DE PESSOA A TRIBUZI: leitura contemporânea do mito sebastianista
RESUMO. Partindo de alguns pretextos literários, linguísticos e filosóficos pretendemos fazer uma leitura contemporânea de alguns textos, não escritos na atualidade, para neles demarcar alguns signos de representação desse olhar: Mensagem (Terceira parte/O Encoberto), de Fernando Pessoa, poeta português e Balada da Praia dos Lençóis, de José Pinheiro Gomes (Bandeira Tribuzi), poeta maranhense. Esses autores poetizaram sobre a temática sebastianista, fazendo viver e reviver o mito D. Sebastião. Aquele, trazendo de volta o sonho do Quinto Império. O maranhense, por sua vez, cantando o que há de mítico e maravilhoso nas lendas maranhenses.
RESUMO. Partindo de alguns pretextos literários, linguísticos e filosóficos pretendemos fazer uma leitura contemporânea de alguns textos, não escritos na atualidade, para neles demarcar alguns signos de representação desse olhar: Mensagem (Terceira parte/O Encoberto), de Fernando Pessoa, poeta português e Balada da Praia dos Lençóis, de José Pinheiro Gomes (Bandeira Tribuzi), poeta maranhense. Esses autores poetizaram sobre a temática sebastianista, fazendo viver e reviver o mito D. Sebastião. Aquele, trazendo de volta o sonho do Quinto Império. O maranhense, por sua vez, cantando o que há de mítico e maravilhoso nas lendas maranhenses.
INTRODUÇÃO
Fernando Pessoa, falando dos navegadores antigos, diz: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Parafraseando a si mesmo diz ele: “quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar” (PESSOA, 2000, p. 7).
Como resultado dessa criação, os poemas nascem – trabalho/doação, frutos compartilhados, mas filhos de muita solidão e se fazem oferendas para nós, leitores e “hermeneutas” que exercemos a difícil atividade de tradução, mediada sempre por leituras teóricas e outras discussões. Ao que nos propomos? Como amantes da poesia, ainda que fora dela, somos convidados a lançar o olhar para ela – seu dentro, seu passado, para fazê-la falar no presente.
Criar é preciso, escrever, também
Esse abrir os poemas para outras, novas e possíveis experiências, hoje conclamadas, exercitam a imaginação criadora e suscitam sensações e possibilidade de saborear o nascimento de outros textos que, a partir da experiência, passam a ser pretensamente nossos, enquanto leitores. Esta é uma tarefa, nem sempre fácil, pois nossas habilidades e competências cognitivas, às vezes postas em xeque, dependem das representações culturais, sociais e políticas que, de certa forma, determinam e estruturam as nossas ações. Mas, conforme disse Fernando Pessoa “criar é preciso”.
Nesse contexto, as ações/produções precisam corresponder às exigências que nos são demandadas, por exemplo: como olhar os textos poéticos, deitando sobre eles a inquietante, instigante e estimuladora leitura contemporânea? Submetê-los a teorizações, em nome de uma intervenção histórica, no presente? Giorgio Agamben (tradução de Cláudio Oliveira, 2009, p. 2) fala que: “a contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, toma distância dele”.
Ora, “se o presente é sempre uma neblina vasta e o tempo nunca entra nos eixos”, o olhar que é capaz de ver o que não se mostra e enxergar o que está oculto e enigmático, também é capaz de intervir para presentificar o tempo e, no dizer de Leila Perrone-Moisés (2000, p. 45): “espacializar o tempo num quadro imobilizado, provisoriamente, embora, como o bom e o verdadeiro (...)”, é, pois, a tentação de afirmar a intemporalidade da poesia. Nesse sentido, o poeta se faz símbolo (a fratura), na medida em que impede o tempo de se compor, atualizando-o, sempre pela linguagem. Ele é, no dizer do Agamben, ainda no mesmo texto: “aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro” (Ib. Idem, p. 3). Dessa forma, o poeta que é capaz de ver além do tempo histórico, pelo (in) dizível poético é contemporâneo.
O leitor também pode participar dessa intervenção e atualizar o tempo, partindo de uma leitura diacrônica do texto. Neste sentido, a tarefa que nos impele é (des) construir o texto poético, atualizando-o, a partir de leituras outras, em face do contemporâneo. Essa experiência nos coloca frente a algumas reflexões, o que implica recorrer a outras e novas leituras não somente às literárias, mas, às vezes, filosóficas, sociológicas, psicanalistas... Em Leitura de Poesia (org. Alfredo Bosi), o próprio Bosi fala que “o surrealismo francês e o expressionismo alemão propuseram à arte inquietações filosóficas e políticas de longo alcance que não se reconhecem nas atitudes pós-modernas” (1998, p. 40). Seja qual for o diálogo teórico, é o texto quem indica qual direção seguir. Porém, antes de entrar especificamente no trabalho com os textos poéticos de Fernando Pessoa e de Bandeira Tribuzzi, nos ateremos a questões específicas do trato com a arte pela criação verbal. Para tal, as lições de Iuri Tinianov (in COSTA LIMA, 2002, p. 475) atinam, dizendo que "o estudo da arte verbal comporta duas dificuldades. A primeira procede do próprio material usado, rotulado de modo mais simples ou convencional como fala; palavra; a segunda advém do princípio construtivo desta arte".
Ao transportar o assunto para esta proposta, somos impelidos a lidar com a primeira dificuldade que é o trabalho com a palavra. De natureza heterogênea, plurissignativa e polivalente, mas relacionada com o nosso cotidiano como unidade que significa, em sua função poética, ela é, de alguma forma, dependente dessa conexão que operamos. “Sempre que a vida cotidiana penetra na literatura, ela se torna literatura, e como tal deveria ser considerada” (Ib. idem, p. 484).
Os textos poéticos, ainda que envoltos em ambiguidades e dificuldades de leitura e entendimento, não devem ser abandonados, pois sempre vislumbram possibilidades de trabalho, leitura e interpretação. Por isso, é importante não se ater ao todo, desprezando o analítico que os detalhes oferecem, É necessário buscar entender as conexões, as teias de relações que existem por trás das palavras, principalmente as poéticas, lembrando que elas vieram de alguém, se direcionam a outrem e voam para, em algum lugar, serem recebidas, lidas, entendidas ou não.
A segunda dificuldade, segundo Tinianov, é “a natureza da construção, o princípio formativo, como um fator estático”, isto é, elementos como a sintaxe, o léxico, a métrica etc., não devem ser modelares e nem a palavra do poeta tomada num sentido estrito demais, pois ele diz, a um determinado ponto, exatamente o que é necessário, exatamente aquilo que melhor produz uma impressão a esta altura, e não se preocupa especialmente, nem leva em conta o fato de que os resultados possam contradizer completamente as afirmações feitas noutro lugar (Ib. idem, p.476).
Ao produzir, o artista não procura a novidade, nem o lugar, ele produz. E, ao fazê-lo, o faz não a partir da positividade ou da presença, mas da negação. Ou seja, o que ele produz parte de absolutas negações experimentadas e possíveis pela linguagem. Isto é, a novidade não passa de uma expressão abstrata e singular que distingue o ser poeta, suas imagens, seus gestos, seus produtos, em face de um mundo ao qual ele pertence. Segundo a concepção heideggeriana “dasein ou o ser aí”, consiste na essencial relação do existente com o seu mundo. Para Heidegger “o dasein, sendo essencialmente este horizonte de possibilidades de ser, é, portanto, fundamentalmente inacabado” (in FIGUEIREDO, 1998, p. 183). Assim sendo, a existência humana é mensurada, sempre, pela presença do outro. O que somos o que fazemos o que representamos para o outro, nada mais é que buscar a liberdade ou atribuir sentidos à vida. Isso nos coloca no campo da existência de outros sujeitos, igualmente dotados dessa mensura e busca de liberdade, daí que as manifestações de comportamento e de linguagem produzidas são expressões desse projeto de liberdade que é o próprio homem.
Questionar o mundo e a si próprio não é tarefa única dos poetas, mas parece que eles, mais facilmente, usam a chave para chegar à verdade essencial, conforme expressam os versos de Fernando Pessoa (2000, p. 22): “Quem sou que assim me caminhei sem eu/Quem são que assim me deram aos bocados/À reunião em que acordo e não sou meu?” Criar do nada o tudo, e ao mesmo tempo, potencializar a palavra ao nível máximo é tarefa do poeta. Só pela poesia, pelo jogo de forças imagéticas que lhe dão asas e vezo criador é que ele alcança o ser livre. Essa liberdade que a poesia delega ao poeta capacita-o a representar-se a si e reestruturar as formas de ser e de estar no mundo, comunicando outras e novas possibilidades de existência que também é nossa. Operadas essas observações, vamos à leitura proposta.
Confessamos, antes, a dificuldade de encontrar o caminho por entre o emaranhado de informações e teorias, mas ao ler o texto Poesia e Paisagens Urbanas, de Antônio Cícero, cremos ter encontrado o mote para compor a canção, assim esperamos. O crítico, ao falar de poesia na paisagem urbana, estabelece a partir do binômio campo e cidade, algumas considerações: ele toma o campo como lugar de enraizamento e a cidade, por sua vez, como lugar de desenraizamento.
Segundo o crítico (p.17), a cidade vai significar, sociologicamente, o berço da sociedade que agrega o homem que passa, mecanicamente, a se relacionar de maneira formal e contratual, pois suas relações são regulamentadas por leis espaciais e universais. Em oposição à vida citadina que impõe limite ao homem, ele apresenta a comunidade, que supõe o encontro da origem humana, na grande família que tem por horizonte a religião positiva cultivada pelos membros que se articulam do ponto de vista hierárquico, de maneira pretensamente orgânica e natural. Nesse espaço, os homens procuram cultivar entre si relações pessoais, complementares e cooperativas, com base na memória e na tradição.
Nessa esteira de pensamento, o desenraizamento (consumado pelo nosso tempo e pela cidade) é essencial às figuras tanto do escritor quanto do leitor, porque universaliza o acesso à leitura e a escrita; a poesia desenraizada surge quando a escrita e a leitura põem a disposição do leitor as mais diversas instâncias dos mais diferentes poemas. Esse movimento faz deixar de existir para o apreciador de poesia o momento carismático da recitação – a criação do poema oral, a reiteração da palavra poética e divina, enquanto texto único da verdade.
Na contramão do desenraizamento poético citadino, o crítico aponta para o enraizamento poético campestre. É nesse contexto, que teceremos considerações sobre o enraizamento da poesia dentro de uma comunidade na praia dos Lençois Maranhenses, espaço que alimenta memória, tradição e permanência de um tema/lenda que sobrevive ao tempo, criando e fortalecendo raízes no imaginário popular de um povo. Para o psicólogo Luís Cláudio Figueiredo (1998, p.185), talvez “o homem não seja uma totalidade, acabada e determinada, mas um processo essencialmente incompleto de totalização. A práxis é o fazer humano referido ao seu projeto fundamental de transformação e autocriação” que garante a existência, atualização e permanência do ser.
“Benedictus dominus Deus Noster qui dedit nobis signum” (Bendito o Senhor nosso Deus, que nos deu o sinal). Esse verso de Fernando Pessoa ele assim o traduziu: “Bendito seja Deus nosso Senhor, que nos deu o verbo” (PESSOA, 2000, p. 29). Ora, o verbo, a palavra, a partir dos estudos linguísticos de Saussure se transforma em signo que para o poeta é canto, é poesia e significa. Mas ela se faz corpo e fica, porque materializada no poema. Fernando Pessoa transforma o verbo em Mensagem que, segundo Jane Tutikian é, “antes de tudo, a interpretação esotérica da história de Portugal a partir dos três grandes mitos: 1) o rei escondido na ilha, o salvador; 2) a audácia do impossível e 3) o fundador que veio de longe” (Ib. Idem, p.24).
O que nos interessa aqui é o primeiro item que diz respeito à visão salvífica que enforma o Sebastianismo. Assim, nos poemas da terceira parte de Mensagem (O Encoberto), Pessoa vai trazer à memória da nação portuguesa um canto ao Bandarra – “Gonçalo Anes, o poeta e sapateiro de Troncoso que se tornou célebre pelos versos proféticos sobre as crises políticas do Império, bem como sobre o regresso do rei D. Sebastião” (Jacinto do Prado Coelho, 1978). Já no primeiro poema D. Sebastião, canta o motivo – o sonho do próprio Monarca em ser o Imperador do Quinto Império. Observamos uma voz em primeira pessoa (me guardei; me sonhei; regressarei) cedida ao Rei pelo poeta que atualiza o tempo do mito. Vamos à leitura: Sperai! Caí no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus. Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno dura, É Esse que regressarei. (Ib. Idem, p. 85)
A atualização desse tempo mítico observa-se, também, no segundo poema, espaço poético que anuncia o Quinto Império (sonhado e visionado pelo padre Antônio Vieira) que haveria de vir. Nele, o poeta põe em discurso uma das ideias paradoxais, mas fundamentais para o homem: pensar a morte ainda em vida e a necessária luta de superação da finitude anunciada por ela. Assim, ao falar do sonho que sobrevive à morte do Rei e ao tempo, observamos os marcadores verbais (eras; vem; visão; tempo) dos quais o poeta lança mão nestes versos:
(...)
Eras sobre eras se somem No tempo em que eras vem. Ser descontente é ser homem Que a forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!
E assim passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro que no atro Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade, Europa, os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?
(Ib. Idem, p. 86)
Como demarcar o tempo em poesia se o tempo histórico não existe para o poeta? Em face desse contexto, trazemos poemas como a Balada da Praia dos Lençóis, de Bandeira Tribuzi. Neste poema, o material poético/mítico do poeta português, se renova, pois fala igualmente do rei que também se escondeu numa ilha, embora, ambos os poetas, dêem conotações diferentes ao objeto poetizado. Os versos aqui expressos embalam as praias do maranhense – a praia dos Lençois que é mistério e medo, mas é divina:
Praia de súbito medo, misteriosa e sagrada! Face de cigana antiga, palma da mão desvendada, som de ventos incontidos rugindo à noite assustada!
Alva praia longa e densa ferida de agouro e medo, lençol onde a noiva espera o noivado do segredo, em noites densas e longas feitas de sal e mistério.
(TRIBUZI, p. 75)
Certamente, o mar, a praia, as areias, os ventos da poesia maranhense, não se constituem os elementos constantes na poesia portuguesa: “Que voz vem no som das ondas/ Que não é a voz do mar?/É a voz de alguém que nos fala,/Mas que, se escutamos, cala,/ Por ter havido escutar” (PESSOA, 2000, p. 88). Esses são versos do poema As ilhas afortunadas. O poema que o antecede, O Desejado, parece dialogar com as narrativas do ciclo do rei Artur que, na batalha de Camlann, mortalmente ferido, foi levado para a Ilha de Avalon – a “ilha afortunada”.
Dessa forma, embora o tema que emerge nos poemas seja o mesmo de ver retornar o rei salvador, é possível observar, entre o poeta maranhense e a sua praia, em um diálogo com ela própria e os elementos dela característicos, o que se ausenta naquele. Assim, além do tratamento misterioso e esotérico que é dispensado “às noites densas e longas feitas de sal e mistério”, o poeta fala como se estivesse diante de alguém, personificando essas noites de mistério que a praia encena:
(...)
Em ti os rostos se fecham e os olhos pássaros tontos, fogem das ondas noturnas onde o segredo jaz torvo: sinal das ondas raivando, troar soturno de touro!
Ai do olhar incontido que se demora surpreso na estrela que entre pontas guarda poderes de inferno e cintila sobre as ondas seu duro poder supremo!
(TRIBUZI, p. 76)
Observamos, nesses versos, um elemento que se ausenta dos versos do vate português: o touro que, ao tempo em que é puro mistério, é poderoso e dá medo. Há, porém nos textos de ambos, notadamente mais forte nos de Tribuzi um desejo expresso: atualizar a matéria mítica, por meio da linguagem literária. Para Perrone-Moisés (2000, p. 56), “quando o poeta se volta para a tradição e vai em busca de seus predecessores, é a si mesmo que ele vai encontrar; com a condição de que ele cesse de ser aquele ‘ele mesmo’ individual aprisionado em sua existência, para se juntar à voz de todos os poetas.
O também maranhense Ferreira Gullar “reconhece que somente com a chegada de José Pinheiro Gomes, de Portugal, o Maranhão tomou conhecimento de um novo tipo de linguagem poética, já um tanto longe das tradições romântico-parnasiano-simbolistas. De fato, tendo estudado em Coimbra e naturalmente lido poetas do quilate de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José Régio, Bandeira Tribuzi trouxe para a província brasileira uma nova mentalidade, o lado poético do homem sensível e o interesse social do ser engajado em seu tempo" (www.guesaerrante.com.br).
Essa busca das tradições herdadas, para nelas atualizar o poético, nos leva à leitura de Balada, para Wolfgang Kayser, “um gênero poético completo (...), que desempenha papel preponderante na história da literatura de muitos povos” (1985, p. 38). Atentemos, antes, e em primeiro plano, para os significados da palavra que intitula o poema maranhense. Ao visitar o dicionário Houaiss, vários conceitos são encontrados: Balada é composição musical de caráter épico; composição poética popular antiga (acompanhada ou não de música); canção interpretada por cantores de música popular,
acompanhada por instrumentos modernos; poema em estrofes que geralmente narra uma lenda popular ou uma tradição histórica, podendo ser acompanhada por instrumentos musicais etc.
A última definição nos interessa na medida em que a Balada de Tribuzi constitui-se um poema assim composto: um total de dezessete estrofes, sendo a primeira com doze versos, ao que se seguem as demais com seis versos, interrompido somente pelas décima quinta e sétima estrofes com doze versos, intercalado por uma estrofe de seis versos, mas finalizado com um dístico, que por si traduz o motivo: “e o touro virá das águas/ claro príncipe supremo” (TRIBUZI, p. 112). É uma canção narrativa de tradição histórica, acerca do lendário popular maranhense: “Alva praia dos lençois,/ silêncio da madrugada,/ espuma de mar e lenda” (Ib. idem, p. 108) O poeta canta o mito tradicional da Ilha dos Lençois e da comunidade que acredita que El Rei D. Sebastião ali se esconde:
Ó touro Sebastião refugiado no mar, mágico da morte isento dono da praia exemplar amargo senhor imerso na forma a desencantar.
(Ib. idem, p. 76)
Uma vez mais lançamos mão de outro poema de Pessoa para dizê-lo em sua intermitente luta de acordar do sono de morte O Desejado: “Onde quer que, entre sombras e dizeres,/ jazas remoto, sente-te sonhado,/ E ergue-te do fundo de não-seres/ Para teu novo fado”. Novamente a voz poética almeja a superação dessa indesejada morte – condição humana, inexorável destino de quem vive. A mítica em torno da figura do Desejado, eleva-o à comparação com, segundo (D’ONOFRIO, p. 154), o “também mítico Galaaz, personagem da Távola Redonda, a quem foi dado o poder e a honra de conhecer o Santo Graal que, retornado, representaria a união do mundo dividido”. Estes versos são do poema O Desejado: “Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,/ Mas já no auge da suprema prova,/ A alma penitente do teu povo/ À Eucaristia Nova” (Ib. Idem, p. 87).
As reflexões sobre a permanência do sebastianismo, aqui postas pelo discurso poético, destacam que a atualização do tempo, se faz pelo mítico que é acrônico, mas que se potencializa na linguagem poética. Nos textos poéticos de Mensagem, há um único poema sem título, onde o próprio Fernando Pessoa, como a querer se tornar o especial mensageiro e vate anunciador da volta de D. Sebastião evoca o “Encoberto”, o “Messiânico”:
(...)
Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura. Mas quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a hora?
Quando virás a ser o Cristo De a quem morreu o falso Deus, E a despertar do mal que existo A nova terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto, Sonho das eras português, Tornar-me mais que o sopro incerto De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás voltando, Fazer minha esperança amor? Da névoa e da saudade quando? Quando, meu Sonho e meu Senhor?
(Ib. Idem, p. 95)
Por sua vez, o texto poético Balada, pela própria natureza do gênero, apresenta uma linguagem mais simples, mais solta, inclusive pela falta de pontuação observada e somente cadenciada pelo tom sonoro que lhe é peculiar. Ao contrário do anterior, o poema não evoca, nem diviniza o Rei, mas mistifica a sua figura. Ele é o touro, o mágico encantado à espera do desencantamento. Para tal, aposta no amor de uma jovem que será responsável pela volta dele, “do Encoberto” travestido na pele de um touro que só despertará se amado por ela. Temos aí o exemplo de um texto, cuja linguagem brinca com as sensações:
(...)
Ninguém sabe qual a hora do touro desencantar. Apenas se ouve que chora nos vastos campos do mar e chama a virgem senhora que será para o amar.
Talvez nem Ela conheça o mistério a que se prende: mas por ser tão preciosa bem o destino a defende até quando escute o choro que por Ela o touro geme.
Tempo será quando um dia flutuando sobre as águas sua carne nua e fria de menina bem fadada Irá ser oferecida com os poderes que guarda Tocada a carne do touro ao prodígio de seus dedos tombarão, ao ser beijados, os poderosos segredos com sonoro som amargo de vento, mar e mistério
e o touro virá das águas claro príncipe supremo!
(Bandeira Tribuzi. Safra, in Poesias completas, 1980)
Assemelhando-se às narrativas lendárias do rei Artur, D. Sebastião também foge da batalha de Alcácer Quibir, para “uma ilha afortunada”, nos Lençois Maranhenses, donde um dia surgirá para soerguer o seu tão sonhado Quinto Império Português. Eis a razão por que o sonho sobreviveu a sua morte e o mito o trouxe e o trará sempre de volta para as lendárias praias dessa afortunada ilha. E assim, por que eternos o mito e a poesia sobrevivem no tempo e no espaço e se oferecem para leituras...
CONCLUSÃO
Para encerrar a proposta de leitura atualizada do mito sebastianista que tem sido cantado, encenado e poetizado em terras maranhenses, deixemos que o cronista Ubiratan Teixeira fale sobre o que tem feito essa lenda no imaginário do povo: "transmigrada para o Brasil a lenda se adaptou ao caráter dos nativos e passou a lembrar que no seu retorno D. Sebastião distribuirá entre seus vassalos e seguidores cargos honoríficos, riquezas ilimitadas, instaurando o paraíso terrestre do nepotismo sem limites. (TEIXEIRA, 2010, p. 49).
Enquanto aguarda a visita de uma casta virgem que lhe fira com o tal espinho ou um varão de bagos roxos que lhe macule os entre/cornos, no Maranhão, ele vai modorrando ora sob a forma de serpente pelos subterrâneos da Ilha ou de um imponente touro que vive cruzando com as Filhas da Lua nos Lençois Maranhenses
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1998.
COSTA LIMA, LUIS. Teoria literária em suas fontes. Vol. 1. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Dicionário de Literatura Brasileira, Portuguesa e Galega. Vols. 1; 2 (Dir.) Jacinto do Prado Coelho. Porto: Figueirinhas, 1978.
Dicionário de Símbolos. Juan-Eduardo Cirlot.São Paulo: Moraes Ltda,1984.
D’ONÓFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 1998.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armênio Amado, 1985.
MACY, John. História da Literatura Mundial. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1968.
PESSOA, Fernando. Obra Poética I. Mensagem. Porto Alegre: L&PM, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Leila. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
TRIBUZI, Bandeira. Safra. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Cátedra/INL, 1980.
TEIXEIRA, Ubiratan. Diário de Campo: crônicas. Imperatriz MA: Ética, 2010.
http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina133.htm. Acesso: 20/05/2010
Fernando Pessoa, falando dos navegadores antigos, diz: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Parafraseando a si mesmo diz ele: “quero para mim o espírito dessa frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar” (PESSOA, 2000, p. 7).
Como resultado dessa criação, os poemas nascem – trabalho/doação, frutos compartilhados, mas filhos de muita solidão e se fazem oferendas para nós, leitores e “hermeneutas” que exercemos a difícil atividade de tradução, mediada sempre por leituras teóricas e outras discussões. Ao que nos propomos? Como amantes da poesia, ainda que fora dela, somos convidados a lançar o olhar para ela – seu dentro, seu passado, para fazê-la falar no presente.
Criar é preciso, escrever, também
Esse abrir os poemas para outras, novas e possíveis experiências, hoje conclamadas, exercitam a imaginação criadora e suscitam sensações e possibilidade de saborear o nascimento de outros textos que, a partir da experiência, passam a ser pretensamente nossos, enquanto leitores. Esta é uma tarefa, nem sempre fácil, pois nossas habilidades e competências cognitivas, às vezes postas em xeque, dependem das representações culturais, sociais e políticas que, de certa forma, determinam e estruturam as nossas ações. Mas, conforme disse Fernando Pessoa “criar é preciso”.
Nesse contexto, as ações/produções precisam corresponder às exigências que nos são demandadas, por exemplo: como olhar os textos poéticos, deitando sobre eles a inquietante, instigante e estimuladora leitura contemporânea? Submetê-los a teorizações, em nome de uma intervenção histórica, no presente? Giorgio Agamben (tradução de Cláudio Oliveira, 2009, p. 2) fala que: “a contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, toma distância dele”.
Ora, “se o presente é sempre uma neblina vasta e o tempo nunca entra nos eixos”, o olhar que é capaz de ver o que não se mostra e enxergar o que está oculto e enigmático, também é capaz de intervir para presentificar o tempo e, no dizer de Leila Perrone-Moisés (2000, p. 45): “espacializar o tempo num quadro imobilizado, provisoriamente, embora, como o bom e o verdadeiro (...)”, é, pois, a tentação de afirmar a intemporalidade da poesia. Nesse sentido, o poeta se faz símbolo (a fratura), na medida em que impede o tempo de se compor, atualizando-o, sempre pela linguagem. Ele é, no dizer do Agamben, ainda no mesmo texto: “aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro” (Ib. Idem, p. 3). Dessa forma, o poeta que é capaz de ver além do tempo histórico, pelo (in) dizível poético é contemporâneo.
O leitor também pode participar dessa intervenção e atualizar o tempo, partindo de uma leitura diacrônica do texto. Neste sentido, a tarefa que nos impele é (des) construir o texto poético, atualizando-o, a partir de leituras outras, em face do contemporâneo. Essa experiência nos coloca frente a algumas reflexões, o que implica recorrer a outras e novas leituras não somente às literárias, mas, às vezes, filosóficas, sociológicas, psicanalistas... Em Leitura de Poesia (org. Alfredo Bosi), o próprio Bosi fala que “o surrealismo francês e o expressionismo alemão propuseram à arte inquietações filosóficas e políticas de longo alcance que não se reconhecem nas atitudes pós-modernas” (1998, p. 40). Seja qual for o diálogo teórico, é o texto quem indica qual direção seguir. Porém, antes de entrar especificamente no trabalho com os textos poéticos de Fernando Pessoa e de Bandeira Tribuzzi, nos ateremos a questões específicas do trato com a arte pela criação verbal. Para tal, as lições de Iuri Tinianov (in COSTA LIMA, 2002, p. 475) atinam, dizendo que "o estudo da arte verbal comporta duas dificuldades. A primeira procede do próprio material usado, rotulado de modo mais simples ou convencional como fala; palavra; a segunda advém do princípio construtivo desta arte".
Ao transportar o assunto para esta proposta, somos impelidos a lidar com a primeira dificuldade que é o trabalho com a palavra. De natureza heterogênea, plurissignativa e polivalente, mas relacionada com o nosso cotidiano como unidade que significa, em sua função poética, ela é, de alguma forma, dependente dessa conexão que operamos. “Sempre que a vida cotidiana penetra na literatura, ela se torna literatura, e como tal deveria ser considerada” (Ib. idem, p. 484).
Os textos poéticos, ainda que envoltos em ambiguidades e dificuldades de leitura e entendimento, não devem ser abandonados, pois sempre vislumbram possibilidades de trabalho, leitura e interpretação. Por isso, é importante não se ater ao todo, desprezando o analítico que os detalhes oferecem, É necessário buscar entender as conexões, as teias de relações que existem por trás das palavras, principalmente as poéticas, lembrando que elas vieram de alguém, se direcionam a outrem e voam para, em algum lugar, serem recebidas, lidas, entendidas ou não.
A segunda dificuldade, segundo Tinianov, é “a natureza da construção, o princípio formativo, como um fator estático”, isto é, elementos como a sintaxe, o léxico, a métrica etc., não devem ser modelares e nem a palavra do poeta tomada num sentido estrito demais, pois ele diz, a um determinado ponto, exatamente o que é necessário, exatamente aquilo que melhor produz uma impressão a esta altura, e não se preocupa especialmente, nem leva em conta o fato de que os resultados possam contradizer completamente as afirmações feitas noutro lugar (Ib. idem, p.476).
Ao produzir, o artista não procura a novidade, nem o lugar, ele produz. E, ao fazê-lo, o faz não a partir da positividade ou da presença, mas da negação. Ou seja, o que ele produz parte de absolutas negações experimentadas e possíveis pela linguagem. Isto é, a novidade não passa de uma expressão abstrata e singular que distingue o ser poeta, suas imagens, seus gestos, seus produtos, em face de um mundo ao qual ele pertence. Segundo a concepção heideggeriana “dasein ou o ser aí”, consiste na essencial relação do existente com o seu mundo. Para Heidegger “o dasein, sendo essencialmente este horizonte de possibilidades de ser, é, portanto, fundamentalmente inacabado” (in FIGUEIREDO, 1998, p. 183). Assim sendo, a existência humana é mensurada, sempre, pela presença do outro. O que somos o que fazemos o que representamos para o outro, nada mais é que buscar a liberdade ou atribuir sentidos à vida. Isso nos coloca no campo da existência de outros sujeitos, igualmente dotados dessa mensura e busca de liberdade, daí que as manifestações de comportamento e de linguagem produzidas são expressões desse projeto de liberdade que é o próprio homem.
Questionar o mundo e a si próprio não é tarefa única dos poetas, mas parece que eles, mais facilmente, usam a chave para chegar à verdade essencial, conforme expressam os versos de Fernando Pessoa (2000, p. 22): “Quem sou que assim me caminhei sem eu/Quem são que assim me deram aos bocados/À reunião em que acordo e não sou meu?” Criar do nada o tudo, e ao mesmo tempo, potencializar a palavra ao nível máximo é tarefa do poeta. Só pela poesia, pelo jogo de forças imagéticas que lhe dão asas e vezo criador é que ele alcança o ser livre. Essa liberdade que a poesia delega ao poeta capacita-o a representar-se a si e reestruturar as formas de ser e de estar no mundo, comunicando outras e novas possibilidades de existência que também é nossa. Operadas essas observações, vamos à leitura proposta.
Confessamos, antes, a dificuldade de encontrar o caminho por entre o emaranhado de informações e teorias, mas ao ler o texto Poesia e Paisagens Urbanas, de Antônio Cícero, cremos ter encontrado o mote para compor a canção, assim esperamos. O crítico, ao falar de poesia na paisagem urbana, estabelece a partir do binômio campo e cidade, algumas considerações: ele toma o campo como lugar de enraizamento e a cidade, por sua vez, como lugar de desenraizamento.
Segundo o crítico (p.17), a cidade vai significar, sociologicamente, o berço da sociedade que agrega o homem que passa, mecanicamente, a se relacionar de maneira formal e contratual, pois suas relações são regulamentadas por leis espaciais e universais. Em oposição à vida citadina que impõe limite ao homem, ele apresenta a comunidade, que supõe o encontro da origem humana, na grande família que tem por horizonte a religião positiva cultivada pelos membros que se articulam do ponto de vista hierárquico, de maneira pretensamente orgânica e natural. Nesse espaço, os homens procuram cultivar entre si relações pessoais, complementares e cooperativas, com base na memória e na tradição.
Nessa esteira de pensamento, o desenraizamento (consumado pelo nosso tempo e pela cidade) é essencial às figuras tanto do escritor quanto do leitor, porque universaliza o acesso à leitura e a escrita; a poesia desenraizada surge quando a escrita e a leitura põem a disposição do leitor as mais diversas instâncias dos mais diferentes poemas. Esse movimento faz deixar de existir para o apreciador de poesia o momento carismático da recitação – a criação do poema oral, a reiteração da palavra poética e divina, enquanto texto único da verdade.
Na contramão do desenraizamento poético citadino, o crítico aponta para o enraizamento poético campestre. É nesse contexto, que teceremos considerações sobre o enraizamento da poesia dentro de uma comunidade na praia dos Lençois Maranhenses, espaço que alimenta memória, tradição e permanência de um tema/lenda que sobrevive ao tempo, criando e fortalecendo raízes no imaginário popular de um povo. Para o psicólogo Luís Cláudio Figueiredo (1998, p.185), talvez “o homem não seja uma totalidade, acabada e determinada, mas um processo essencialmente incompleto de totalização. A práxis é o fazer humano referido ao seu projeto fundamental de transformação e autocriação” que garante a existência, atualização e permanência do ser.
“Benedictus dominus Deus Noster qui dedit nobis signum” (Bendito o Senhor nosso Deus, que nos deu o sinal). Esse verso de Fernando Pessoa ele assim o traduziu: “Bendito seja Deus nosso Senhor, que nos deu o verbo” (PESSOA, 2000, p. 29). Ora, o verbo, a palavra, a partir dos estudos linguísticos de Saussure se transforma em signo que para o poeta é canto, é poesia e significa. Mas ela se faz corpo e fica, porque materializada no poema. Fernando Pessoa transforma o verbo em Mensagem que, segundo Jane Tutikian é, “antes de tudo, a interpretação esotérica da história de Portugal a partir dos três grandes mitos: 1) o rei escondido na ilha, o salvador; 2) a audácia do impossível e 3) o fundador que veio de longe” (Ib. Idem, p.24).
O que nos interessa aqui é o primeiro item que diz respeito à visão salvífica que enforma o Sebastianismo. Assim, nos poemas da terceira parte de Mensagem (O Encoberto), Pessoa vai trazer à memória da nação portuguesa um canto ao Bandarra – “Gonçalo Anes, o poeta e sapateiro de Troncoso que se tornou célebre pelos versos proféticos sobre as crises políticas do Império, bem como sobre o regresso do rei D. Sebastião” (Jacinto do Prado Coelho, 1978). Já no primeiro poema D. Sebastião, canta o motivo – o sonho do próprio Monarca em ser o Imperador do Quinto Império. Observamos uma voz em primeira pessoa (me guardei; me sonhei; regressarei) cedida ao Rei pelo poeta que atualiza o tempo do mito. Vamos à leitura: Sperai! Caí no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus. Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno dura, É Esse que regressarei. (Ib. Idem, p. 85)
A atualização desse tempo mítico observa-se, também, no segundo poema, espaço poético que anuncia o Quinto Império (sonhado e visionado pelo padre Antônio Vieira) que haveria de vir. Nele, o poeta põe em discurso uma das ideias paradoxais, mas fundamentais para o homem: pensar a morte ainda em vida e a necessária luta de superação da finitude anunciada por ela. Assim, ao falar do sonho que sobrevive à morte do Rei e ao tempo, observamos os marcadores verbais (eras; vem; visão; tempo) dos quais o poeta lança mão nestes versos:
(...)
Eras sobre eras se somem No tempo em que eras vem. Ser descontente é ser homem Que a forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!
E assim passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro que no atro Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade, Europa, os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?
(Ib. Idem, p. 86)
Como demarcar o tempo em poesia se o tempo histórico não existe para o poeta? Em face desse contexto, trazemos poemas como a Balada da Praia dos Lençóis, de Bandeira Tribuzi. Neste poema, o material poético/mítico do poeta português, se renova, pois fala igualmente do rei que também se escondeu numa ilha, embora, ambos os poetas, dêem conotações diferentes ao objeto poetizado. Os versos aqui expressos embalam as praias do maranhense – a praia dos Lençois que é mistério e medo, mas é divina:
Praia de súbito medo, misteriosa e sagrada! Face de cigana antiga, palma da mão desvendada, som de ventos incontidos rugindo à noite assustada!
Alva praia longa e densa ferida de agouro e medo, lençol onde a noiva espera o noivado do segredo, em noites densas e longas feitas de sal e mistério.
(TRIBUZI, p. 75)
Certamente, o mar, a praia, as areias, os ventos da poesia maranhense, não se constituem os elementos constantes na poesia portuguesa: “Que voz vem no som das ondas/ Que não é a voz do mar?/É a voz de alguém que nos fala,/Mas que, se escutamos, cala,/ Por ter havido escutar” (PESSOA, 2000, p. 88). Esses são versos do poema As ilhas afortunadas. O poema que o antecede, O Desejado, parece dialogar com as narrativas do ciclo do rei Artur que, na batalha de Camlann, mortalmente ferido, foi levado para a Ilha de Avalon – a “ilha afortunada”.
Dessa forma, embora o tema que emerge nos poemas seja o mesmo de ver retornar o rei salvador, é possível observar, entre o poeta maranhense e a sua praia, em um diálogo com ela própria e os elementos dela característicos, o que se ausenta naquele. Assim, além do tratamento misterioso e esotérico que é dispensado “às noites densas e longas feitas de sal e mistério”, o poeta fala como se estivesse diante de alguém, personificando essas noites de mistério que a praia encena:
(...)
Em ti os rostos se fecham e os olhos pássaros tontos, fogem das ondas noturnas onde o segredo jaz torvo: sinal das ondas raivando, troar soturno de touro!
Ai do olhar incontido que se demora surpreso na estrela que entre pontas guarda poderes de inferno e cintila sobre as ondas seu duro poder supremo!
(TRIBUZI, p. 76)
Observamos, nesses versos, um elemento que se ausenta dos versos do vate português: o touro que, ao tempo em que é puro mistério, é poderoso e dá medo. Há, porém nos textos de ambos, notadamente mais forte nos de Tribuzi um desejo expresso: atualizar a matéria mítica, por meio da linguagem literária. Para Perrone-Moisés (2000, p. 56), “quando o poeta se volta para a tradição e vai em busca de seus predecessores, é a si mesmo que ele vai encontrar; com a condição de que ele cesse de ser aquele ‘ele mesmo’ individual aprisionado em sua existência, para se juntar à voz de todos os poetas.
O também maranhense Ferreira Gullar “reconhece que somente com a chegada de José Pinheiro Gomes, de Portugal, o Maranhão tomou conhecimento de um novo tipo de linguagem poética, já um tanto longe das tradições romântico-parnasiano-simbolistas. De fato, tendo estudado em Coimbra e naturalmente lido poetas do quilate de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José Régio, Bandeira Tribuzi trouxe para a província brasileira uma nova mentalidade, o lado poético do homem sensível e o interesse social do ser engajado em seu tempo" (www.guesaerrante.com.br).
Essa busca das tradições herdadas, para nelas atualizar o poético, nos leva à leitura de Balada, para Wolfgang Kayser, “um gênero poético completo (...), que desempenha papel preponderante na história da literatura de muitos povos” (1985, p. 38). Atentemos, antes, e em primeiro plano, para os significados da palavra que intitula o poema maranhense. Ao visitar o dicionário Houaiss, vários conceitos são encontrados: Balada é composição musical de caráter épico; composição poética popular antiga (acompanhada ou não de música); canção interpretada por cantores de música popular,
acompanhada por instrumentos modernos; poema em estrofes que geralmente narra uma lenda popular ou uma tradição histórica, podendo ser acompanhada por instrumentos musicais etc.
A última definição nos interessa na medida em que a Balada de Tribuzi constitui-se um poema assim composto: um total de dezessete estrofes, sendo a primeira com doze versos, ao que se seguem as demais com seis versos, interrompido somente pelas décima quinta e sétima estrofes com doze versos, intercalado por uma estrofe de seis versos, mas finalizado com um dístico, que por si traduz o motivo: “e o touro virá das águas/ claro príncipe supremo” (TRIBUZI, p. 112). É uma canção narrativa de tradição histórica, acerca do lendário popular maranhense: “Alva praia dos lençois,/ silêncio da madrugada,/ espuma de mar e lenda” (Ib. idem, p. 108) O poeta canta o mito tradicional da Ilha dos Lençois e da comunidade que acredita que El Rei D. Sebastião ali se esconde:
Ó touro Sebastião refugiado no mar, mágico da morte isento dono da praia exemplar amargo senhor imerso na forma a desencantar.
(Ib. idem, p. 76)
Uma vez mais lançamos mão de outro poema de Pessoa para dizê-lo em sua intermitente luta de acordar do sono de morte O Desejado: “Onde quer que, entre sombras e dizeres,/ jazas remoto, sente-te sonhado,/ E ergue-te do fundo de não-seres/ Para teu novo fado”. Novamente a voz poética almeja a superação dessa indesejada morte – condição humana, inexorável destino de quem vive. A mítica em torno da figura do Desejado, eleva-o à comparação com, segundo (D’ONOFRIO, p. 154), o “também mítico Galaaz, personagem da Távola Redonda, a quem foi dado o poder e a honra de conhecer o Santo Graal que, retornado, representaria a união do mundo dividido”. Estes versos são do poema O Desejado: “Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,/ Mas já no auge da suprema prova,/ A alma penitente do teu povo/ À Eucaristia Nova” (Ib. Idem, p. 87).
As reflexões sobre a permanência do sebastianismo, aqui postas pelo discurso poético, destacam que a atualização do tempo, se faz pelo mítico que é acrônico, mas que se potencializa na linguagem poética. Nos textos poéticos de Mensagem, há um único poema sem título, onde o próprio Fernando Pessoa, como a querer se tornar o especial mensageiro e vate anunciador da volta de D. Sebastião evoca o “Encoberto”, o “Messiânico”:
(...)
Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura. Mas quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a hora?
Quando virás a ser o Cristo De a quem morreu o falso Deus, E a despertar do mal que existo A nova terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto, Sonho das eras português, Tornar-me mais que o sopro incerto De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás voltando, Fazer minha esperança amor? Da névoa e da saudade quando? Quando, meu Sonho e meu Senhor?
(Ib. Idem, p. 95)
Por sua vez, o texto poético Balada, pela própria natureza do gênero, apresenta uma linguagem mais simples, mais solta, inclusive pela falta de pontuação observada e somente cadenciada pelo tom sonoro que lhe é peculiar. Ao contrário do anterior, o poema não evoca, nem diviniza o Rei, mas mistifica a sua figura. Ele é o touro, o mágico encantado à espera do desencantamento. Para tal, aposta no amor de uma jovem que será responsável pela volta dele, “do Encoberto” travestido na pele de um touro que só despertará se amado por ela. Temos aí o exemplo de um texto, cuja linguagem brinca com as sensações:
(...)
Ninguém sabe qual a hora do touro desencantar. Apenas se ouve que chora nos vastos campos do mar e chama a virgem senhora que será para o amar.
Talvez nem Ela conheça o mistério a que se prende: mas por ser tão preciosa bem o destino a defende até quando escute o choro que por Ela o touro geme.
Tempo será quando um dia flutuando sobre as águas sua carne nua e fria de menina bem fadada Irá ser oferecida com os poderes que guarda Tocada a carne do touro ao prodígio de seus dedos tombarão, ao ser beijados, os poderosos segredos com sonoro som amargo de vento, mar e mistério
e o touro virá das águas claro príncipe supremo!
(Bandeira Tribuzi. Safra, in Poesias completas, 1980)
Assemelhando-se às narrativas lendárias do rei Artur, D. Sebastião também foge da batalha de Alcácer Quibir, para “uma ilha afortunada”, nos Lençois Maranhenses, donde um dia surgirá para soerguer o seu tão sonhado Quinto Império Português. Eis a razão por que o sonho sobreviveu a sua morte e o mito o trouxe e o trará sempre de volta para as lendárias praias dessa afortunada ilha. E assim, por que eternos o mito e a poesia sobrevivem no tempo e no espaço e se oferecem para leituras...
CONCLUSÃO
Para encerrar a proposta de leitura atualizada do mito sebastianista que tem sido cantado, encenado e poetizado em terras maranhenses, deixemos que o cronista Ubiratan Teixeira fale sobre o que tem feito essa lenda no imaginário do povo: "transmigrada para o Brasil a lenda se adaptou ao caráter dos nativos e passou a lembrar que no seu retorno D. Sebastião distribuirá entre seus vassalos e seguidores cargos honoríficos, riquezas ilimitadas, instaurando o paraíso terrestre do nepotismo sem limites. (TEIXEIRA, 2010, p. 49).
Enquanto aguarda a visita de uma casta virgem que lhe fira com o tal espinho ou um varão de bagos roxos que lhe macule os entre/cornos, no Maranhão, ele vai modorrando ora sob a forma de serpente pelos subterrâneos da Ilha ou de um imponente touro que vive cruzando com as Filhas da Lua nos Lençois Maranhenses
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1998.
COSTA LIMA, LUIS. Teoria literária em suas fontes. Vol. 1. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Dicionário de Literatura Brasileira, Portuguesa e Galega. Vols. 1; 2 (Dir.) Jacinto do Prado Coelho. Porto: Figueirinhas, 1978.
Dicionário de Símbolos. Juan-Eduardo Cirlot.São Paulo: Moraes Ltda,1984.
D’ONÓFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 1998.
FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armênio Amado, 1985.
MACY, John. História da Literatura Mundial. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1968.
PESSOA, Fernando. Obra Poética I. Mensagem. Porto Alegre: L&PM, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Leila. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
TRIBUZI, Bandeira. Safra. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Cátedra/INL, 1980.
TEIXEIRA, Ubiratan. Diário de Campo: crônicas. Imperatriz MA: Ética, 2010.
http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina133.htm. Acesso: 20/05/2010