Lucidez e desencanto: perspectivas de solidão em Os cus de Judas, de Lobo Antunes

INTRODUÇÃO

Sob a ótica da solidão, o presente trabalho aponta considerações de lucidez e desencanto observados em Os cus de Judas de António Lobo Antunes. O autor apresenta-nos uma literatura não-linear, refletindo num limite entre ficção e vida. Viveu todo o processo das guerras coloniais de Angola. Em suas narrativas, torna-se visível a tendência para a negatividade e também para o ceticismo por fatores como solidão, violência, medo, intolerância, isolamento.

Analisando os movimentos literários até o modernismo, observa-se que nas narrativas e nos romances havia um certo otimismo em relação ao mundo. No entanto, a pós-modernidade questiona se há realmente essa luz no fim do túnel. Lobo Antunes é um autor cético, atormentado e sem perspectivas. Seus romances são labirínticos, não há um narrador inteiro. Há vozes, fragmentações do sujeito às quais Maria Alzira Seixo (2002, p. 202) chamou de “escrita romanesca disposta em fatias alternadas e múltiplas”. Tal escrita remete o leitor a uma série de observações no que tange ao empobrecimento narrativo e a consequente dilaceração do eu na medida em que a guerra se despe e permite a sessão confessional do narrador.

Na obra Os cus de Judas o peso da angústia e da solidão permeiam toda a narrativa. O narrador se percebe cheio de vãos, de espaços vazios perdidos em função da guerra. Há um verdadeiro incômodo diante da situação experimentada no conflito.

Enfocando a angústia, Lobo Antunes apresenta o narrador como um sujeito partido. É como se fosse uma sessão de análise, mas o analista, enquanto interlocutor, não interfere. Configura-se, pois, um monólogo. Seria, então, o narrador o próprio interlocutor?

Não, não me dói nada, talvez um pouco a cabeça, uma insignificância, uma impressão, uma tontura. Este rumor monótono de conversa, estes odores misturados, as feições que se desarrumam e se deslocam no acto de falar atordoam-me (...)

(ANTUNES, 2007, p. 29)

Parece, de fato, uma conversa do narrador com ele mesmo. Esse monólogo presente na narrativa nos sinaliza que é um discurso feito em que a fala somente pertence a ele, pois, em momento algum da narrativa, há a intervenção da fala de outra pessoa.

Assim configura-se a obra Os cus de Judas, de Lobo Antunes. É clara e evidente a destruição interior do narrador-personagem numa completa adjetivação negativa da experiência da guerra, em que se mesclam passado e presente em erodentes sentimentos de uma alma falida.

CAPÍTULO I

A LITERATURA PÓS-MODERNA: CONSIDERAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

É sabido que atualmente vivemos em uma sociedade pós-industrial em que se aproveita elementos da modernidade e de outras épocas e os recria. Enquanto no modernismo, por mais ousado que fosse, havia a realização das fantasias, das inclinações da mente dentro dos limites da arte, o pós-modernismo chega para realizar os impulsos da imaginação, as fantasias existentes, transbordando, ultrapassando as fronteiras da arte.

Um desses exemplos é a narrativa que assume uma busca por si mesmo, havendo, então, uma diluição do sujeito marcado pelo dissenso. Isso significa que, na pós-modernidade, há várias verdades abarcando partes de diferentes naturezas, a divergência, o desigual. Rouanet afirma:

Em suma, enquanto a ciência moderna se legitima com relação a grandes sínteses homogeneizadoras, a ciência pós-moderna, seguindo, nisso, a episterme pós-moderna, em geral, se legitima pelo heterogêneo, pelo inesperado, pela diferença.

(ROAUNET, 1986, p.33)

Dessa forma, é permitido ao leitor, na era contemporânea, fazer uma leitura como queira, pois o pós-moderno tem em sua essência um elemento peculiar: o caráter alegórico.

Se de um lado a narrativa deve-se prender a verdades, por outro, o romance tem a liberdade ficcional, não ficando, portanto, condenado a esse princípio que permeia a narrativa. Esta possui traços bem marcantes como a própria vivência no momento de se narrar algo e a sabedoria acumulada, em se tratando das narrativas orais, aspectos esses não verificados no romance. De acordo com essas afirmações cita-se Walter Benjamim o qual mostra a diferença existente entre essas duas vertentes analisadas aqui. O romance surge no início do modernismo com a morte da narrativa, sendo, portanto, o indício primeiro da evolução. Para ele, a distinção que se faz presente entre romance e narrativa é que o narrador “retira da experiência ou a relatada pelos outros e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. (BENJAMIN, 1985, pág. 201). No âmbito do romance, o qual vincula-se ao livro, há uma perplexidade do indivíduo isolado. Ele “nem procede da tradição oral nem a alimenta”. (BENJAMIN, 1985, pág. 201)

Tais afirmações são completamente desconstruídas na escrita de Lobo Antunes. O autor retira sua própria matéria para narrar. Baseia-se em tudo o que vivenciou e não no que ouviu, por isso, sua narrativa é artesanal, criada com a própria subjetividade. É necessário ambientar-se, captar a metafísica da narrativa.

A literatura pós-moderna é, portanto, uma forma de escape para as transgressões e os questionamentos cotidianos. Nesse momento, a literatura assume uma função importante: enfoca os assuntos em que a sociedade sai na tangente.

CAPÍTULO 2

ANÁLISE DA OBRA OS CUS DE JUDAS

2.1 – Contextualização histórica

De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso ao cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima semelhante á do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.

(ANTUNES, 2007, p. 14)

Durou treze anos a guerra colonial entre Portugal e as províncias ultramarinas. Tal confronto obteve fim com a desocupação de Portugal no território africano.

A história que perdura durante esse tempo é recheada de revoltas, domínios, ocupações. Com isso, todo o confronto bélico vivido em África motivou os escritores à produção de romances e poemas capazes de relatar as experiências passadas através de um olhar significativo.

Nessas produções literárias, sobre a Guerra Colonial, os autores mostram a relação entre o homem, a violência e a morte, o que resulta em uma angustiosa narrativa. É como se a realidade abraçasse o imaginário, marcado pelo vazio, e construísse uma obra ficcional em que a experiência da guerra mostrasse a verdadeira relação narrador-personagem com a escrita.

O Portugal que o leitor pode descobrir na literatura recente é de um país que saiu do atraso político e econômico para abraçar a prosperidade da União Europeia.

Na vigorosa cena literária portuguesa do século XXI, aparecem escritores como Lobo Antunes que, na renovação da literatura portuguesa depois da redemocratização do país em 1974 e da perda das colônias africanas, assinala a chegada de uma nova escrita.

De uma forma ou de outra, os escritores que então surgiram, refletiram criticamente sobre a nova identidade de Portugal – a sede de um extinto império que não encontrava seu lugar no moderno continente europeu.

As décadas de 70 e 80 são determinadas pelo pós-colonialismo, isto é, quando Portugal perde suas colônias africanas e acaba a ditadura de 1974.

As questões da pós-colonialidade interam a teorização de Lobo Antunes no contexto contemporâneo português, sobretudo tendo como principal caracterizador, o exame da forma como tais questões são apresentadas.

2.2 Lucidez e Desencanto

Lins (2006) sustenta que na pós-modernidade há um elemento característico denominado desventura. Tal noção não dispensa a existência de aventura.“Trata-se de um romance do qual não se exclui a hipótese de aventura, só que de aventura de um caráter que não se manifestava, quando o sofrimento ou mesmo a dor associavam-se à possibilidade de utopia”. Essa desventura presente nos romances abarca toda a concepção de infelicidade, desgraça, fatores estes, encontrados em Os cus de Judas e que se rendem às aspirações de lucidez e desencanto do narrador.

Sob a perspectiva da solidão, o ponto chave para esta pesquisa é a análise da lucidez de Lobo Antunes ao escrever todo o relato vivido na guerra colonial, uma vez que foi personagem principal dela, e, capturar alguns dos momentos em que o narrador-personagem se mostra desiludido, amargurado, angustiado e completamente estilhaçado pela função a que foi submetido: salvar vidas. O desencanto se faz presente logo no início da narrativa quando o próprio narrador relembra Lisboa com um tom desgostoso de separação.

E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis da despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes do espanto.

(ANTUNES, 2007, p. 18)

Atrelado a todo o dissabor estabelecido pelo ambiente, por vezes o narrador repara-se envolvido em toda aquela circunstância de miséria e pobreza através de uma clara lucidez sobre o que avistava. A percepção dos detalhes na descrição dos fatos torna-se notável ao leitor.

A miséria colorida dos bairros que cercavam Luanda, as coxas lentas das mulheres, as gordas barrigas de fome das crianças imóveis nos taludes a olharem-nos, arrastando por uma guita brinquedos irrisórios, principiaram a acordar em mim um sentimento esquisito de absurdo, cujo desconforto persistente vinha sentindo desde a partida de Lisboa, na cabeça ou nas tripas, sob a forma física de uma aflição inlocalizável (...)

(ANTUNES, 2007, p. 23)

Há de se fazer uma advertência para o fato de que as questões abordadas neste capítulo mostram-se, por vezes, entrelaçadas, isto é, a lucidez exerce uma força sobre o desencanto e o peso deste, por sua vez, reflete na transmissão nítida das palavras capitaneadas pela lucidez.

A lucidez que a segunda garrafa de vodka me confere é de tal maneira insuportável que, se não se importa, passamos à claridade tamisada do cognac que tinge a minha mediocridade interior do lilás de uma solidão aflita, que ao menos parcialmente me justifica e me perdoa.

(ANTUNES. 2007, p. 71)

O narrador fragmentado pela absorção de todos os elementos agonizantes do ambiente africano calca-se em um desabafo, por vezes exaustivo. Tal observação se faz presente em toda a narrativa. A força do seu desencanto é rodeada de solidão, medo, carência, aflição, esgotamento mental.

A necessidade de dar liberdade às suas experiências, a necessidade de estar acompanhado, de ter com quem conversar torna-o solitário, melancólico a ponto de criar um monólogo. O narrador-personagem, durante todo o romance, parece conversar com uma mulher num bar. Porém, esse possível interlocutor não responde, não corresponde às indagações dele.

Se fôssemos, por exemplo, papa-formigas, a senhora e eu, em lugar de conversarmos um com o outro neste ângulo de bar, talvez que eu me acomodasse melhor ao seu silêncio, às suas mãos paradas no copo, aos seus olhos de pescada de vidro boiando algures na minha calva ou no meu umbigo (...)

(ANTUNES, 2007, p. 9)

Ainda assim, o fato de conversar sozinho, sem obter resposta alguma, faz com que seus sentimentos sejam expostos de forma exacerbada. “Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute”. Há a necessidade do narrador em mostrar para a mulher os seus atributos, suas qualidades. Atitude notável de quem sente o peso da solidão.

Deixe-me confidenciar-lho, sou terno, sou terno mesmo antes do sexto JB sem água ou do oitavo drambuie, sou estupidamente e submissamente terno como um cão doente, um desses cães implorativos de órbitas demasiado humanas que de quando em quando, na rua, sem motivo nos colam o focinho aos calcanhares gemendo torturadas paixões de escravo, que acabamos de sacudir a pontapé e se afastam a soluçar decerto, interiormente sonetos de almanaque, chorando lágrimas de violetas murchas.

(ANTUNES, 2007, p. 30)

Por fim, a vitimização do eu nesse cenário de desgraça não influi em suas menções quanto à guerra. Tornar-se vítima de todo o ocorrido, dos sacrifícios pelos quais passou, assinalam sua lucidez aos desbravar os caminhos da palavra, seus significados, suas reflexões. As palavras lucidez e desencanto, aqui, são as maiores enaltecedoras componentes da narrativa. Seja por suas veracidades, seja por suas ficções. O que está em jogo é a forma como elas são colocadas - através das meditações do narrador -, e como são acolhidas pelo leitor. Mais uma prova de que esses termos são e estão conexos dando testemunho das afirmações do autor.

CONCLUSÃO

A solidão, questão central do trabalho, é revelada como uma estrutura concernente à experiência daqueles que vivenciam a guerra. Tal questão é abordada pelos aspectos de lucidez e desencanto visto que capitaneiam o discurso do narrador durante a história.

Não é dos tempos atuais que a solidão é abordada com um mal. Desde os primórdios da literatura tal questão é utilizada por vários autores, de diferentes gerações. O romantismo, por exemplo, comprova tais afirmações, sobretudo por mostrar o lado sensível do ser humano.

As memórias, o espaço, o tempo são fortemente abraçados pelo narrador em seus relatos. A prova disso se faz presente no primeiro capítulo do livro, onde ele recorda as satisfações vividas em família, citando o zoológico como exemplo. O espaço angolano remete-o às sensações mais incômodas e ruins pelo fato de ter sido o cenário para o seu desencanto. E o tempo, talvez o seu único companheiro nessa jornada, é visto como uma possibilidade de cura para os males pelos quais ele sofre.

Dessa forma, o leitor, ao se deparar com esta encantadora obra, há de observar a magnitude da lucidez do narrador em mostrar detalhadamente as fragmentações ocorridas em seu sujeito, assim como a perda, por vezes, de sua própria identidade, isto é, o não saber quem é por não se encontrar naquele ambiente. Além disso, o leitor evidencia que nos momentos de dor, fracasso, tristeza e desencanto do narrador, a solidão se fez presente com sua capacidade de estilhaçar, de destroçar o eu.

Por fim, Lobo Antunes, autor deste magnífico romance, apresenta o lado mais carnal, mais banal do universo concernente à guerra. Com isso, a leitura do romance traz uma vasta rede de informações daquilo que não é vivido nem presenciado em nosso cotidiano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. 2.ed. Rio de janeiro: Objetiva, 2007.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaraciara Lopes Louro. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LINS, Ronaldo Lima. A indiferença pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

ROUANET, Sérgio Paulo. A verdade e a ilusão do pós-moderno. Revista do Brasil Ano 2 nº 5/86.

SARAIVA, António José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 7.ed. Lisboa: Porto editora, 195.

SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002.

Gi Medeiros
Enviado por Gi Medeiros em 17/01/2019
Código do texto: T6553274
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