quando dá voz e corpo às figuras femininas.
DULCINEUSA, MULHER PARA DECORAÇÃO
Dulcineusa, avó de Marianinho e viúva de Dito Mariano, é uma das personagens mais intrigantes. Sua situação familiar, assim como a de Miserinha, é ameaçada com a morte do marido.
“ (...) Eles olham para mim e veem uma mulher. Sou uma viúva, você não sabe o que é isso...” (COUTO, 2002, p. 33)
O medo que ela tem do abandono e sua submissão é evidente na narrativa. Ela é a mulher da decoração, aquela que aceita todas as pilantragens do marido por medo de perder todos seus bens e sua segurança. Percebe-se que ela é cristã e não admite infidelidade, mas, para preservar sua família, ela aceita as traições do marido.
Existe em Dulcineusa uma consciência de subalternidade comum nas sociedades africanas, principalmente no que se refere ao papel social da mulher. A existência do eu passivo estão presentes nas suas ações e comportamentos.
A sua segurança depende do seu neto Marianinho, por isso ela entrega-lhe as chaves da casa como garantia de não perder tudo. Além disso, ela por ser viúva ainda é suspeita de feitiçaria, sendo acusada da morte do marido. É explícito o medo que ela sente em diversas situações. Essa estrutura familiar patriarcal anula a mulher, lhe impõe o isolamento, e lhe tira o lugar da fala, causando-lhe medo e insegurança.
Dulcineusa é a mulher que suporta tudo, a mãe que trabalha para o sustento da família e para criar os filhos e não tem reconhecimento de ninguém; serve apenas para decoração. Ela se sacrificou na fábrica a ponto de suas mãos ficarem deformadas e seu filho Fulano lembra ao ver o caju.
“(...) E a ele a castanha de caju lhe fazia lembrar a mãe, Dulcineusa. E lhe dava um aperto recordar como as mãos dela foram perdendo formato, dissolvidas pela grande fábrica, sacrificadas para seus filhos se tornarem homens.” (COUTO, 2002, p. 76)
É a única vez que aparece esse reconhecimento por parte de um de seus parentes, afinal por viverem nessa estrutura familiar para eles é normal essa situação.
ADMIRANÇA, CORPO DE MULHER
Admirança é caracterizada apenas como um corpo de mulher à disposição, não existe sensualidade em suas ações e sim vulgaridade. Essa mulher tem um caráter duvidoso e o mínimo de princípios. Em alguns trechos é desvalorizada e sua sensualidade é a forma utilizada para expor a mulher sexualmente. Seu corpo é o espaço de fantasia e desejo, como algo a ser invadido.
De acordo com o estudioso Alberto Oliveira Pinto, “a mulher africana foi sempre encarada pelos colonos portugueses tão somente enquanto um instrumento de dominação, sobre os espaços e sobre os homens colonizados.” (PINTO, 2007, P. 48)
A obra “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” expressa o machismo da estrutura de Moçambique, que foi influenciada ainda mais pelo sistema colonial em todos os países africanos colonizados.
A personagem Admirança mesmo tendo consciência que seu sobrinho é na verdade seu filho continua a se insinuar para ele. Uma forma de sedução sem escrúpulo, assim como foi seu envolvimento com Dito Mariano, marido de sua irmã Dulcineusa.
É recorrente como ela se aproxima de Marianinho, sempre o tocando ou jogando seu corpo para atiçá-lo e ele sente um forte desejo por ela, sem imaginar que ela é na verdade sua mãe.
“As pernas, bem desenhadas, estão a descoberto entre as dobras da capulana. Ela parece saber que espreito. Enteabre as pernas como se procurasse melhor conforto. O mesmo gesto que degola a galinha afasta o último pano, desocultando mais o corpo. O seu olhar me pede cumplicidade...” (COUTO, 2002, p.58)
O que causa estranheza é que mesmo após descobrir que é filho de Admirança, ele ainda continua a desejá-la e não sente culpa por isso. A forma de ver sua tia reflete o conceito dos homens ligados à tradição que vivem na estrutura de Moçambique pós-independência. Esse sistema patriarcal reforça os estereótipos nas relações de gênero, sempre ligando as mulheres a maternidade, dependência ou sedução.
NYEMBETI, MULHER DE PREÇO
Nyembeti é a mulher que vende seu corpo por um preço para resguardar seu valor, para se proteger de homens que abusam de seu poder, para tomar o que lhes convém. Essa personagem não necessita de palavras para reivindicar e denunciar as consequências sofridas por abusos. Sem ter família e apenas um irmão, essa moça bela é percebida e tocada, é vista como objeto sem valor e nunca é ouvida.
Mia Couto faz uso do mítico para construir sua história, a menina que nasce e toma veneno de cobra para sobreviver. A partir de seu nascimento e de sua condição familiar frágil, Nyembeti se transforma em mais uma vítima da sociedade machista patriarcal de Moçambique.
A primeira vez que ela aparece na narrativa está sem rosto e no escuro de um quarto, onde encontra com Marianinho para lhe entregar uma caixa endereçada a seu tio. E mais uma vez a mulher é representada apenas pelo seu corpo, pois nesse encontro ela tem relação sexual com ele sem o menor pudor.
Marianinho reencontra com Nyembeti quando vai ao cemitério com seu tio, ela ao vê-lo cobre o rosto com sua capulana, “como se uma vergonha a obrigasse a esconder a identidade”. Essa atitude mostra que ela tem consciência de sua condição e se envergonha.
Uma moça tímida e bela que não fala português, as únicas palavras que pronuncia são para pedir dinheiro e em sua língua nativa. É interessante quando ela encontra Marianinho e seu tio e pede dinheiro aos dois, uma mulher de preço não que seja pedinte, mas porque os dois usufruíram de seu corpo. Uma forma de resistência, não pertence a ninguém, mas quem a usar precisa pagar.
Outra forma de resistência de Nyembeti é quando ela devolve o dinheiro ao tio de Marianinho, uma forma de expressar que não irá mais se prostituir para ele. E nessa atitude ela acende a ira de Ultímio, tio de Mariano.
“Somos interrompidos pela inesperada chegada de Nyembeti. A irmã do coveiro, submissa, fica enrolada em silêncio e respeito. Só depois entrega um molho de notas a Ultímio” (...) “O tioUltímio está tão surpreso quanto irritado. Os ombros lhe sobem, o tom da voz se militariza.” (COUTO, 2002, p.180-181)
O coveiro irmão de Nyembeti discute com Ultímio, mas Marianinho não entende o motivo. Ele percebe que o coveiro teme a seu tio e questiona o motivo. Isso passa a incomodar suas atitudes e a de seu tio. A reflexão da situação vem em forma de um sonho, nele Nyembeti fala português e lhe explica: “ queria escapar aos vários Ultímios que lhe apareciam, com ares de citadinos. Se fazia assim, tonta e indígena, para os afastar de intentos.” (COUTO, 2002, p. 189)
A partir dessa reflexão ele entende que ela aceitava o dinheiro porque se prostituía. Ele a considera a sua terra, que ela é o Luar-do-Chão, sente anseio de ficar com a moça, mas para ficar com ela teria que viver na ilha e com suas tradições, e ele prefere o moderno e vai embora.
MARIAVILHOSA, MULHER SILENCIADA
“Minha mãe acabara sucumbindo como o velho navio de carga. Transportava demasiada tristeza para se manter flutuando.” (COUTO,2002, p. 231)
Mariavilhosa é a mulher silenciada e a que representou as dores mais intensas que uma mulher pode sentir. Com certeza essa personagem denuncia a falta de igualdade democrática entre homens e mulheres, uma estrutura comum na sociedade moçambicana.
Mia Couto conseguiu criar uma personagem que rompe com o silêncio mesmo estando silenciada. Ela não representa o estereótipo da mãe passiva, sem nenhuma personalidade, Mariavilhosa tem caráter e não se conforma com sua situação. Sua forma de protesto é seu próprio suicídio, não um ato de covardia, mas um ato de liberdade.
Em primeiro momento Mariavilhosa já surge na narrativa como sendo apenas uma lembrança, ela era um assunto interdito na casa de Marianinho. Ele sabia de sua morte por afogamento, mas não sabia os motivos nem sua história.
Foi sua avó Dulcineusa que contou a trágica história de sua mãe, Mariavilhosa foi violada e engravidara do agressor, por isso vivia afastada das pessoas. Em seu desespero para abortar causa uma grave infecção, “espetara-a no útero, tão fundo quanto fora capaz”, isso impossibilitou Mariavilhosa de ter filhos. Sempre que engravidava logo em seguida abortava ou a criança nascia morta, “ o ventre dessa mulher adoecera para sempre”.
Por isso Marianinho por ser seu filho único sentia-se insuficiente, disseram-lhe que ele nasceu de uma de tantas tentativas que ela fizera para engravidar, mas na verdade ela fingiu estar grávida e o avô Dito Mariano entregou-lhe o filho que teve com sua cunhada Admirança. Sua felicidade não durou muito, pois Admirança não suportava ver a criança crescer e pediu para que o avô o mandasse estudar longe.
Mariavilhosa é novamente silenciada, pois seu filho Marianinho vai viver na casa dos portugueses em outra cidade, e foi esse português que a violentou. Nada podia dizer, pois a família em grande estima, tanto que ele era o padrinho de seu próprio filho. E seu filho ao descobrir o nome do homem que violou sua mãe ainda duvida.
“Lopes? Esse homem tão cristão, tão marido, tão metido com as mulheres da sua raça? Deveria ser engano”. (COUTO, 2002, p.106)
Apesar de não querer crer em toda a história, Marianinho se culpa por não ter reparado o sofrimento dessa mulher que é sua mãe. E é nesse trecho que mostra o quanto é significativo não se calar diante das barbáries sofridas, pois foi só depois de ter conhecimento do que aconteceu com sua mãe foi que Mariano passou a refletir sobre essa situação. Não existe uma história única para todas as mulheres, histórias podem destruir a dignidade de algumas mulheres, mas também podem reparar a dignidade perdida.
“E relembro minha mãe, Dona Mariavilhosa. Agora, eu sabia a sua história e isso era como que um punhal em minha consciência. Como pudera eu estar tão desatento ao seu sofrimento? (...) Passara a ser uma mulher condenada, portadora de má sorte e vigiada pelos outros para não espalhar sua sina pela vila (...) Devido a sua exclusão da cozinha eu não me recordava dela, rodopiando com as demais mulheres junto ao fogão (...) Mariavilhosa falava baixo, tão baixo que nem a si se escutava. (...) Minha mãe acabara sucumbindo como o velho navio de carga. Transportava demasiada tristeza para se manter flutuando.” (COUTO, 2002, p. 231)
Ela foi silenciada e excluída até pelas próprias mulheres, ninguém a via ou a ouvia. Essa personagem carrega todas as representações das mulheres nessa estrutura cultural de tradição moçambicana, uma sociedade patriarcal e machista.
CONCLUSÃO
No livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, Mia Couto construiu personagens femininas complexas, elas evidenciam as consequências causadas pelo sistema patriarcal em Moçambique.
Admirança e Nyembeti são caracterizadas pelo uso de seus corpos sexualmente. Dulcineusa e Miserinha são as mulheres viúvas espoliadas e agredidas fisicamente e psicologicamente. Mariavilhosa reflete o silêncio, a violação e a perda de dignidade dessas mulheres, mas apesar de toda essa opressão vivida por essas personagens, elas conseguem romper o silêncio e denunciar o machismo da estrutura patriarcal em Moçambique.
É necessário um movimento que defenda os direitos das mulheres resgatando sua dignidade, o corpo feminino não pode ser representado como meio delas conseguirem espaço, precisa ter respeito pelo seu intelecto e dar lugar a sua voz.
A literatura também pode ser uma forma de denunciar e resgatar a dignidade dos oprimidos, a ficção utilizada na obra retrata a realidade, não se pode negar que no mundo todo, em todas as estruturas sociais, a mulher ainda é inferiorizada e inviabilizada. O livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, denuncia de uma forma sutil o preconceito de gênero e a opressão contra a mulher.
REFERÊNCIAS
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.
COSTA, Laysa Cavalcante. Guedes, Joana Camila Lima. As cicatrizes do amor: a representação da mulher na sociedade moçambicana em Paulina Chiziane. Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.1, 2010.
DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas: Literatura, gênero, etnicidade. Terra roxa e outras terras- Revista de Estudos Literários (UFMG), Minas Gerais, 2009.
MACEDO, Tânia. Da voz quase silenciada à consciência da subalternidade: A literatura de autoria feminina em países africanos de língua oficial portuguesa. Revista Mulemba, Rio de Janeiro: UFRJ. n. 2. 2010.
NOA, Francisco. Império, Mito e Miopia: Moçambique como invenção literária. São Paulo: Editora kapulana, 2017.
NOA, Francisco. Uns e outros na literatura Moçambicana: Ensaios. São Paulo: Editora Kapulana, 2017.
PINTO, Alberto Oliveira. O colonialismo e a “coisificação” da mulher no cancioneiro de Luanda, na tradição oral angolana e na literatura colonial portuguesa. In. MATA, Inocência; SECCO. Carmen Lúcia. “Mãos femininas e gestos de poesia”. Lisboa: Editora Colibri, p.48,2007.